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O xeque-mate de Wanderley e os comícios de ontem e hoje na Central do Brasil

Uma crônica sobre destino, ideologia e manifestações.

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É com certo alívio que reproduzo abaixo este artigo de Wanderley Guilherme, em que ele sugere ao governo um movimento que seria um verdadeiro xeque-mate no blocão fisiológico liderado pela direita da base: aproveitar a convocação dos ministros para fazer uma exposição detalhada dos programas e ações de suas pastas, e falar de projetos e estratégias de futuro.

Alívio porque Wanderley lembra do comício da Central do Brasil, o maior ato público organizado por um presidente da república na história do país.

O professor informa que estava no comício da Central, em 1964.

Pois é, eu estava no “comício” da Central, em 13 de março de 2014, organizado pelas centrais.

Foi um evento muito menor do que se planejou. Em termos de público, foi um fiasco. Não deu nem 300 pessoas. As centrais ainda usam métodos antigos para mobilizar. Imprimem cartazes, ao invés de fazer um trabalho político nas redes sociais.

Os trabalhadores que passavam pelo local olhavam para o carro de som, para as bandeiras e para os políticos discursando como se estivessem diante de extraterrestres. Ou pior que isso, já que ETs ao menos despertariam a curiosidade.

Além de pouca gente, era um ato esquizofrênico, porque um orador subia ao carro de som e fazia elogios a Lula e a Dilma. Depois vinha outro e desancava a presidente. E assim sucessivamente. Era um tanto cansativo.

Todos os grupos de esquerda e extrema-esquerda estavam presentes.

No entanto, o evento foi representativo em termos de autoridades. O senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP) apareceu e discursou. Luciana Genro, deputada federal pelo mesmo partido, também falou. A deputada federal Jandira Feghalli (PCdoB-RJ) e os deputado estaduais Robson Leite (PT-RJ) e Gilberto Palmares fizeram suas intervenções.

João Pedro Stédile, dirigente do MST, apareceu e falou também. Um quadro do PSB fez um discurso contra a ditadura em nome do presidente do “nosso partido”, Eduardo Campos.

Em dado momento, um dos índios que foram expulsos da Aldeia Maracanã (eles ocupavam um prédio abandonado nas imediações do estádio Mario Filho), começou a andar para lá e para cá diante do carro de som, tocando um chocalho, e gritando:

– Não vai ter Copa.

Parecia um disco arranhado, sempre a mesma frase. Um dos garotos da União da Juventude Socialista (UJS), fez um comentário, em voz baixa, do tipo:

– Puta que pariu.

Só que não havia nenhuma agressividade no ar. Todos os grupelhos de ultra-esquerda, que em outras oportunidades se comeriam vivos, porque são inimigos uns dos outros, incluindo dois ou três coxinhas, que são adversários de todos os grupos anteriores, estavam ali, com suas bandeiras, juntos, pacificamente.

Essa esquizofrenia talvez tenha sido a característica mais interessante do evento. Porque a razão de todos ali estarem tranquilos e confiantes era justamente a garantia democrática.

De repente o índio estava pendurado lá em cima do carro de som. Alguns minutos depois lá estava ele no alto do carro, microfone na mão, gritando Fora Dilma e entoando o mantra: Não-vai-ter-Co-pa!

Era uma maluquice só. Uma manifestação pequena e esquizofrênica, mas radical e profundamente democrática.

Eu não sabia o que escrever sobre isso. Por isso eu achei tão oportuno o artigo de Wanderley. Porque tocou num ponto importante, inclusive porque, talvez inconscientemente, Wanderley Guilherme tenha sugerido uma autocrítica ao próprio governo João Goulart. Afinal, Goulart arriscou-se a defender as reformas de base, mas na prática não fez nada, porque foi derrubado.

Daí chegamos a um interessante impasse filosófico: o que é melhor, fazer grandes discursos e aprovar projetos ousados, em prol das grandes reformas brasileiras, e ser derrubado, não concretizando nenhuma promessa e dando margem a um longo e terrível retrocesso social e político; ou fazer discursos moderados, ou nem fazê-los, e aprovar e concretizar mudanças tímidas?

O que é melhor, o intrépido que fracassa, ou o medíocre que triunfa?

O que é melhor, apaixonar as multidões, e depois abandoná-las à sanha e truculência dos golpistas, ou anestesiar as paixões do povo, mas jamais abandoná-lo, jamais expô-lo ao risco de tragédias sociais e políticas?

O que é melhor, juntar uma multidão para festejar a democracia, e depois ver a democracia ser massacrada por tanques de guerra, ou juntar um punhado de militantes, num comício meia-boca, mas garantir a democracia por mais mil anos?

