Tomando as bençãos lá em cima

(Ilustração: Daniel Senise)

Na contramão do estilo carbonário que o Cafezinho vem adotando nas últimas semanas, contaminado pela atmosfera de paixão política criada pela CPI do Cachoeira, elogiemos a iniciativa do Estadão de criar o “Basômetro“, um aplicativo online com o qual se pode monitorar o grau de governismo ou oposição de partidos e parlamentares.

Na matéria que acompanha o anúncio do aplicado, o Estadão diz que o núcleo duro da base dilmista decresceu desde o início do governo até hoje.  O núcleo duro era de 306 deputados em 2011 e caiu para 239 este ano.

A informação é interessante, mas a comparação não vale muito, em termos estatísticos. Por uma razão simples: o critério do aplicativo para identificar o “núcleo duro” são os votos para o governo no Congresso. A definição do núcleo duro, portanto, precisa de um número satisfatório de votações para ser consistente. Como 2011 foi o primeiro ano, então o número acumulado de votações ainda era relativamente pequeno. Em 2012, já temos um número acumulado maior de votações, de caráter mais diversificado, dando um sentido mais consistente à definição de “núcleo duro”. A oscilação do núcleo duro de 2011 para 2012, todavia, não dá margem, na minha opinião, para se dizer que “a base encolheu”, como afirma a matéria; apenas reflete a oscilação normal por parte do parlamento, que vota não exclusivamente segundo uma lógica binária a favor ou contra o governo, mas de acordo com o teor específico de cada votação. Essa é deficiência do aplicativo, ele apenas contabiliza pontos a partir de posições contra ou a favor, sem considerar qualitativamente cada momento. De concreto, o programa apenas identifica que os aliados vem dando uma excelente demonstração de lealdade ao governo e a seu próprio partido, negando as teorias de que as legendas não teriam coerência programática. E o tamanho do “núcleo duro governista”, se comparado à oposição, ainda confere à Dilma uma posição que daria inveja a qualquer outro governante no mundo.  Sã0 239 deputados formando o “núcleo duro”, contra apenas 12 parlamentares fazendo “oposição radical”.

Hoje mesmo, aliás, há um artigo no Estadão, escrito por um advogado, completamente leigo em ciência política, sem aparentar ao menos possuir noções básicas de análise, intitulado “Do flagelo partidário ao ocaso da oposição”, onde se repete a velha lenga-lenga sobre a debilidade dos partidos. Ora, a oposição pode estar em crise, por razões circunstanciais, mas uma análise séria do desempenho dos partidos não pode se restringir a curtos períodos históricos.

A flutuação partidária, ou seja, o movimento político que leva alguns partidos a declinarem e outros a ascenderam, é normal, mesmo obrigatório numa democracia. A chamada alternância de poder, que alguns políticos de oposição gostam de mencionar quando pregam a necessidade de mudarmos o governo, deve ser, com mais razão, aplicada justamente para explicar o ocaso de uns e outros. A alternância é uma virtude cujo valor reside no seu potencial. Quer dizer, a sua essência é que, a qualquer momento, os eleitores podem mudar o partido no poder. Assim como podem mantê-lo. Um determinado bloco partidário pode permanecer no poder por 20, 30,40 anos, depois ser substituído por outro, e teríamos alternância.

O “Basômetro” do Estadão, por exemplo, mostra um sistema partidário bastante coerente. Os parlamentares votam, em sua grande maioria, de acordo com a orientação de suas lideranças partidárias, as quais, por sua vez, seguem os acordos costurados junto ao Executivo. Estudos de ciência política revelam que o parlamento brasileiro está entre os mais organizados do mundo, em termos de coerência partidária.

A lenga-lenga do articulista do Estadão, portanto, inscreve-se no rol dos lugares comuns e preconceitos sobre o desempenho do parlamento nacional, onde se mescla complexo de vira-lata, desinformação e contaminação pela sistemática campanha de desmoralização do trabalho legislativo liderada pela grande imprensa desde a redemocratização.  É apenas um amontoado de clichês anti-política alinhavados com vocabulário e sintaxe de advogado.

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Panorama Globo domingo:

Essa notícia desmoraliza completamente a postura de Roberto Gurgel, procurador-geral da república, que atribuíra apenas aos “protetores de mensaleiros” o desejo de convocá-lo à CPI do Cachoeira para que esclareça sua decisão de não dar continuidade às investigações de Demóstenes Torres.

Eu acrescentaria apenas que, por mais que a postura de Demóstenes seja estranha, não devemos perder o foco de que o alvo da CPI é Demóstenes Torres, Cachoeira, Marconi Perillo, e as relações entre o Clube Nextel e a revista Veja. A mídia armou uma inteligente armadilha contra o PT, que é pintá-lo como inimigo do procurador-geral da república, e assim desgastá-lo perante o Ministério Público, como um todo, e perante à opinião pública.  O PT deve ser esforçar para saltar esta perigosa armadilha.

