Tradução: revista americana denuncia o golpe no Brasil

Ontem, o Cafezinho publicou um post sobre artigo no site Foreign Policy Focus, especializado em política internacional, que aborda o golpe no Brasil. Um leitor traduziu o texto e nos enviou. Publicamos abaixo.

É um artigo bem interessante. Pelo menos para isso está servindo o golpe, para despertar a curiosidade da inteligência internacional sobre a nossa conjuntura política, nos ajudando a quebrar a hegemonia da mídia brasileira sobre a narrativa do golpe.

Eu sugiro ainda aos internautas que sabem inglês que entrem no link original do artigo, para fazer o embate político na caixa de comentários.

***

Um Golpe Bem à brasileira

Elite do Brasil não consegue vencer uma eleição, mas tem a capacidade de engendrar um impeachment.

Por Conn Hallinan, 01 de junho de 2016.
Original: A Very Brazilian Coup, na Foreign Policy In Focus
Tradução de Heitor Carestiato.

Por um lado, o impeachment da presidenta brasileira, Dilma Rousseff, parece uma clássica commedia dell’arte.

Por exemplo, o porta-voz da câmara que trouxe à baila as acusações, Eduardo Cunha, foi afastado por ter escondido 16 milhões de dólares em contas bancárias suíças e americanas secretas. O homem que substituiu Cunha, Waldir Maranhão, está envolvido no escândalo de corrupção em torno da grande empresa estatal de petróleo, a Petrobras.

O ex-vice-presidente e agora presidente interino, Michel Temer, foi condenado por fraude eleitoral, além de também ter sido apanhado nas investigações da Petrobras. Assim é com o presidente do Senado, Renan Calheiros, que também está se enrolando em acusações de evasão fiscal.

De fato, mais da metade da legislatura está atualmente sob algum tipo de investigação por corrupção.

Entretanto, não há nada de cômico nessa queda de Rousseff e de seu esquerdista Partido dos Trabalhadores, e o quê isso irá significar para os 35 milhões de brasileiros que foram retiradas da pobreza na última década, ou para os 40 milhões de novos membros da classe média – que equivale a um quinto dos 200 milhões de brasileiros.

Embora a atual crise na sétima maior economia do mundo tenha ajudado a acender o detonador do impeachment, a crise está enraizada na natureza das elites do Brasil, de suas instituições políticas profundamente equivocadas, e do esqueleto no armário da ditadura militar de 1964 à 1985.

Uma guinada à direita

Uma vez que as acusações contra Rousseff não envolvem corrupção pessoal, ou mesmo que se constitua em um crime – sendo os registros contábeis maquiados antes de uma eleição, ilegais, praticamente todos os políticos do planeta entrariam na lista – é difícil ver o impeachment como outra coisa senão um golpe político. Inclusive o The Economist de centro-direita, por muito tempo um crítico da Rousseff, escreve que “na ausência de prova de criminalidade, o impeachment é injustificado” – e “parece um pretexto para destituir uma presidenta impopular.”

Essa suspeita é reforçada pelas ações do novo presidente.

Temer representa o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), de centro-direita, que até recentemente era aliado do Partido dos Trabalhadores, da Dilma. Assim que Rousseff foi afastada pelo Senado e suspensa do cargo por até 180 dias, Temer deu um cavalo-de-pau acentuado pra direita na economia, nomeando um gabinete de ministros à guisa de anos sombrios da ditadura brasileira: todos brancos, todos homens, e as principais pastas nas mãos de representantes das elites históricas do Brasil. Isto ocorre num país onde cerca de 51% dos brasileiros se denominam negros ou pardos.

Ademais, pelo menos seis desses ministros, estão implicados no escândalo da Petrobras.
Temer anunciou um programa para “reformar” as leis trabalhistas e a previdência social, usando palavras cifradas para corte de aposentadorias e uma legislação anti-sindical. Seu novo ministro da fazenda, Henrique Meirelles, ex-presidente do banco central e que já presidiu o Bank Boston nos Estados Unidos, anunciou que, enquanto os programas sociais “não custarem tanto ao orçamento”, seriam mantidos – como o popularíssimo e bem-sucedido Bolsa Família, que tirou dezenas de milhões de pessoas da pobreza através de pequenos subsídios em dinheiro – além de outras iniciativas do Partido dos Trabalhadores que seriam cortadas.

