O analfabetismo “republicano” de Dilma Rousseff

Por Miguel do Rosário, editor do Cafezinho. (Entrei logado com outro nome, desculpem).

É chato criticar um governo que já está com um pé na cova, ainda mais considerando o método escuso, o golpe, com que foi levado até essa posição.

Mas é duro também defender um governo que insiste em se dirigir à própria cova, como que atraído pela morte.

Os últimos anos tem sido extremamente duros para o campo progressista, porque precisa defender os avanços democráticos não apenas dos assaltos da direita golpista, como também do analfabetismo “republicano” do próprio governo.

Temos que conter os terroristas midiáticos que insistem em empurrar o governo para o abismo e conter o próprio governo, que parece sofrer de incontrolável tendência suicida para se jogar no abismo.

O não-discurso de Dilma Rousseff na ONU, na última sexta-feira, coroa a trajetória de um governo que, até o fim, desprezou solenemente a política.

Existem vários tipos de analfabetismo político: o analfabetismo que corroeu o governo Dilma é diferente daquele que assola a classe média paneleira, mas é tão nocivo quanto.

O analfabetismo “republicano” (insisto nas aspas por não aceitar dar conotação negativa a uma palavra e um conceito tão bonitos) do Palácio do Planalto tem origem numa mistura de covardia e incultura.

Dilma já havia perdido uma grande oportunidade de fazer um belo discurso na ONU no ano passado. Foi uma grande decepção para mim.

E agora, novamente, desperdiçou uma oportunidade, provavelmente a última oportunidade do campo popular de defender, perante chefes de Estado de outros países, perante o mundo, não apenas o seu governo, mas o próprio princípio da democracia e do respeito ao sufrágio universal.

Ao não fazê-lo, Dilma prestou um desserviço não apenas à luta pela democracia em nosso país, mas também à luta pela democracia em todo mundo.

Eu li inúmeros argumentos em defesa da escolha de Dilma: que ela mencionou a “grave situação brasileira” ao final, que deu um recado discreto, que deixaria para fazer a denúncia na entrevista coletiva.

Nada me convenceu. Para mim, Dilma cometeu um erro histórico.

A presidenta se escondeu, mais uma vez, atrás de um discurso soporífero, técnico, burocrático, convencional. Foi um não-discurso.

O único argumento que pode explicar a covardia de Dilma é sua incultura: sua profunda falta de conhecimento sobre literatura política.

Lula compensava sua incultura com uma incrível intuição política – e intuição, como sabem os leitores de Kant, é superior à qualquer outro tipo de conhecimento.

Dilma não tem intuição nem cultura.

Essa é uma espécie particularmente nociva de analfabetismo.

E tenho que denunciar este erro aqui para que nenhum outro político do campo popular, aqui ou em outro país, faça a mesma coisa.

Se Dilma não queria, por algum cálculo político (com o qual não concordo, mas tudo bem) usar a palavra golpe, isso não justifica nada: ela podia usar metáforas, podia fazer uma interface entre meio ambiente e democracia, podia citar Thomas Jefferson, que tem textos belíssimos sobre a importância do respeito à vitória eleitoral.

Podia mencionar John Milton, Shakespeare, qualquer coisa que fizesse o discurso ser repetido em todo planeta.

Há belíssimos, antológicos, modelos de discurso político, como o de Péricles, na guerra do Peloponeso, imortalizado no livro de Tucídides.

Existe toda uma literatura política pronta para ser usada em ocasiões como essa!

Repito: entendo (embora não concorde) que Dilma tenha escolhido não usar a palavra golpe, mas não a perdoo por não ter feito um discurso sobre democracia. Um discurso bonito, emocionante, pungente, que expressasse a dor que milhões de brasileiros que votaram nela estão sentindo neste momento, em que um punhado de bandidos golpistas estão prestes a assaltar o poder.

Verve, ironia, erudição, não são crimes!

Se Dilma estava com medo do STF, da Globo e dos golpistas no Senado, então que usassem figuras elegantes de linguagem justamente para os denunciar!

A decisão de Dilma reflete a sucessão de erros que ela cometeu desde o primeiro dia de seus governos: esse desprezo pela política, essa falta de respeito pela luta política travada, nas redes e nas ruas, por seu próprio eleitorado.

Esse desprezo pela política, pelo discurso, pela literatura, pela comunicação, destruiu seu governo!

O governo Dilma parece dar importância apenas a grande imprensa.

O discurso na ONU serviria de combustível para as mobilizações populares no Brasil e em todo mundo!

Aquela entrevista coletiva em Nova York, feita na calçada, sem cobertura televisiva decente de nenhuma tv pública, não compensou o recuo na tribuna da ONU.

Dilma decidiu dar entrevista aos blogueiros apenas na última terça-feira, ou seja, após o golpe.

Mais uma prova de seu desprezo pela comunicação e pela política.

O seu staff de comunicação deve ser o pior do mundo. Possivelmente, até o presidente do Botafogo tem uma assessoria melhor. A entrevista com os blogueiros não foi filmada – por razões incompreensíveis. Na hora, improvisamos filmes por celular, de péssima qualidade. Eu fiz alguns filmes do meu celular, com Dilma ao fundo, a mão de um outro blogueiro à frente e uma garrafa de água mineral tampando boa parte da presidenta.

O último ministro da Secom, Thomas Traumann, hoje é o assessor de imprensa de Michel Temer, para vocês verem o nível de pessoas escolhidas por Dilma para lhe dar suporte da área de comunicação.

Aliás, esse é o modus operandi do PT em toda parte, inclusive na prefeitura de São Paulo. O resultado prático parece não importar ao PT: há uma convicção de que a assessoria de imprensa deve ser ocupada por alguém do chamado “PIG”.

Nem perder o mandato num golpe os ajudam a mudar. O governador de Minas Gerais também está à beira de ser deposto, mas a sua comunicação é igualmente baseada em fórmulas tradicionais: a velha e inútil relação com a grande imprensa, sem olhar para internet, blogs ou redes sociais.

Parte da cúpula do PT foi para a cadeia, os outros são xingados em restaurantes, o seu governo foi praticamente deposto, tudo isso através de articulações costuradas na grande mídia, e não existe, até hoje, uma discussão séria sobre como montar uma nova estratégia de comunicação, baseada no esclarecimento, na cultura, em novas tecnologias.

Até hoje, em plena luta contra o golpe, o staff de comunicação de Dilma não dissemina pequenos vídeos da presidenta, para serem usados nas redes sociais.

É triste assistir um golpe de Estado. Não iremos aceitá-lo. Iremos lutar com todas as nossas forças para mostrar ao mundo o que aconteceu no país.

Mas se o governo ajudasse um pouco, não se dirigindo deliberadamente ao próprio abismo, as coisas seriam menos desgastantes.

Rogerio Dultra: Professor do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense (UFF), do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Justiça Administrativa (PPGJA-UFF), pesquisador Vinculado ao INCT/INEAC da UFF e Avaliador ad hoc da CAPES na Área do Direito.
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