As eleições argentinas e a derrota dos que venceram

É muito difícil ler uma interpretação objetiva sobre o resultado das eleições legislativas ocorridas na Argentina, no último domingo. Mas fiz um esforço e percorri os principais jornais locais, tantos os de oposição como governistas, blogs, além da imprensa brasileira e estrangeira.

A imprensa brasileira, por exemplo, comprou uma interpretação tão histericamente antikirchnerista que eu só poderia classificá-la, piedosamente, de “exagerada”.

O engraçado é que, se você olhar os infográficos publicados nas mesmas páginas onde se exalta a retumbante derrota de Cristina Kirchner, irá se deparar com uma situação curiosa. Aqueles que a matéria exalta como “vitoriosos”, como o peronismo dissidente, de Sergio Massa, perderam espaço no Congresso, enquanto o grande derrotado, o kirchnerismo, não perdeu uma só vaga na Câmara, permanecendo como principal força, com 132 deputados.

No Senado, os kircheristas perderam duas vagas, passando de 41 para 39 senadores, mas as principais forças de oposição também sofreram baixas: a UCR perdeu 2 vagas, ficando com 19 senadores; e o peronismo dissidente perdeu 1, ficando com 7.

 

(Infográfico da Folha)

 

O El Pais, jornal espanhol conservador, claramente simpático à oposição argentina, fez uma abordagem bem mais franca que a militante imprensa brasileira. Traduzi alguns trechos:

O resultado das eleições legislativas de domingo passado na Argentina foi ambiguo. Por um lado, o kirchernismo perdeu na metade dos 24 distritos, incluindo os cinco principais no país. Por outro continua sendo a força mais votada em todo país, e manterá o controle parlamentar nos dois últimos anos do segundo governo da peronista Cristina Fernández de Kirchner (…)

O que está claro é que os prognósticos da oposição sobre o fim do ciclo kirchnerista talvez sejam prematuros até que se venha, finalmente, a eleição presidencial de 2015.

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Sergio Massa, o “peronista dissidente”, é uma espécie de Eduardo Campos. Até junho deste ano, era aliado do governo, embora já viesse revelando atritos há dois anos. Em tese, é um candidato de esquerda, mas o namoro com os grandes grupos de comunicação, sobretudo o Clarín, o posiciona à direita do espectro político.

Por outro lado, a ascenção de Massa lança um bocado de sombras sobre Maurício Macri, do PRO, este sim, um partido conservador.

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Transcrevo, por fim, traduzido por mim, um post de um blogueiro kirchnerista, Jorge Giles, sobre o resultado das eleições de domingo.

De ganhadores e perdedores

Talvez a história escreva que o domingo de 27 de outubro, a Frente para a Vitória (FpV, principal partido kirchnerista) se impôs nas urnas a nível nacional, e portanto derrotou Clarín e suas repetidoras.

O incompreensível, no entanto, é escutar relevantes analistas repetindo, convencidos, a mesma ladainha deste grupo monopólico.

De onde fundamentam a falácia que o kirchernismo perdeu as eleições para a oposição?

A matemática é uma só e vale tanto para governistas quanto para opositores. Para dizer de outro modo: a matemática não está filiada a um partido ou outro.

Vamos aos números, então.

Ao renovar ambas as Câmaras do Congresso Nacional, a de Deputados e Senadores, resta claro que a única tabela válida para se saber quem ganhou e quem perdeu é a que indica a distribuição final das vagas obtidas. Apenas depois desta conta global, se poderá sopesar os resultados locais e seu potencial de transcedência sobre o cenário nacional. E isso é um caso de subjetividade política, não de objetividade analítica.

Na Câmara dos Deputados, a Frente para a Vitória obteve 48 vagas, que somadas às 84 que já tinham, completam as 132 que terá a partir de 10 de dezembro próximo.

Esse é o resultado de ter obtido 7.487.839 votos, ou seja, 33,15%.

Em seguida, vem o bloco da UCR e aliados, com 31 vagas obtidas que, somadas às 23 anteriores, totalizam 54 no total. Teve 4.829.679 votos, ou seja, 21,38%.

Em terceiro lugar, se encontra a Frente de Renovação (Sérgio Massa), com 16 vagas ganhas, e com as 3 que já tinha, somam as 19 com que contará a partir de agora. Teve 3.847.716 votos, ou 17%.

Depois vem o bloco pertencente ao PRO e aliados, que tinham 5 cadeiras, as quais, somadas às 13 que obtiveram agora, completarão 18 em dezembro. Foram 2.033.459 votos, ou 9% do total.

Pelo que aprendemos na escola, 132 é maior que 54 e que 19 e que 18.

Com os senadores, ocorre um percentual similar, mas como não queremos cansar-lhe com tantos números, apenas diremos que, enquanto a Frente para a Vitória obteve 11 vagas, o resto dos partidos obtiveram entre 1 e 2 cada um.

A operação de desgaste do projeto nacional do governo de Cristina entrou em sua etapa mais miserável e cínica. É preciso chamá-la do que é, com toda a contundência, para que se entenda. Daí vem a falácia que pretende criar um clima de derrota entre os vitoriosos, e de vitória entre os derrotados.

Não é um erro que cometem. É uma operação política contra o governo. Como nos tempos de Bartolomeu Mitre e os unitários, olham o país a partir somente de Buenos Aires.

Calma, senhores. Há um projeto nacional e popular para longo prazo.

 

Ver mais infográficos do El Clarín.

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Para aprovar uma mudança constitucional que a permitisse ser candidata novamente à presidência, Cristina Kirchner teria que aumentar sua bancada para 172 deputados e 48 senadores, isso para um total de 257 deputados e 72 senadores. Mas eu penso que é saudável que o kirchnerismo se veja obrigado a procurar nomes alternativos.

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O governo Kirchner ainda tem dois anos pela frente. Com maioria garantida no Congresso e no Senado, terá condições de aprovar leis que granjeiem o favor do povo. O futuro do kirchnerismo dependerá da qualidade de seu governo. Para as esquerdas latinas, contudo, o maior perigo vem do PRO, representante mais explícito do conservadorismo argentino, embora procure se disfarçar, como acontece em todo continente. Até domingo, Maurício Macri, filiado ao PRO, e prefeito de Buenos Aires, era o nome mais forte da oposição. Ele é, digamos, uma espécie de Serra. Com a ascensão de Massa, cuja história é ligada ao kircherismo, a oposição continua fragmentada, e a direita vê suas chances de poder reduzidas.

(Charge no jornal Página 12 de hoje).

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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