O novo governo já está arremetendo contra a legislação de forma a reverter as leis que protegem o meio ambiente e os povos indígenas, e nomeou ministros com um histórico terrível em ambas as áreas.

Por exemplo, um dos maiores produtores de soja do Brasil, Blairo Maggi, foi nomeado ministro da Agricultura. Maggi tem levado a cabo a destruição de vastas áreas da Amazônia para dar lugar a plantações de soja. A nomeação inicial de Temer para o ministério da ciência, era um pastor evangélico protestante que não acredita na evolução. Temer também submeteu o Ministério da Cultura ao Ministério da Educação, o que provocou protestos e manifestações de artistas, cineastas e músicos.

Corrupção e Incoerência

O Brasil tem sido um país com profundas divisões entre ricos e pobres, e suas elites têm um histórico de uso da violência e intimidação para atingir o seu objetivo. O nordeste do Brasil é dominado por oligarquias que apoiaram o golpe militar de 1964 e que manipularam a constituição pós-ditadura.

O poder político é fortemente lastreado nas bases ruralistas, dominadas por interesses agropecuários poderosos. As três regiões mais pobres do país, onde esses interesses imperam, respondem a apenas dois quintos da população, e controlam três quartos dos assentos no Senado.
Como aponta o historiador Perry Anderson, o sistema político brasileiro foi desenhado “para neutralizar a possibilidade de que a democracia possa levar à formação de qualquer vontade popular que pudesse ameaçar as enormidades desigualdades brasileira.”

O congresso nacional do Brasil é composto por 35 partidos diferentes, muitos deles sem qualquer filosofia política em si. O congresso é eleito com base na representação proporcional, mas com um ardil intrínseco: Há um sistema de “lista aberta”, na qual os eleitores podem escolher qualquer candidato, muitos deles figurando na mesma legenda.

A chave para vencer as eleições no Brasil, então, é ter nome de peso, e a chave para isso é baldes e baldes de dinheiro. A maior parte desse dinheiro vem das elites do Brasil, como os oligarcas no nordeste do país.

Devido à multiplicidade de partidos, formar um governo é complicado. O que normalmente acontece é que o maior partido enreda os vários partidos menores dando-lhes ministérios. Isto não só incentiva a corrupção – cada partido sabe que precisa levantar muito dinheiro para as eleições – como também resulta em incoerência política.

Quando o Partido dos Trabalhadores foi eleito em 2002, ele não estava disposto a suavizar seus programas ideológicos colocando adversários em um gabinete – embora o partido ainda precisasse de aliados. A solução foi fazer pagamentos em dinheiro a deputados, um esquema chamado de mensalão (“pagamentos mensais”), que foi descoberto em 2005. Uma vez que os pagamentos foram revelados, o partido teve pouca escolha a não ser voltar a cair no antigo sistema de distribuir ministérios em troca de votos. É assim que Temer e o PMDB entraram em cena.

Com a reputação popular do ex-presidente Lula da Silva e de seu Partido dos Trabalhadores prejudicada pelo esquema de pagamentos, a direita viu uma oportunidade de se livrar da esquerda. Mas a popularidade resistente de Lula da Silva e o sucesso de seus programas de combate à pobreza, fez com que o partido passasse praticamente inabalável nas urnas. Lula obteve uma vitória esmagadora na eleição de 2006, e sua sucessora Dilma Rousseff foi eleita por duas vezes, em 2010 e 2014.

Um Golpe Bem à brasileira

Em suma, as elites não puderam ganhar eleições. Mas ainda tiveram a capacidade de dar um golpe bem à brasileira.

