Criatividade artística e poder público

Por Ana de Hollanda

Hoje trato de um assunto que, de várias maneiras, acaba se tornando tema recorrente em meus escritos: a criatividade e, em especial, ela nas artes. Não tenho a pretensão de me aprofundar em interpretações sobre o sentido da arte, sua compreensão ou outras questões que sempre provocaram e hão de provocar infinitos estudos e teorias especulativas. Mas não há dúvidas de que o tema que envolve um objeto intangível e absolutamente presente na vida de homens, mulheres e crianças deve ser tratado com extrema atenção para não ferir sua essência.

Minha abordagem aqui comentará a forma como o poder público se relaciona com a produção artística e algumas precauções recomendáveis a serem observadas.

O estímulo à criação é uma prática habitualmente preconizada por gestores públicos. Mas o que se coloca como dilema primário para efetivar a prática é encontrar o limite onde o estímulo pode deixar de ser um incentivo para cair no desmotivante apadrinhamento. É natural que o gestor público conheça bem sua área de atuação, tenha uma boa relação com artistas, produtores culturais e busque um diálogo fecundo com estes para melhor definir políticas que atendam a todos. Por outro lado, ele não poderá perder a visão de que, paralelamente e além da produção artística, deverá promover o acesso público às obras produzidas.

Mas em qualquer tempo e lugar existem, por parte de alguns artistas ou governantes, defensores do “estado mecenas” que garanta certa estabilidade financeira para que o privilegiado beneficiado se empenhe com dedicação quase absoluta à própria carreira. No caso de artista reconhecido e consagrado publicamente, essa ambição passa a ser vista com certa naturalidade, e até justificada, dado o prestígio e orgulho que o sucesso provoca nos governantes e cidadãos. No mundo empresarial, de fato, é bastante comum a adoção de um artista ou atleta que agregue sua imagem positiva ao produto do patrocinador. Entretanto o Estado não pode agir da mesma forma, uma vez que a isonomia é um preceito consagrado e previsto em nossa Carta Magna. A famigerada Lei 8.666 está aí para garantir seu cumprimento. Contudo, o entendimento e aplicação desse preceito ainda geram imensas polêmicas, em especial quando se trata de situações em que o objeto são obras e artistas considerados de excelência, sem similares. Existe, no caso, o recurso da inexigibilidade, porém, nem sempre aceito sem resistências pelos órgãos de controle.

Chamo atenção para tudo isso com o intuito de provocar uma reflexão sobre o tratamento justo que a criação artística deve receber dos poderes públicos, principalmente ao se considerar a imensa diversidade de linguagens e estilos existentes em nosso país. A criação artística, independente do formato é, sem dúvida, a expressão mais livre que o homem pode alcançar. E a obra, sem ser obrigatoriamente bela ou coerente, é capaz, no entanto, de provocar infinitas reflexões. Mas, independente de se compreender essas manifestações, é necessário respeitá-las, no mínimo, para não se repetir notórias injustiças cometidas contra artistas mal-compreendidos em sua época.

É recorrente, nas políticas públicas, o vício de enxergar e lidar com as artes, simploriamente, como mero entretenimento. Uma visão oportunista e até certo ponto marqueteira opta por generalizar produtos culturais de maior aceitação comercial, estimulando a “cultura de massas” em detrimento de outras manifestações mais desconhecidas popularmente ou ousadas para um olhar menos treinado para tal. Que o mercado busque maiores vantagens ao economizar esforços e promover esse tipo de produto cultural é compreensivo. Mas o governo não pode seguir a mesma lógica. Entendo, pelo contrário, que o Estado deva estimular ao máximo a rica diversidade cultural e levar às populações das cinco regiões geográficas a multiciplicidade de experimentos produzidos tanto nos grandes centros urbanos quanto em áreas quase desconhecidas do país. Esses produtos culturais, dispensando quaisquer ações afirmativas que previlegiem minorias, traduzem perfeitamente a miscigenação brasileira e a integração étnica, de gêneros, de idade ou crenças religiosas. Interferir nesse equilíbrio natural tende a ser perigoso.

Nada mais democrático, nesse sentido, do que retomar, como prioridade, a política de editais específicos para todas as áreas artísticas que fomentem criação, publicação, produção crítica, oficinas, residências e, principalmente, circulação por todo território brasileiro. A Funarte, única instituição nacional em condições de realizar uma produção desse vulto concretizou essa prática, com sucesso, principalmente entre 2003 e 2006. Para a seleção de todos os editais, convida-se autoridades em cada assunto, críticos, professores e mestres das várias regiões geográficas, sem vínculo direto com os candidatos. Um caso exitoso foi a retomada do Projeto Pixinguinha suspenso desde 1997. Reconheço que, apesar de meu empenho pessoal como Ministra, não logrei sua volta em 2011 e 2012. Esses editais não substituem, pelo contrário, são complementares ao tradicional de apoio às mostras e festivais produzidos, com sucesso, no país todo. Existe, no entanto, defensores da política que propõe a redução da participação do Estado no fomento direto e defendem um maior repasse de verbas para que empreendedores culturais idealizem e produzam eventos dessa natureza. Essa teoria, defendida por grupos corporativos influentes na grande mídia ou em alguns meios políticos, argumenta que o Estado, moroso e burocrático, não conta com estrutura e agilidade necessárias para realizar eventos culturais e artísticos. Concordo que, em parte, isso é comprovável. Porém não deixa de ser de responsabilidade do Governo zelar para que o projeto ou evento cumpram sua finalidade de fomento com respeito à liberdade, à diversidade e à autonomia culturais. No mesmo sentido, que promova o acesso do público, em especial o mais carente economicamente, à produção cultural de qualidade, comumente inacessível às suas condições. Nesse sentido, mesmo que o edital repasse a terceiros a responsabilidade pela produção executiva, cabe aos gestores públicos a definição das regras e acompanhamento de sua execução.

Não vamos desdenhar os avanços democráticos, principalmente os conquistados nesses últimos dez anos, mas o alerta deve estar presente para que pressões corporativas e políticas não ofusquem ou distorçam o princípio que garante a igualdade de direitos e oportunidades a artistas e público.

Fechado por Bruxaria, por Luis Felipe Noe (Argentina)

Coluna Quinzenal Grão-Fino.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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