Os FDP da American Airlines

Cézanne, natureza morta

Causou frisson a nota publicada hoje na coluna de Ancelmo Goes:

A nota reflete a ansiedade de nossa mídia em captar manifestações negativas em relação aos governos do PT. Se cada vez que algum brasileiro xingasse FHC, durante sua gestão, o impropério fosse publicado na coluna do Ancelmo, não haveria outra coisa. A regra do jornalismo é: se um cão morder um homem, isso não é notícia; se o homem morder o cão, é.

Entendo que a fúria do cidadão nasceu do extremo desconforto em que se encontrava. Na Ilídia, há um trecho interessante, logo no início do livro. Aquiles estava tomado de fúria contra o poderoso rei Agamenón, que havia mandado seus guardas roubarem sua amante, e tinha a intenção de puxar sua espada e partir pra cima daquele que era, simplesmente, o chefe de todos os exércitos gregos reunidos nas praias de Tróia.  Sua mãe, a deusa Atenas, aparece-lhe na forma de uma mulher e lhe aconselha a não fazer tal loucura, sugerindo-lhe que desafogasse sua ira apenas verbalmente. Aquiles, então, profere uma saraivada de terríveis insultos contra Agamenón, que escuta tudo num silêncio magnânimo.

Entretanto, Aquiles, símbolo de coragem,  xinga diretamente o rei. O passageiro da American Airlines, covarde, xinga os eleitores.

Esse é um ponto crítico no debate político de hoje. A mídia, ao invés de se fomentar um debate qualificado, incentiva a degradação moral do mesmo. Essa é mais uma razão pela qual a mídia mais atrapalha do que ajuda a oposição. A manifestação do passageiro no aeroporto Tom Jobim reflete o rancor acumulado dos eleitores da oposição contra uma governante na qual não votaram. É um desabafo de perdedores. Sua manifestação não angaria votos, pois ninguém os conquista chamando o adversário de filho da puta.

Podemos até perdoar o sujeito que o faz, num momento de nervosismo, mas não o colunista que reproduz o xingamento. O que se deseja com isso? Que cidadãos passem a xingar eleitores da Dilma de filhos da puta em aeroportos, rodoviárias, fábricas e construções? Essa é uma postura essencialmente antidemocrática, truculenta. Eu me sentiria extremamente constrangido se alguém agisse assim perto de mim. O cidadão, repare bem, poderia ter feito a mesma crítica, de maneira bem mais educada. Poderia ter gritado, ironicamente: Obrigado, Dilma! Ou mesmo: Esse governo Dilma é uma merda!

Mas não. Ele xingou os eleitores passados e futuros da presidente. Com isso, ofendeu as mães da maioria do eleitorado brasileiro, e mesmo assim sua frase lhe valeu notoriedade no Jornal O Globo.

Para mim, contudo, foi mais um tiro que a mídia deu em seu próprio pé.

Eu também tenho pesadas críticas à Infraero e ao aeroporto do Galeão. Fico matutando se as mazelas são fruto de burrice e indolência do corporativismo sindical da Infraero ou apenas incompetência do governo federal. Entretanto, se tenho pensamentos negativos sobre as autoridades, jamais me passaria pela cabeça xingar as pessoas a meu redor por terem votado na atual administração. Nunca pensei isso sequer no governo FHC. Na época, eu escrevia artigos tentando mostrar aos eleitores de FHC que os rumos políticos e ideológicos de seu governo estavam equivocados. Trazia dados, argumentos. Foi assim, acho eu, que o PT ganhou as eleições, promovendo um debate político de alto nível, não xingando os eleitores de FHC de filhos da puta.

A decisão de Gois, que fomenta a truculência verbal típica de setores corrompidos por valores elitistas e reacionários, mimados por privilégios dos quais se achavam beneficiários por direito divino, indica que teremos, daqui até as eleições de 2014, um verdadeiro vale tudo.

Feliz Ano Novo para todos! O blog volta a circular no dia 3 de janeiro.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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