Por outro lado, o comportamento de Gurgel explicitou a despudorada cumplicidade entre o Ministério Público e a grande imprensa. Gurgel parece ser completamente pautado pela mídia, em vez de sê-lo pela hierarquia dos crimes que deve investigar. Um “mosqueteiro da ética” como Demóstenes era blindado pelo procurador, mesmo havendo tantas provas contra ele, enquanto ministros alvos de campanhas de mídia eram investigados, apenas com base em matérias inconsistentes publicadas na Veja. Isso sim deve ser duramente denunciado.

*

Outro texto que eu gostaria de analisar é a coluna de Noblat desta segunda-feira. Gostaria de comentar os parágrafos finais do texto:

Quem aspira a enfrentar Dilma em 2014 admite que ela se reeleja com folga se for bem-sucedida na guerra contra os juros e não cometer grandes bobagens até lá.

O risco de cometer é permanente. Um exemplo? A CPI do Cachoeira. O governo passaria sem ela muito bem, obrigado. Mas cedeu aos caprichos de Lula, que a patrocinou.

Lula queria que a CPI pegasse a VEJA, o governador Marconi Perillo (PSDB-GO) e o Procurador-Geral da República. E que atrasasse o julgamento do mensalão.

Nada do que Lula queria parece destinado a ser alcançado. Com um agravante: o julgamento do mensalão foi apressado. E não se costuma apressar julgamentos para absolver os réus.

De tão insignificante e desprovida de talento, a oposição dispensava uma CPI para lhe disparar um tiro ou dois.

O Procurador-Geral ganhou a solidariedade dos ministros do Supremo Tribunal Federal.

Cuide-se Dilma para um eventual desfecho desastroso da CPI – afinal, sua base de apoio no Congresso já foi maior e mais fiel.

Noblat vocaliza a enésima ameaça que a mídia faz ao governo em relação à CPI, e repete a já surrada tese de que a CPI foi criada por Lula. Ora, foi a CPI que contou com o maior número de adesões da história da república. Lula apoiou, mas quem a criou foram centenas de parlamentares, deputados e senadores. Sejamos justos de lhes darmos ao menos esse crédito.  Observem a parte em negrito: Noblat diz que Lula queria que a CPI pegasse a Veja, Marconi Perillo e Gurgel. Primeiramente, isso são ilações de Noblat, mas mesmo que os objetivos de Lula fosse estes, ele conseguiu. A CPI flagrou centenas de conversas entre o principal repórter da Veja, Policarpo Júnior, e o bandido Carlinhos Cachoeira, além de concluir, com fartas provas, de que o esquema plantava matérias na revista, com base em escutas ilegais, para detonar adversários, chantagear políticos e auferir vantagens financeiras ilícitas.

E Gurgel está numa situação bastante delicada, acossado por políticos de todos os espectros, e por uma grande massa de blogueiros (incluo na massa os comentaristas). Se estes personagens sofrerão penalidades mais severas, não se sabe, mas o chicotinho queimado tá ficando bem quente para o lado deles.

O texto encerra com uma ameaça apocalíptica absurda. O inquérito já está todo na internet. A lama respingou pesado mesmo para o lado de Demóstenes, Perillo e Veja. Quanto à base de apoio, o Estadão acaba de criar um aplicativo, conforme está no início do post, que mostra uma base incrivelmente fiel. Com um núcleo “duro” de 239 deputados, e somente 12 parlamentares fazendo “oposição radical”, não creio que Dilma deva se preocupar.

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Prestem atenção nas duas notícias abaixo. Por elas, pode-se ver que o esquema Cachoeira era barra pesada, e que Demóstenes Torres, senador da república, era cúmplice de uma máfia que ordenava assassinatos e obrigava mulheres a se prostituir.   Esse era o “mosqueteiro da ética”, segundo a revista Veja.

Até matadores atuavam a serviço do bicheiro.

Na matéria, que explorou bastante pobremente, a meu ver, a gravidade dos áudios, os interlocutores, empregados de Cachoeira, usam a expressão “tomar as bençãos lá em cima” como metáfora para assassinato.

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Abaixo, alguns links que achei particularmente interessantes, publicados nos últimos dias:

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/gurgel-deve-explicacoes-ao-pais

http://avaranda.blogspot.com.br/2012/05/o-procurador-geral-fabricou-uma-crise.html

http://www.blogcidadania.com.br/2012/05/record-o-bispo-a-blogosfera-e-o-efeito-espinafre/

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/policarpo-jr-e-a-cpmi-do-cachoeira

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/gurgel-nao-esta-totalmente-blindado-no-stf

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/fantasias-de-um-egolatra

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/os-proximos-passos-da-cpmi

http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-tuiteira-acusada-de-ser-robo

http://www.blogcidadania.com.br/2012/05/mentira-de-veja-sobre-robos-do-twitter-pode-gerar-acao-judicial/

http://oglobo.globo.com/pais/pf-ministerio-publico-se-desentendem-sobre-vegas-4888492

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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