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Futuros do Brasil: políticas sociais contra o discurso da ‘ingovernabilidade’ e da ‘crise terminal’

Por Eliane Bardanachvili, para o CEE-Fiocruz A construção do discurso de uma “crise terminal” e da ingovernabilidade no país, para justificar medidas que afetam diretamente a área social, e uma mudança na configuração da esquerda e da direita foram pontos levantados nas contundentes análises dos professores Ligia Bahia, da UFRJ, e Eduardo Fagnani, da Unicamp e […]

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Por Eliane Bardanachvili, para o CEE-Fiocruz

A construção do discurso de uma “crise terminal” e da ingovernabilidade no país, para justificar medidas que afetam diretamente a área social, e uma mudança na configuração da esquerda e da direita foram pontos levantados nas contundentes análises dos professores Ligia Bahia, da UFRJ, e Eduardo Fagnani, da Unicamp e da Plataforma Política Social, no segundo debate online da série Futuros do Brasil, do CEE-Fiocruz, em 5/11/2015. Sob o tema As políticas sociais em uma encruzilhada, os professores falaram para os internautas conectados, que puderam fazer perguntas em tempo real, e para uma plateia de convidados, entre eles, Lucia Souto, da diretoria executiva do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), o professor e sanitarista José Noronha, e os jornalistas Miguel do Rozário, à frente do blog O Cafezinho, e Luana Bonone, secretária regional adjunta da SBPC no Rio de Janeiro, representando o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé.

Ligia Bahia abriu o debate apresentando o que chamou de “modelos interpretativos da atual conjuntura”, no que diz respeito às políticas sociais e, em especial, à política de saúde. O primeiro modelo seria o do poder heroico, segundo o qual “somos Davi contra Golias, acertamos na política, o SUS é bom, deu certo, conseguimos convencer os constitutintes de como seria importante uma política social de saúde no país”, conforme definiu. Esse modelo, acrescentou Ligia, tem uma “versão otimista”, de exaltação do sistema como um dos maiores do mundo, e uma “versão pessimista”, segundo a qual a onda neoliberal impediu que se avançasse e se superasse a desigualdade econômica e uma onda coservadora. Outro modelo descrito por ela é o que chamou de modelo coitadinho, que tomaria o SUS como programa de inclusão social, não como política universal.  Para ela, o Sistema Único de Saúde (SUS) é um consenso, mas um consenso vazio.

Existe o ‘modelo coitadinho’ que toma o SUS como programa social, não como política universal (Ligia Bahia)

Ligia lembrou que o sistema resultou de uma aliança de centro-esquerda, durante o processo constituinte, na década de 1980.  “Será que não houve um deslocamento da esquerda para o centro?”, indagou. “Somos militantes aguerridos, que se apresentam nas conferências e outros fóruns, como defensores do SUS, mas do SUS para pobres”, considerou. Ela observou que hoje petistas estão à frente de grandes grupos econômicos. “Dois dos três empresários das maiores empresas de planos de saúde brasileiras, são petistas declarados, contribuintes de campanha para Dilma Rousseff. Não é o mesmo cenário que tivemos, com empresários claramente de direita, que se aliaram ao Centrão”, comparou, acrescentando que mesmo entre os que a princípio pertencem a um mesmo grupo, hoje, têm pensamentos antagônicos. “Nem a esquerda é a mesma, nem existe mais aquela direita que nós derrotamos no processo de debates e aprovação da Constituição”.

Nem a esquerda é a mesma, nem existe mais aquela direita que nós derrotamos no processo de debates e aprovação da Constituição (Ligia Bahia)

A privatização da saúde também foi alvo da análise de Ligia, que alertou para o papel que a medicina privada vem exercendo no contexto da Saúde, citando, em especial a concepção do Livro Branco – Brasil Saúde 2015: A Sustentabilidade do Sistema de Saúde Brasileiro, publicação produzida pela Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) e entregue em 2014 aos pré-candidatos à Presidência da República. “A medicina privada paulista contrata uma consultoria, escreve um livro e diz que está falando em nome do bem comum. E isso acaba sendo absorvido pelas duas candidaturas!”.  Ela criticou ainda o protagonismo do médico Drauzio Varella no cenário da Saúde. “O problema é que ele é o ministro da Saúde, fala sobre a saúde pública, câncer, é a autoridade sanitária do Brasil”.

Apresentando em slides dados relacionados à formação profissional, Ligia, descreveu um cenário no qual as novas escolas médicas, entre elas a da Universidade Estácio de Sá, “vão alavancar grandes grupos econômicos”. Ela apontou também para a “filantropização das organizações sociais (OSs), que querem abrir hospitais privados para atendimento exclusivamente por meio de planos de saúde e para o fato de a concessão concessão de bolsas ao programa Mais Médicos se dar pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). “E isso está acontecendo debaixo do nosso nariz”.

Ligia conclamou os que consideram que o SUS é uma política universal, não uma política para pobres, a “retomar o fio da meada” e se organizar. “Temos que ser realistas, interrogar sobre quais são as alianças que vamos fazer hoje. Com empresário petista, não petista, com todos os eleitores, ou alianças pontuais”. Para ela, as eleições municipais de 2016 representam momento importante. “É importante que nos organizemos e nos apresentemos para esse debate eleitoral. Os programas eleitorais têm sido formulados sem nossa presença. Uma certa falta de vontade de interferir. Temos que conversar com a Rede, com o partido do Ciro Gomes, com o PMDB, com o PT, com o PSOL, e nos tornar de novo interlocutores nesse debate sobre saúde”.

