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Gurgel, mídia e o preconceito de classe

Gurgel não sabia que haveria outra investigação sobre Demóstenes, e a decisão tomada por ele e sua esposa, a sub-procuradora Claudia Sampaio, apenas atrasou o trabalho da polícia federal.

8 comentários
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(Ilustração capa: Otto Dix.)

O Ministério Público, assim como o Judiciário, talvez por não passarem por nenhum tipo de sufrágio, são instituições onde ainda vigora um forte espírito aristocrático. Há um lado positivo nisso: seus membros são orgulhosos, alguns denotam grande coragem pessoal, e a corrupção no MP é algo bem mais raro do que em outras repartições. Valores genuinamente patrícios.

Exemplo: todo esse imbróglio envolvendo as desculpas do casal Gurgel pela decisão de engavetar a operação Las Vegas trouxe à tôna a informação de que a operação Monte Carlo, que prendeu e desmascarou muita gente graúda, nasceu da iniciativa de três promotores da cidade de Valparaíso, Goiás. Parabenizemos, portanto, a intrepidez desses cavalheiros.

O Ministério Público, enquanto instituição, deve ser parabenizado pela operação Monte Carlo. O Judiciário também, que autorizou escutas do esquema Cachoeira.

Enfim, o desbaratamento do esquema Cachoeira só foi possível através da junção de coragem individual de promotores, competência dos investigadores da PF, e a relação de confiança entre diversas instituições.

Da mesma forma, a CPI em andamento no Congresso só apresentará resultados satisfatórios se houver coragem individual dos parlamentares, competência técnica e uma parceria harmônica entre Congresso, Judiciário, PF, e MP.

Mas há o lado negativo desse aristocratismo no MP: a vaidade de seus membros, e sua vulnerabilidade intelectual à mídia. Como temos uma imprensa extremamente politizada, cujas ideias contaminam profundamente setores da classe média “ilustrada”, os membros do MP não ficam imunes a essa atmosfera. Eles recebem em cheio toda carga política, ideológica, partidária disparada diariamente pelos jornalões. Numa sociedade ainda profundamente dividida socialmente como a brasileira, ser vulnerável à mídia significa pactuar, ainda que inconscientemente, com o atraso e a injustiça.

Um procurador como Gurgel, assim como seu antecessor Antônio Fernando de Souza, são aristocráticos demais para lerem blogs, e quem só lê a mídia velha, se não possuir um filtro excepcional na cachola, acaba contaminado pelas paixões políticas que por ali trafegam – e que correm sempre para um só lado, o leste ideológico.

É assim que Gurgel só abre processos contra políticos após alguma repercussão midiática, e seleciona suas prioridades segundo uma escala ditada pelos jornalões.

Essa é a explicação, a meu ver, mais generosa que se pode conceder ao fato de Gurgel ter engavetado a operação Las Vegas, onde havia fortes indícios do envolvimento do senador Demóstenes Torres com o crime organizado.

Se Demóstenes fosse um senador petista, Gurgel teria engavetado? Provavelmente não. Como o suspeito era um senador da oposição, um “mosqueteiro da ética”, Gurgel e sua esposa protegeram-no. Afinal, coitado do DEM. Se Demóstenes sofresse qualquer arranhão em sua imagem àquela época, isto prejudicaria a imagem de toda oposição, criando um fato político de grande peso nas eleições de 2010. A proteção de Gurgel, porém, não adiantou muito. Meses depois, o escândalo do governo Arruda representaria um golpe profundo na imagem dos Democratas.

Não se sabe o que aconteceria se as relações de Demóstenes com Carlinhos Cachoeira fossem reveladas ainda em 2009. De certo temos apenas que a decisão de engavetar o inquérito obrigou a Polícia Federal a interromper totalmente a operação, e permitiu que o esquema Cachoeira prosseguisse contaminando o Estado.

A operação Monte Carlo foi iniciada apenas um ano mais tarde, e não por iniciativa de Gurgel.

