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O imperfeito republicanismo brasileiro

Wanderley Guilherme nos lembra, mais uma vez, que a cidadania é uma estrada de mão dupla. Temos que cobrar nossos direitos, mas sobretudo cobrar de nós mesmos os deveres.   Cafezinho com Wanderley O BRASIL COMO REPÚBLICA IMPERFEITA Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político O Brasil é um país republicano, em parte. Em parte ainda […]

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Wanderley Guilherme nos lembra, mais uma vez, que a cidadania é uma estrada de mão dupla. Temos que cobrar nossos direitos, mas sobretudo cobrar de nós mesmos os deveres.

 

Cafezinho com Wanderley

O BRASIL COMO REPÚBLICA IMPERFEITA

Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político

O Brasil é um país republicano, em parte. Em parte ainda menor, um país constitucionalizado. É trivial denunciar comportamentos de governantes que escapam às mínimas exigências de uma república efetivamente enraizada. Mais difícil é encontrar críticas ao colega de profissão. Autocrítica, então, é conceito mofado da cultura brasileira. Para todo mundo, agir republicanamente é problema do governo e do Estado, não dos cidadãos. Aliás, uma restrição freqüente ao governo consiste exatamente em responsabilizá-lo pela falta de republicanismo da população.

Diversos capítulos constitucionais relativos a direitos sociais, econômicos e políticos não valem em enorme porção do território nacional. O direito de ir e vir, por exemplo, depende da boa vontade de chefes de quadrilhas, e me refiro não apenas aos bandos de traficantes urbanos controladores de áreas periféricas, mas igualmente aos grandes proprietários e empresários por essa imensidão afora que abusam do trabalho infantil ou mantêm em regime de semi-escravidão seus trabalhadores assalariados. Trata-se de um retrato enviesado esse que revela um Brasil reclamando a ausência do governo em áreas sensíveis da população. Faltam hospitais e escolas, sem dúvida, fato notório, mas inexistem também as condições que permitem a qualquer cidadão brasileiro o usufruto do direito constitucional de ir e vir. Para milhões, passeatas são um luxo accessível a urbanitas, independente de sua posição na escala de renda.

Até recentemente, o direito de livre expressão de pensamento não ultrapassava a materialidade dos compêndios de direito e dos exemplares impressos da Constituição de 88. Na prática, ele se limitava à liberdade de subir em um banquinho e arengar aos passantes. Sua eficácia era igual a zero. Com a concentração oligopólica dos meios de comunicação, a oportunidade de concorrer ao apoio da opinião pública, via expressão de argumentos e idéias, desapareceu. São poucos os comentaristas e cronistas a dispor dos meios de persuasão social, ao abrigo de contraditas e concorrência. Assim se gera um conjunto de celebridades, altamente narcisistas, que exploram até a exaustão o direito de dizer o que bem entendem sobre o que bem entendem. A taxa de sandices a disposição do público é formidável, sem que, também de forma eficaz, se mostre a esse mesmo público que os filósofos, pensadores, cronistas do quotidiano, analistas de política e sociólogos de algibeira não passam em muitos casos de charlatães. No melhor dos casos, inconscientes do que o são.

No Brasil de hoje o direito eficaz de livre expressão está subjugado ao inacreditável regime de apropriação de uma concessão pública, operado por minúsculo número de entidades privadas que controlam TVs, rádios, jornais e revistas. Acreditar que, no Brasil, prevaleça o direito de livre expressão equivale a entregar-se a uma servidão voluntária. O poder corruptor do sistema é imenso, fascinando os mais diversos segmentos da sociedade. Poucos são os políticos que resistem ao fascínio de dez segundos de televisão. Para nada dizer dos membros do Executivo, da burocracia e do poder judiciário.

Este é o aspecto mais relevante dos novos meios de conexão: a quebra material do oligopólio que usufruiu até agora o direito constitucional de livre manifestação do pensamento. É mérito da tecnologia em si, assim como os devidos à imprensa escrita e ao rádio. Nada impede que, tal como ocorreu com as inovações anteriores, estas sejam postas a serviço do mal – e com freqüência o são. Crucial foi o aparecimento de meios materiais que viabilizam o usufruto do direito de livre expressão, mesmo que ainda sem músculos suficientes para se sobrepor aos meios de comunicação privadamente seqüestrados.

Ademais de tornar materialmente factível o direito constitucional de livre expressão, as redes sociais dão oportunidade a que se concretize outra característica das democracias constitucionais: o direito de ajustar, coletivamente, a agenda púbica governamental às preferências, digamos, instantâneas da população. Nada a ver com democracia instantânea. Trata-se da criação de um canal de comunicação que opera em ritmo veloz, trazendo informações sobre fatos e preferências que clamam por atenção. A partir daí, trata-se de política normal, formando-se os prós e os contra ao longo do debate instituído.

O sociólogo Adalberto Cardoso, em arguto comentário sobre os idos de junho, apontava para o aspecto sociológico e político das movimentações: a revelação de que organizar a ação coletiva – um sério problema para todos que desejam obter ouvidos públicos – tornou-se bem menos cara, por assim dizer, favorecendo a participação de quem o desejar, como requer a democracia. Outra vez, o que se fará com o dom tecnológico há de depender de quem o saboreie.

Agora os governos estarão a braços com dois problemas: o de implantar a república em todo o território nacional e o de universalizar o direito de eficaz livre expressão da vontade desses repúblicos.

(Desenho de Juliano Guilherme n.8. O cachorro e a musa. Coleção Cadernos)

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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