As flores mortas de Paris

É constrangedor escrever sobre os atentados de Paris, porque os proselitimos políticos, aos quais temos que apelar à procura de uma explicação para o absurdo, jamais dão conta do horror de uma carnificina como essa.

Além do mais, há o sentimento de culpa – e novamente eis o proselitismo nos constrangendo. Por que não nos comovermos antes com os atentados quase diários que ocorrem no Iraque, com os mortos da Nigéria, com as vítimas da tsunami de lama tóxica das barragens rompidas da Samarco?

Paris nos intimida, com sua beleza e sua tragédia.

Antes de escrever, já antevejo a polêmica: escritores esquerdistas são acusados de esquerdismo; direitistas são acusados de… direitismo, num jogo de acusações ideológicas vazias, e um tanto inconvenientes em momento de tanta perplexidade.

Suponho que o momento pede reflexão e serenidade: como que um luto intelectual por mortos e feridos.

É muito fácil acusar o outro: ah, a culpa é da França, que apoia os ataques à Síria; ah, a culpa é da Síria, cujo presidente é um psicopata; a culpa é dos malucos muçulmanos; é do esquerdismo, que passa a mão na cabeça do terrorismo árabe e acusa o “capitalismo” por tudo; é do direitismo, que prefere investir em violência e guerras do que em educação e solidariedade.

Eu também tenho antipatia por quem fica em cima do muro, desempenhando o papel fácil de isento, como que detentor de uma sabedoria que, no fundo, é apenas uma pose.

Por isso insisto na figura do luto intelectual, um momento de pura reflexão, um breve instante em que nos desprendemos de todas as limitadas convicções que nos fazem ser o que somos e apenas contemplamos, sem opiniões, o desencanto do mundo.

É o momento sim da poesia, porque a poesia é o elemento que supera as ideologias, a moral, a política, tentando atingir o que existe de mais profundo e mais duradouro no ser humano, e ao mesmo tempo fazendo nascer uma sensibilidade que o afasta da violência, em especial dessa violência gratuita e descontrolada, que caracteriza o fascismo.

Porque o assassinato em massa, deliberado, contra alvos aleatórios, é o fascismo.

O Ocidente também exerce uma espécie especialmente brutal de fascismo de Estado.

Muitos europeus, diante da crise imigratória, e da ascensão do Estado Islâmico, já entenderam que o Ocidente novamente cometeu um erro político grotesco, ao destruir nações inteiras, como Iraque, Líbia e agora Síria. O oriente médio foi desestabilizado, e os terroristas, que antes precisavam se esconder em cavernas das montanhas do Afeganistão, agora ocupam imensos territórios e operam à luz do dia, exploram campos de petróleo e gás, controlam a economia de uma boa parte do norte da África e atraem voluntários dos Estados Unidos, Inglaterra e Europa.

Muitos crimes de Estado foram cometidos para chegarmos até aqui. 

Erros trágicos de análise.

Como sempre, os principais responsáveis por esse estado de coisa são as mídias corporativas, que escondem deliberadamente informações essenciais para que o mundo entenda as razões profundas das guerras. E sem entender as razões, as populações não conseguem lutar pela paz.

E o mundo anseia pela paz.

Só que nenhuma paz será possível sem justiça. Me parece evidente que a paz mundial apenas será alcançada se o mundo inteiro tomar providências para reduzir as profundas injustiças sociais que ainda vigoram no planeta. Mas não adianta querer resolvê-las, como quer parte do Ocidente, em especial os Estados Unidos, com bombas.

A humanidade precisa depor as armas e discutir o seu futuro no longo prazo. Como seremos um mundo mais seguro e mais justo nos próximos 200, 300, 500 anos?

Agressão ao meio ambiente, pobreza, desigualdades, violências, fanatismos, todos os problemas do mundo têm de ser posto na mesa e discutidos num fórum internacional ampliado.

Atos de barbárie não podem nos levar a deixarmos de lado a arma mais poderosa da civilização: uma debate sereno e democrático sobre nossas angústias, e este espírito humanista e solidário que, apesar de às vezes parecer uma farsa, ainda existe, e nos permite – a nós, seres humanos – sobreviver. Por enquanto ao menos.

Em primeiro lugar, me parece óbvio que as intervenções, tais como foram feitas no Iraque, na Líbia, na Síria, tem de terminar. Não dá certo.

A autodeterminação dos povos, um princípio essencial na carta internacional dos direitos do homem, tem de ser respeitada como a maneira mais prudente de lidar com as crises políticas internas de cada país.

Em caso de necessidade extrema, que seja dado prioridade apenas à proteção das populações.

O respeito à autodeterminação dos povos corresponde, na política doméstica de cada país, ao respeito à soberania popular, expressa no sufrágio universal.

Se há uma lição, portanto, que eu tiro da tragédia em Paris, é que devemos preservar a paz social, e a paz nasce apenas do respeito à opinião universal expressa nas urnas.

A opinião de institutos de pesquisa não é democrática, porque não expressa o embate de ideias e não reflete um processo democrático regulado, onde ambas as partes possuem tempo para expressar seus projetos, e onde cada cidadão, individualmente, fisicamente, e não um grupinho modelo do Datafolha, representando 0,01% da população, escolhe quem seu representante político.

Não podemos resolver todos os problemas do mundo.

Mas podemos nos ajudar a não descambarmos para situações de conflito nas quais as vítimas serão pessoas inocentes, nossos filhos, netos, entes queridos, ou nós mesmos.

Para evitar esse tipo de coisa é que inventaram a democracia.

Espero que os setores mais raivosos da nossa elite tire ao menos essa lição dos atentados em Paris: desistam do golpe, porque o golpe desencaderia uma espiral de violência que poderia, no futuro, produzir grupelhos extremistas, de esquerda e direita, que apelarão para violência e, em última instância, para o terror.

Isso vale para nossa mídia e para setores do nosso judiciário, que parecem emular alguns métodos do Estado Islâmico. Em nome de suas obsessões políticas, promovem todo o tipo de desonestidade jornalística e processual, pondo em risco o emprego de milhões de pessoas apenas para produzir um espetáculo diuturno de terrorismo econômico e político.

O mundo precisa de paz. O Brasil precisa de paz. Vamos depor as armas e resolver os problemas de maneira civilizada, sem apelar para rupturas institucionais, sem desqualificar o adversário.

Respeitar o voto e a democracia é a condição primordial para superarmos a nossa crise política, e, com isso, encontarmos soluções adequadas para nossa crise econômica.

Vencer a crise econômica é a condição necessária para continuarmos a batalha pela justiça social.

E a justiça social é a única maneira de estabelecer uma paz sólida e duradoura.

Os europeus e americanos parecem ter se esquecido disso quando se trata de oriente médio e África.

Os atentados de Paris são a consequência direta e trágica desse esquecimento.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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