Por outro lado, entendo que há uma preocupação, por parte do procurador-geral, de não ser jamais tendencioso em favor do Executivo, porque isso acarretaria a criação de um conluio de poderes, de caráter perigosamente antidemocrático. O procurador é sempre mais duro com petistas, porque o governo é do PT. É um anseio, portanto, essencialmente democrático, de valorizar a oposição, mesmo que minoritária, ajudando no contrapeso entre as forças dominantes. Isso é saudável, porque de fato é muito pior ver um esquema corrupto infiltrado no governo federal, cujo poder é enorme e concentrado, do que em setores dispersos da oposição. Essa é a razão pela qual o mensalão causou tanto susto ao país.

Um procurador que toma decisões que prejudicam politicamente o governo é considerado imparcial, é um bravo, é um forte. Essa independência recebe merecidos elogios corporativos internos, pelas razões mencionadas; e na mídia, porque esta tem um perfil oposicionista.

Entretanto, como tudo na vida, é preciso equilíbrio. O equilíbrio é a chave para se entender o conceito de justiça. Se eu aplico um corretivo equilibrado em meu filho, sou um pai severo, mas justo e presente; se exagero, me torno violento e injusto; se pego leve demais, sou permissivo e fraco.

Se o procurador pega leve demais com a oposição, engavetando uma investigação que apontava ligações de um senador com o crime organizado, está sendo, com certeza, excessivamente permissivo. Ou mesmo incompetente. Rompeu-se o equilíbrio.

Daí o medo, instintivo, que alguns setores sociais alimentavam de um retorno da direita ao poder, porque assistiríamos a junção de um Executivo conservador a instâncias também conservadoras, por razões de classe, formação, etc, configurando uma espécie de cartel ideológico com força para praticar toda espécie de golpes contra o interesse nacional. Quando governo, MP e mídia se unem no mesmo barco das ideias, então temos uma situação de extrema permissividade. Só isso explica a desfaçatez com que o governo FHC, por exemplo, levou adiante o processo de privatização. Não me refiro à privatização em si, que é um procedimento normal em qualquer governo, mas à maneira específica como foi conduzida no Brasil, com favorecimentos amigos, dinheiro fácil no BNDES e fartas denúncias de corrupção e remessas ilegais de recursos ao exterior. Só isso explica a facilidade com que o então presidente da república mudou as regras eleitorais para reeleger a si mesmo, praticando um chavismo muito pior que o chavismo original, visto que este, ao menos, sempre realizou consultas populares para fazer mudanças deste tipo.

Gurgel tenta se amparar numa explicação casuística. Se tivesse aberto um inquérito contra Demóstenes àquela época, diz ele, não haveria operação Monte Carlo, porque o Clube Nextel reveria seus procedimentos de segurança.

Ele agiu como o policial que não autoriza a investigação sobre um assaltante de banco, porque sabe que o bandido vai cometer um homicídio no ano seguinte.

Gurgel não sabia que haveria outra investigação sobre Demóstenes, e a decisão tomada por ele e sua esposa, a sub-procuradora Claudia Sampaio, apenas atrasou o trabalho da polícia federal. A PF poderia ter muito bem dado continuidade à operação Las Vegas e pegar Demóstenes, sem nem precisar iniciar a Monte Carlo.

Enfim, o procurador-geral deve explicações convincentes não aos parlamentares, não à imprensa, mas ao país, à sociedade brasileira, que lhe paga o salário. Não tendo explicações, cabe manter um silêncio humilde, respeitoso, ao invés de incendiar o debate com declarações políticas e tendenciosas.

Os homens de toga devem entender que o julgamento da história é o único que realmente importa para um cidadão comprometido com os valores democráticos e republicanos que constituem os fundamentos morais do país. Não adianta nada ficar bem na mídia e mal junto ao povo brasileiro.

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Miguel do Rosário

Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.