Primeiro, eles bateram insistentemente na tecla de que alguns líderes do Partido dos Trabalhadores estavam envolvidos em corrupção, e outros ainda implicados no esquema de propinas da Petrobras. A própria Rousseff havia comandado a Petrobras antes de ser eleita presidenta. Embora ela nunca tenha sido pessoalmente ligada a qualquer esquema de corrupção, isso aconteceu em seu mandato.

A Petrobras é a quarta maior empresa do mundo. Fomenta a construção de petroleiros, de plataformas offshore e de refinarias. Essa expansão abriu enormes oportunidades para o recebimento de suborno, e o nível de propinas envolvidas poderia exceder os US$ 3 bilhões. Nove empresas de construção estão envolvidas no escândalo, bem como mais de 50 políticos, congressistas e governadores de estado, do PMDB, e também do Partido dos Trabalhadores.

O maior erro de Rousseff foi ter executado uma plataforma anti-austeridade em 2014 e, em seguida, inverter o curso depois de eleita, colocando um freio nas despesas. A economia já estava problemática e a austeridade a piorou. O esquema de suborno de 2005, afastou o Partido dos Trabalhadores de parte da classe média, e a austeridade de 2014 distanciou do partido alguns apoiadores da classe trabalhadora.

Porém, o mais provável foi que a decisão de Dilma de dar sinal verde à investigação da corrupção na Petrobras, é o que tenha impulsionado seus inimigos à ofensiva, antes que as provas pudessem derrubar dezenas de líderes políticos e os ricos donos das construtoras. O próprio ministro anticorrupção de Temer, foi recentemente flagrado em áudio gravado, confessando a utilização do impeachment para inviabilizar a investigação, um evento que levou à sua demissão.

Certamente, a campanha armada contra Rousseff foi bem orquestrada. A mídia brasileira – dominada por algumas famílias da elite – liderou o ataque. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, o papel dos meios de comunicação foi “partidário”, e sua agenda anti-Rousseff “mal disfarçada”. O juiz Sergio Moro, uma figura-chave na investigação da Petrobras, autorizou escutas e as vazou ilegalmente colocando Lula e Dilma em maus lençóis.

Dada a composição do Senado brasileiro, é provável que Dilma seja condenada e removida da presidência. Parece também que Temer, que goza de quase nenhum apoio popular, vá tentar reverter muitos dos programas que reduziram com sucesso o fosso entre ricos e pobres.

Nas Cordas

Os riscos são elevados, e não apenas para a democracia.
A economia do Brasil está em apuros, encolhendo 3,7 por cento no ano passado. O preço das commodities estão em baixa em todo o mundo, em grande parte por causa da desaceleração da economia da China. A dívida brasileira está crescendo, embora ainda seja metade da dívida da Itália. E o desemprego é baixo, pelo menos em comparação com os países endividados da Europa.

Um retorno às políticas de austeridade que destruíram economias em todo o Cone Sul durante os anos 1980 e 90 – e que estão desfacelando parte da Europa de hoje – seria um desastre. A pior coisa que se pode fazer em uma recessão é a contenção de despesas, o que emperra economias e coloca os países numa espiral da dívida.

Nesse momento, o Partido dos Trabalhadores está nas cordas, mas dificilmente fora de jogada. Tem 500.000 filiados, e o novo governo vai ver que é muito difícil tiras as coisas do povo, que já se acostumou as tê-las. Cerca de 35 milhões de pessoas não vão querer voltar à sua condição de pobreza anterior sem lutar.

Um dos primeiros atos de Temer foi espalhar 100.000 cartazes em todo o país com o slogan: “Não fale de crise; Trabalhe!” Isso soa muito como um “cale-se”. Mas os brasileiros não são afeitos a ficarem quietos, particularmente se um governo não-eleito impingir cortes dolorosos.

A pressão por novas eleições certamente irá crescer, ainda que o atual governo faça de tudo o que puder para evitá-las. Cedo ou tarde haverá um acerto de contas.

Conn Hallinan, colunista do “Foreign Policy In Focus” , pode ser lido em “Dispatches from Edge” e “Middle Empire Series”.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.