São dúvidas tolas, quase delirantes, porque a história tem sua própria dinâmica, ligada a circunstâncias que jamais se repetem. E as decisões pessoais tomadas por lideranças políticas no calor do momento refletem, no fundo, um jogo de forças muito acima da compreensão das próprias lideranças.

De qualquer forma, parece que vivemos, hoje, uma era diferente, sem grandes paixões. As manifestações de junho foram um soluço de participação popular, mas talvez não tenham passado disso, um soluço. E, por um lado, é até bom que tenha sido apenas um soluço, porque o tipo de paixão de que precisamos não é a paixão contra a democracia, contra as instituições, um sentimento vazio, difuso, violento. A paixão que precisamos é uma paixão inteligente, nascida em primeiro lugar no próprio coração da doutrina democrática, que é uma paixão primeva e antiga do povo, capaz de se transformar em planos concretos de ação política.

Eu sou a favor da intrepidez, que fique bem claro. Mas é evidente que a intrepidez sem segurança, como tínhamos com João Goulart, não pode ser repetida. O Brasil tem de ser ousado, mas caminhar com muita confiança na estabilidade de suas instituições democráticas.

A estabilidade que temos hoje é suficiente para nos dar confiança? Talvez sim. Ou talvez o próprio golpe tenha sido aplicado justamente para que nunca mais pudéssemos confiar em nós mesmos. Para que houvesse sempre medo. Um medo agora tornado atávico, arraigado profundamente no inconsciente de todo um povo.

Para o bem ou para o mal, aprendemos duras lições com o golpe de 64. Não adianta pretender fingir que ele não ocorreu e tentar engatar o fio cortado em abril de 64 aos dias de hoje. Uma dessas lições é que um governo, por mais popular que seja, deve manter um olho sempre aberto nos ataques que vêm de dentro, das próprias instituições, e de fora, de interesses internacionais contrariados.

Não podemos esquecer que o golpe de 64 não foi apenas uma quartelada. Teve apoio do STF, parlamentares, governadores, juízes, procuradores e, servindo de liga para todas essas forças, mídia, que por sua vez recebia patrocínio dos EUA.

Assim como em 1964, o governo federal faz muitas coisas, mas a imprensa não divulga, criando, ao menos junto ao público que ela atinge, a sensação de pasmaceira, retrocesso, mal estar.

“Esse país é um lixo”, “tenho vergonha de ser brasileiro”, é a frase mais repetida nas redes sociais, o que é curioso, porque o Brasil nunca esteve tão bem. Ainda estamos uma merda, eu sei, mas a merda anterior era muito pior. Uma coisa é ser um país de merda com pleno emprego, grandes obras em andamento e salários crescendo bem acima da inflação. Outra coisa é ser um país de merda com desemprego altíssimo, sem nenhuma obra de infra-estrutura e salários em queda.

Estou lendo A democracia na América, de Tocqueville, e agora entendo como os valores democráticos se enraizaram na cultura norte-americana desde seus primórdios, desde as primeiras colônias, e foram esses valores que lhe garantiram um duradouro e estável desenvolvimento. E por quê? Porque esses valores sempre estimularam as pessoas a participar da organização política local. A comunidade não esperava o governo construir uma escola: ela mesmo o fazia. Por isso é tão contraditório escutar nossos direitistas falando em “menos governo” mas sem acenar com nenhuma contrapartida cidadã.

Um movimento por menos governo e menos impostos só teria sentido se viesse acompanhado de campanhas para que as pessoas participassem mais da administração dos problemas da cidade: por exemplo, varressem as ruas; colaborassem, inclusive financeiramente, com as escolas públicas da comunidade, mesmo que seus filhos lá não estudassem; criassem comitês civis para monitorar as contas da prefeitura; organizassem campanhas para construir abrigos para moradores de rua.

Não tem sentido reclamar do transporte público e ao mesmo tempo depredar pontos e incendiar ônibus. Não tem sentido chamar o Brasil de “lixo” e protestar jogando latões de lixo nas ruas. Reclamar da violência e apoiar hordas de justiceiros. Falar mal da educação pública e, tendo a oportunidade de entrar num curso universitário, não se aplicar nos estudos.

Voltando ao pequeno e esquizofrênico comício na Central de que participei nesta quinta-feira, ao final, quando já estávamos indo embora, eu vi o ambulante onde compramos cervejas cantando sozinho, em voz alta:

– Vai ter Copa! Vai ter Copa!

Ao texto do Wanderley.

*

UM COMÍCIO DA CENTRAL DO BRASIL NO LEGISLATIVO

Como eleitor, espero que o governo aproveite esses convites da Câmara de Deputados e promova o seu comício da Central do Brasil dentro do Legislativo.