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Comentários

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érico cordeiro

16/05/2012 - 09h16

Meu caro, você anda se superando!
Outro dia pus no twitter que enquanto “nós”, da esquerda, temos o Safatle e o Idelber (e coloquei links para dois textos recentes, e excepcionais, desses dois grandes pensadores contemporâneos), a direita tem que se contentar com os Reinaldos Azevedos e Pondés da vida.
Refaço minha observação, pedindo desculpas pela imperdoável omissão: Enquanto a esquerda tem o Safatle, o Idelber E O MIGUEL DO ROSÁRIO, a direita nativa vai de Reinaldo Azevedo e Pondé. É um massacre, né?
Parabéns pelo seu texto lúcido, refinado, didático, que formula hipóteses explicativas mas jamais resvala para a especulação grosseira e irresponsável, para as ilações cheias de sofismas e malícia, tão características dos pobres textos conservadores de hoje em dia.
Um fraterno abraço e fico muito orgulhoso de perceber a sua evolução como analista político, que acompanho desde os heróicos tempos do Óleo do Diabo.
Encerro dizendo que alguns dos maiores males do judiciário brasileiro decorrem do chamado “quinto constitucional” (1/5 de sua composição é oriunda da advocacia e do MP, sem ter passado pela carreira da magistratura) dos tribunais, que os torna vulneráveis a toda a sorte de pressões por parte dos outros poderes.
Na base, na magistratura de 1º grau, a regra geral é o comprometimento absoluto com o munus público, a atuação republicana, a probidade, a seriedade, a coragem pessoal. Dificilmente se vê um caso de juízes de 1º grau envolvidos em atos ilícitos ou em bandalheiras. Os concursos hoje buscam magistrados com um perfil humanista e não apenas meros técnicos, que “aplicam” o direito de forma asséptica.
Essa oxigenação da magistratura de 1º grau tem sido fundamental para o país – geralmente é ali que surgem decisões pioneiras, como a que reconheceu a legalidade das uniões homoafetivas – mas essa renovação na forma de pensar é um processo lento.
Seria bom que a sociedade pudesse discutir de forma mais ampla esse tema, pois a grande mídia sempre trata o assunto de forma rasteira e a mídia alternativa sempre tece suas críticas em cima das decisões mais polêmicas ou controversas do ponto de vista jurídico (o HC de Daniel Dantas, por exemplo).
Um sujeito que faz essas reflexões com serenidade e lucidez é o Marcelo Semer, cujo blog, o “Sem Juízo”, é mais do que recomendável.
Mais uma vez, parabéns e um fraterno abraço!

    admin

    16/05/2012 - 11h03

    Obrigado, Erico, bondade sua. Abs.

Elson

16/05/2012 - 08h56

De fato pegou mal para o PGR, e segundo um artigo de Valter Maierovich , houve crime por parte de Gurgel , que possuia um prazo para tomar uma decisão sobre a denuncia e não fez , simplesmente engavetou o inquérito , esperando que a PF esquecesse do caso.
Agora sim o PGR está impedido de atuar contra Cachoeira e quadrilha, senão legalmente , talvez moralmente, talvez moralmente.

Luciano Prado

15/05/2012 - 23h18

Faço um pequeno adendo que não altera em nada o belo ponto de visa do post. A criação da operação Monte Carlo, antes de ser um trabalho meramente de investigação policial, foi um trabalho de inteligência policial. Iniciou-se em Valparaíso, mas poderia ter iniciado em qualquer outra cidade, desde que os promotores locais compreendessem as razões de a PF se manter longe da Procuradoria-Geral da República.

spin

15/05/2012 - 20h00

O Ficha Suja fez sua campanha com a hipocrisia do Ficha Limpa. Por conta de Gurgel a PF só voltou a investigar a rede criminosa de Cachoeira em novembro de 2010, depois da eleição da turma de Cachoeira. E mesmo assim a PF teve que investigar sem Gurgel saber, senão não teria dado certo.

Vania Cury

15/05/2012 - 19h11

Achei o texto muito bom. Confesso que ainda não entendi as “razões” do procurador. Mas acho que pegou muito mal a sua reação às críticas que lhe foram feitas, acusando os “mensaleiros” e seus defensores de patrociná-las. Também concordo que ele deve explicações convincentes ao país. Buscar o apoio da “imprensa” para escapar delas não foi muito sagaz.

RONALDO BRAGA

15/05/2012 - 17h21

Parabéns mais uma vez Miguel.
Seus textos são sempre muito bons. Dá gosto de ler. Bem fundamentados, equilibrados, didáticos sem serem prolixos.

Cláudio Freire

15/05/2012 - 14h23

Que beleza de texto, Miguel. Além de conceitualmente muito interessante, o estilo de redação está muito legal. Parabéns.


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