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A discussão no STF sobre a classificação indicativa

Os jornais festejaram discretamente a decisão de quatro juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) de fincarem pé numa posição ultraliberal em relação à liberdade das emissoras de exibirem conteúdos no horário que lhes convier, desde que informando a classificação etária.

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(Acima a íntegra da votação do STF que liberou emissoras a exibirem qualquer programa a qualquer hora).

Os jornais festejaram discretamente a decisão de quatro juízes do Supremo Tribunal Federal (STF) de fincarem pé numa posição ultraliberal em relação à liberdade das emissoras de exibirem programas no horário que lhes convier, desde que informando a classificação etária.

A nota jornalística do STF está aqui e a íntegra do voto do ministro José Antonio Toffoli, que causou tanta polêmica na blogosfera, aqui.

Luis Nassif fez um post curto e grosso contra o voto de Toffoli. Reproduzo abaixo um trecho:

Em que mundo vive Toffoli. Na TV fechada há a possibilidade de travar programas e filmes com classificação de adultos. E na TV aberta?

Julga ele que os pais têm condições de acompanhar diuturnamente o que os filhos assistem na TV aberta?

Se essa lógica impera, o que impediria um canal de apelar para a pornografia, para a violência desmedida, para o preconceito e a intolerância? Nada.

Não vou julgar as intenções de Toffoli. Para mim, é mais um caso de quem quer ser aceito pelo establishment, sem nenhuma noção sobre os efeitos da TV aberta na formação de valores e do estado de espírito nacional.

Na blogosfera, a maioria reagiu também agressivamente ao liberalismo desses juízes, sobrando muitas críticas a Lula, por tê-los escolhido.

Dessa vez, porém, discordarei de Nassif e da maioria. Nessa área da liberdade da expressão, eu acho que vivemos tempos de abertura. De fato, os pais não tem como vigiar diuturnamente o que os filhos vêem na TV. Mas vivemos tempos especiais hoje em dia. Boa parte de nossas atuais crianças e adolescentes têm acesso à internet, espaço de perigosa liberdade, onde mesmo com filtros, fica difícil controlar o que eles vêem e escutam. E acho injusto que as crianças e adolescentes que não tem acesso à internet sofram com as restrições impostas a emissoras de TV aberta de exibirem filmes e programas que seus colegas mais abastados tem muito maior acesso através de locadoras de filmes, sites de download, etc.

Escutei a apresentação dos advogados e o voto dos juízes, e de fato os argumentos pró-liberdade me pareceram melhor embasados. E acho que há exagero na preocupação sobre “danos” provocados ao espírito nacional e às crianças e adolescentes por conta de programas ou filmes exibidos. O vale-tudo midiático hoje em dia é tão disseminado e estamos prestes a viver, com a conversão digital, uma invasão tão avassaladora de conteúdos, que talvez a disposição do Estado em restringir programas a certos horários seja simplesmente inócua.

O argumento principal dos advogados da Abert não consiste em denunciar que a classificação indicativa seja uma censura, mas a sim imposição de horários restritivos, restrição que aliás não consta no Estatuto de Lei da Criança e do Adolescente.

A advogada da posição que defende a restrição de horários me pareceu ansiosa e irritadiça, o que prejudicou a sua exposição. E seus argumentos, citando legislações estrangeiras provavelmente datadas do pós-guerra, não convenceram muito, tanto que os juízes votaram todos em favor da liberdade. De qualquer forma, não acho saudável essa mania de ancorar argumentos na realidade de outros países. Devemos defender princípios legais com base no entendimento da justiça, em primeiro lugar, e das circunstâncias nacionais,, e não no fato de que tal país “avançado” possui tal e qual legislação.

Acho injusta a acusação do Nassif, portanto, de que o ministro Toffoli tenha agido “por vaidade”. Ele o fez por convicção, visto que, de fato, tanto a Constituição Brasileira quanto a lei que regulamenta a classificação dos conteúdos audiovisuais são bastante claras que as restrições de horário são meramente “indicativas”.

A tendência presente na Constituição Brasileira, e muito forte na vanguarda da ciência jurídica nacional, é pela liberdade, mesmo que sofrendo seus riscos. O trauma da ditadura militar se faz presente o tempo inteiro, operando com uma sombra que, ironicamente, protege as liberdades do sol da superproteção estatal.

Por outro lado, a chamada grande mídia explora a liberdade anárquica de que dispõe com uma desfaçatez que revolta setores sociais influentes. É aí, porém, que reside uma certa confusão e uma situação perigosa para os grupos progressistas.

O fato de termos uma mídia ideologicamente conservadora está empurrando a esquerda para um posicionamento agressivo e reacionário em relação à liberdade de expressão. Os exemplos são muitos. A mesma esquerda que, sob a ditadura, celebrava a revolução sexual e a liberdade das artes, vem se tornando pudica, rancorosa, obcecada por leis e marcos regulatórios. Estes devem existir, mas os seus princípios devem seguir o espírito da Constituição Brasileira, que é uma das mais libertárias do mundo.

Por fim acho que as pessoas estão vendo esses debates apenas pelo viés negativo, e confundindo uma realidade nociva, que é a concentração dos meios de comunicação no país, com um princípio constitucional positivo, quase sagrado, que é a proteção incondicional da lei brasileira à liberdade de expressão. Não se pode pensar a liberdade das emissoras apenas como o direito profano delas de exibir pornografia. O bom senso e outras leis impedirão esses exageros. Deve-se olhar sobretudo para o lado do produtor de conteúdo: um filme, como Cidade de Deus, que tem cenas de violência, sexo e drogas, e que, portanto, em teoria, não deveria ser visto por crianças e adolescentes. Mas que, na prática, é visto por todos, porque é um filme de grande apelo popular, por sua qualidade técnica e narrativa. Um garoto da elite tem liberdade total para assistir dezenas de canais de tv fechada, e seus pais em geral não ligam para o que assiste. Enquanto isso, o garoto pobre é obrigado a assistir xaropadas infantilóides na tv porque o Estado acha que ele não está preparado para ver “filmes pesados”. Entendendo que um filme pode transformar a vida de uma pessoa, caimos num dilema antigo: a mesma lei que dá poder ao Estado para fazer um grande favor a um adolescente, ao evitar que ele assista determinada obra de arte pode “prejudicar o desenvolvimento de sua personalidade”; a mesma lei pode igualmente interferir tragicamente em sua vida, ao tolher-lhe o acesso a um conteúdo que o teria influenciado a seguir um caminho tal que o levaria a uma vida melhor.

Essas mesmas liberdades, que alguns acham negativas por aumentarem o poder da grande mídia oligopolizada, será importante para garantir um ambiente favorável aos produtores independentes de conteúdo, os quais constituem, em última instância, a única arma realmente efetiva na guerra contra o conservadorismo cultural e, por conseguinte, contra as doutrinas ideológicas impostas pelos senhores da comunicação de massa.

 

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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