Por Wanderley Guilherme, na Carta Maior.

Muito bem vindos os convites parlamentares a executivos de órgãos públicos para conversas sobre o andamento do governo. Deviam ser repetidos a cada dois anos. Os governos teriam excelente oportunidade de prestar contas ao Legislativo e aos eleitores. Governos deficientes temem esses momentos por ficaram expostos ao júri da população por intermédio de seus representantes no parlamento. Estes, por sua vez, anseiam pela entrada em cena e mostrar serviço a suas bases eleitorais.

Ao final de seu governo, Fernando Henrique Cardoso conhecia as pesquisas em que 34% dos entrevistados o consideravam pior do que o de Itamar Franco. Na verdade, julgavam-no pior do que seu próprio primeiro mandato. Provavelmente, esta é uma especulação, o temor existia porque não havia clima comemorativo nem do Plano Real, visto que a inflação voltara às alturas, o desemprego neoliberal explodia, a economia do país patinava e as reservas cambiais andavam aí pelos 37 bilhões de dólares. Hoje é possível, em seminários comemorativos, antigos operadores do governo FHC darem outra versão a auditórios adrede selecionados. À época não se atreveriam a passar pela porta dos fundos da Câmara dos Deputados.

Em geral, os patrocinadores desses convites são parlamentares com inclinações para a implicância crônica. Mas a motivação não é tão relevante quanto a oportunidade que oferece aos governos de revelarem os êxitos que imaginam ter e os revelarem à opinião pública. No momento, estimo tratar-se de feliz programação para que o governo exiba os seus números e os explique. Ótimo que a Petrobras tenha sido convidada a falar sobre contratos na Holanda. Deve aproveitar e dar satisfações sobre o andamento do capítulo pré-sal comparando-o às profecias pessimistas, expor os planos de investimentos e sua viabilidade, os estímulos a setores industriais e à criação de emprego.

Pessoalmente, gostaria de me atualizar quanto ao progresso da agricultura para exortação e para consumo interno, quanto aos portos, malhas ferroviárias e rodoviárias em execução para ajustar a infra-estrutura à sua crescente capacidade de produção agrícola e industrial. Importa divulgar o currículo do atual governo nas áreas de educação em todos os seus níveis, da saúde, especialmente do sistema hospitalar público, prevenção de doenças. De especial relevância é o esclarecimento quanto à eficácia desses números em termos de gente: quantos eram educados, quantos são agora, a incidência crescente ou decrescente de moléstias que assaltam sobre tudo as comunidades mais pobres. De tudo isso é indispensável que se conheça também o que está em andamento e as projeções nas áreas analisadas.

Como eleitor, espero que o governo aproveite esses convites da Câmara de Deputados e promova o seu comício da Central do Brasil. De dentro do Legislativo para todos os brasileiros. O que mudou no Brasil e que é incontroverso, e o que é necessário que se continue a fazer para mudar o Brasil, de país de miseráveis, para país sem miseráveis, de país sem portos, ferrovias, aeroportos, rodovias, para uma nação que seja uma floresta de fábricas gigantes em funcionamento sustentável, sem medo de crescer, atento à agenda urgente das populações finalmente incorporadas à vida da nação. Acima de tudo, o compromisso inquebrantável de que o dinheiro é para servir ao país e não o país servir ao dinheiro. Gente em primeiro lugar, depois o cifrão.

Nenhum lugar mais apropriado do que uma das Casas do Congresso como sede e palanque para um grande comício democrático, de prestação de contas, de esclarecimentos de dúvidas e, também indispensável, a declaração de compromissos inquebrantáveis com os rumos traçados tendo o povo brasileiro como norte, dispensando a tecnocracia dos manuais financiados pelos rentistas das dificuldades alheias.

Não desejo um governo preconceituoso em relação aos empreendedores, aos que criam empregos, aos que investem como decisão estratégica, mas saber distingui-los dos aventureiros. Estive no comício da Central do Brasil em 13 de março de 1964. Espero revê-lo, sem susto e sem temor de golpismos, em promoção conjunta do Legislativo e do Executivo brasileiros.

20110310-140364

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Celso Orrico

15/03/2014 - 09h58

boa oportunidade, seguindo a dica magistral do Professor Wanderley Guilherme , fazer do limão uma limonada: usa a tribuna da Câmara para mostrar as ações do Governo e rebater as falácias da oposição e além disso, dar um passa moleque no Eduardo Cunha e assemelhados..vamos ver se Dilma e seus Ministros aproveitam essa oportunidade e enquadra o PMDB.
Bom fim de semana
Abraços


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