As novas escolas médicas, entre elas a da Universidade Estácio de Sá, “vão alavancar grandes grupos econômicos (Ligia Bahia)

Para o professor Eduardo Fagnani, está em curso uma tentativa de se “implantar um projeto super ultra liberal no país”. Ele fez um resgate histórico das conquistas obtidas com a Constituição de 1988 e as contramarchas que dificultaram sua plena concretização. Ele citou versos de Cazuza, na música O tempo não para: “Eu vejo o futuro repetir o passado eu vejo um museu de grandes novidades”.  Fagnani avaliou que a cidadania social conquistada em 1988 é “um ponto fora da curva do capitalismo brasileiro”. Para ele, se 90% das propostas da Constituinte integram a Constituição, esta acabou mostrando-se um obstáculo à agenda neoliberal que se configurava. “Até 88, não havia espaço para as teses liberais no Brasil, porque estávamos fazendo uma acerto de contas com a ditatura. Mas depois isso muda. A força social dos anos 80 se esgotou”.

O professor lembrou, ainda, que estava prevista uma revisão constitucional em 1993, que não se realizou devido ao impeachment do presidente Fernando Collor, e que se orientava pela privatização. “Passamos a ter, de 1993 a 2002, a conta-gotas, as reformas [privatizantes] que não foram feitas de chofre, na educação superior, na saúde, com a criação das organizações sociais, em 1997, a DRU [desvinculação de receitas da União, de 1994, que, na prática, permite que o governo aplique os recursos destinados a áreas como educação, saúde e previdência social em qualquer despesa considerada prioritária]”, enumerou.

Até 88, não havia espaço para as teses liberais no Brasil, porque estávamos fazendo uma acerto de contas com a ditatura. Mas depois isso muda. A força social dos anos 80 se esgotou (Eduardo Fagnani)

Ele alertou para a repetição hoje, “como um mantra” da “tese da ingovernabilidade”, da década 1980. Nesse sentido, lembrou uma frase dita na época pelo então presidente José Sarney – “Se vocês aprovarem essa Constituição, o país será ingovernável” – e uma declaração do senador constituinte Roberto Campos, de que a Carta de 88 “era ao mesmo tempo um hino à preguiça e um estimulo à ociosidade, um anacronismo moderno”.

Para Fagnani, o país vive, hoje, “o segundo retorno da Agenda Perdida”, referindo-se ao documento produzido em 2002 por 17 economistas liberais, como Marcos Lisboa, Ricardo Paes de Barros e Samuel Pessoa. “Quando o Palocci [Antonio Palocci, ministro da Fazenda do governo Lula, até 2006], entrou, trouxe esses economistas para dentro do governo”, observou Fagnani, para quem essa política está sendo retomada, “com os mesmos personagens”, hoje. “As elites brasileiras nunca aceitaram que o movimento social capturou, em 1988, 10% do PIB do orçamento federal para a questão social. Esse é o ponto. Temos contramarchas o tempo todo, nos anos 90, 2003, 2004, 2005, 2006. E agora isso volta com tudo”, analisou.

As elites brasileiras nunca aceitaram que o movimento social capturou, em 1988, 10% do PIB do orçamento federal para a questão social (Eduardo Fagnani)

Para Fagnani, construiu-se um discurso segundo o qual o Brasil está em uma crise terminal, que os dados não comprovam. “O dado apresentado é de um déficit primário, referente a despesas não financeiras, de saúde, educação, de 0,6%, quando teríamos que ter superávit de 1%. Mas, a partir da crise de 2008, nenhum país faz superávit. A Índia tem déficit primário de 2%; a média dos países desenvolvidos europeus é de menos 5%.; no Japão, o déficit primário foi de menos 8%, menos 10%, menos 6%. Pedi a uma aluna minha para ligar para o Japão, para ver se o país ainda está lá. Se o Brasil está terminal com 0,6%, o Japão só pode ter acabado”, ironizou, observando que essa narrativa passou a ser dominante, sem que o governo travasse qualquer embate. “Não sei por que, o governo aceita esse diagnóstico”.

O professor criticou a proposta de fazer a inflação chegar ao centro da meta a qualquer custo, aumentando o índice de desemprego, como único caminho a se tomar. “Aumentando o desemprego, as pessoas deixam de ter renda e, assim, deixam de comprar e cai a demanda agregada. Os economias liberais escreveram isso! Artigos publicados em 2013 dizem que é impossível levar a inflação ao centro da meta com uma taxa de desemprego tão baixa”. Fagnani explicou que a saída para a crise é não fazer recessão e que a taxa de desemprego já pulou de 4% para 8%, e vai chegar no começo do ano que vem a dois dígitos. “É evidente que em 2017 a inflação vai estar no centro da meta, mas a que custo?”

O neoliberalismo é muito mais esperto do que já foi, porque utiliza o aparelho do Estado intensamente (José Maurício Domingues)

Mediador do debate, o sociólogo José Maurício Domingues, do Iesp/Uerj, pesquisador associado do CEE-Fiocruz, apontou que o neoliberalismo que orienta o país hoje é “muito mais esperto do que já foi, porque utiliza o aparelho do Estado intensamente e, ao mesmo tempo, está muito atento à questão do pauperismo”. Trata-se, segundo ele, de um social neoliberalismo. “As coisas ocorreram de forma dramática, e não há um discurso que se oponha a isso”.

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