CPI deve pedir fim de publicidade estatal na Veja

Ilustração capa: Nilton Pinho.

Quando fico por baixo, eu fico doidão, seria a tradução, meio vulgar, para When I get low, I get high. A música, famosa na voz de Ella Fitzgerald, me veio à mente como defesa instintiva contra a tsunami de denúncias que eu li ontem e hoje, nos jornais e na blogosfera. Tanta sujeira que a alegria algo maligna que eu vinha sentindo por assistir, no conforto do meu apartamento, à derrocada de todo um grupo de mafiosos, levando de roldão um senador hipócrita e uma publicação protofascista, foi substituída por tédio e melancolia. Vontade de ouvir música, bebericar um uísque e esquecer tanta podridão.

Os jornais televisivos trouxeram áudios que mostram Cachoeira mencionando valores que totalizam R$ 3,1 milhões destinados ao senador bandido. Outras notas falam de mais presentes do bicheiro ao senador, como vinhos cujo valor no Brasil chegaria a R$ 30 mil a garrafa.

Lembrei da música de Ella porque ela mostra a diferença incrível entre o mundo dos “grandes” e as vicissitudes dos simples mortais. Uns recebem 3,1 milhões de “gorjeta”, vinhos de 30 mil, viagens pré-pagas a Las Vegas, outros sofrem porque o bolso da calça lhes parece, subitamente, grande demais, experimentaram um baque amoroso, ou a temperatura ambiente cai abaixo de nove graus negativos num momento inoportuno.

De repente sentimos, dolorosamente, nossa condição de plebeus.  

Deixemos a viadagem poética de lado, porém, e nos concentremos na lama.  A blogosfera progressista mostra a que veio e com dentes afiados, aplica mordidas cada vez mais profundas nos fariseus da imprensa.  O grupo de Cachoeira se utilizava da Veja para promover seus interesses econômicos. É um escândalo pior do que vimos na Inglaterra, com Rupert Murdoch. Lá, os jornais, mal ou bem, visavam apenas vender mais exemplares, utilizando-se, para isso, de grampos clandestinos. Aqui, além de usar espionagem ilegal, a revista de Civita beneficiava, conscientemente, um esquema mafioso, e usava as informações dadas por este mesmo grupo, que tinha conexões políticas poderosas, para tentar derrubar um governo democrático.  

A balança usada para determinar a gravidade de tais crimes ainda é nova demais. A cultura brasileira ainda não se preparou para ver a mídia como uma força política cuja liberdade deve ser defendida na mesma proporção com que se deve puni-la por abusar desta liberdade, sobretudo se os abusos têm como objetivo promover interesses criminosos, desestabilizar a república e fortalecer o poder de políticos corruptos. 

Ainda na blogosfera, alguém lembrou de uma coisa que me causou calafrios. 

Lembram-se da campanha contra Sarney? Mobilizou a mídia, astros do mundo pop (Marcelo Tas tornou-se uma espécie de guru político da garotada no Twitter), e a oposição. Demóstenes Torres era o verdugo mais implacável do velho oligarca do Maranhão. 

Entretanto, alguns blogueiros (eu, por exemplo) lembravam que o substituto de Sarney era justamente… Marconi Perillo. Quem acompanha de perto a política, sabia que o então senador, caso feito presidente do Congresso, representava um grande perigo para a estabilidade da República. Com as informações que temos hoje, vemos que este perigo foi  subestimado.  

Todos aqueles inocentes úteis, inclusive a ultra-esquerda em peso, que tanto atacou Lula porque o presidente defendeu Sarney com unhas e dentes, deveriam refletir profundamente sobre o que aconteceria caso um destacado membro do “Clube Nextel” assumisse o segundo cargo mais importante da República.

Outra denúncia bastante perturbadora (e também não vista por Merval Pereira, quando defende a Veja em sua coluna deste domingo) é a participação do trio Cachoeira, Demóstenes e “Poli” na espionagem ilegal do escritório de José Dirceu no hotel Nahoum.  Um bicheiro, um senador e uma revista conspiraram novamente contra o governo, usando ferramentas criminosas, e efetivamente conseguiram produzir um escândalo, que só não foi maior porque a blogosfera conseguiu valer sua posição de que era absurdo dar crédito a uma matéria amparada na mais odiosa espionagem clandestina, e que, além disso, não mostrava efetivamente nenhum ilícito além de reuniões entre membros de um mesmo partido político. 

Sempre soubemos que a Veja havia se tornado uma revista sem caráter, mas não tínhamos provas de que ela se articulava com bandidos como Cachoeira e Demóstenes. Aliás, a Veja, pelo jeito, sempre soube que Demóstenes era um crápula. 

Uma das consequências mais positivas, diria até revolucionária, da CPI do Cachoeira, poderia ser considerar “inidônea” a revista de Roberto Civita, retirando-lhe o direito de receber publicidade estatal. Não é razoável que a sociedade brasileira financie uma publicação que conspira com bandidos para derrubar governos democráticos, eleitos, sempre com muita luta, pela mesma sociedade.  Seria um exemplo, e faria outros órgãos de mídia pensarem duas vezes antes de se acumpliciarem a corruptos e corruptores com vistas a  promover interesses financeiros escusos. 

Pelo amor de Deus! Tantas revistas, jornais e blogs por aí precisando de publicidade para conseguirem se afirmar, não é possível que o Estado continue ajudando a promover a concentração da mídia sem sequer atentar para a questão da ética jornalística, para usar uma linguagem leve, ou da bandidagem midiática, para sermos mais claros. 

*

Abaixo, vídeo de um grupo de jazz que canta e dança nas ruas de New Orleans, que publico aqui apenas para alegrar um post triste e irritado.

 

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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