Raio-X do golpe: a lágrima nordestina

Ato da Frente Brasil Popular em protesto com o governo interino Michel Temer. Data:25/05/2016. Local:São Paulo. Fotógrafo Sérgio Silva.

Análise Diária de Conjuntura – 28/06/2016
Tampouco turva-se a lágrima nordestina, diz o verso de Caetano, em Cajuína.

A violência do golpe contra o voto desdobra-se numa série de violências, desencadeada com velocidade estonteante: todos os dias, sabemos de novos decretos do governo interno, destituindo conselhos, esvaziando estruturas sociais, instituições, tudo que cheira a popular, construído não apenas ao longo dos governos petistas, mas através de articulações iniciadas desde o fim da ditadura.

Em poucos meses, Michel Temer só fez destruir. A gestão do Estado não ficou por menos. Os déficits foram todos ampliados, de maneira assustadora. O governo está gastando muito mais, vide a aprovação de mais R$ 170 bilhões para gastar, porém a concentração de recursos em mãos de poucos se tornou brutal.

As denúncias contra um governo tomado de bandidos parecem tiros de festim, porque a população parece enxergar a corrupção do atual governo como uma corrupção “normal”.

Tudo voltou ao normal: o país perdeu sua auto-estima, a corrupção no governo federal retornou aos patamares anteriores (ou seja, muito maiores), porém os donos do poder são bem vistos por empresários e suas aristocráticas famílias.

Ninguém volta a investir, porque aí também é pedir demais, ainda mais quando se pode ganhar dinheiro tão fácil aplicando em títulos – com Meirelles no Banco Central, os lucros dos rentistas estão garantidos.

Na verdade, o sistema bancário nacional desenvolveu todo um esquema semi-clandestino, porém blindado a ferro e fogo pelas autoridades judiciais (que certamente também usam os esquemas), de remuneração por renda. É quase uma “pirâmide”.

Se você tem 100 ou 200 mil reais para aplicar, há papeis que remuneram qualquer desgraceira que acontecer na economia brasileira. Inflação? Quanto mais inflação, mais dinheiro você ganha. Juros? Quanto mais juros, mas dinheiro você ganha.

O ciclo vicioso que entramos de 2014 para cá, e que pensamos que Dilma fosse romper após sua segunda vitória eleitoral, acelerou-se perigosamente.

Sim, porque agora está claro que Dilma errou miseravelmente na condução da economia ao nomear Joaquim Levy para o ministério da Fazenda.

O grande capital é incrível. Levy foi o pior ministro da fazenda de nossa história. Em sua breve passagem, a arrecadação fiscal desabou bruscamente, por culpa de medidas violentas de contenção do investimento público, somadas a um posicionamento político do ministro claramente à direita, sem dar uma entrevista falando da importância dos programas sociais, incluindo os de saúde e educação, na economia do país – tudo isso ajudou a enfraquecer um governo cujo principal ativo político eram justamente seus programas sociais.

Não sou daqueles que acha que o governo deveria ter dado uma guinada à esquerda no segundo mandato, nem acho que a presidenta precisaria fazê-lo, caso recuperasse o cargo.

Apesar de achar que os termos esquerda e direita ainda são válidos, e que a luta de classes permanece o conceito fundamental para se entender qualquer conjuntura política, acho que, por isso mesmo, não podemos vulgarizá-los.

Dilma precisava, ao longo de 2015, ter feito política e gerenciado as expectativas, ponto. Isso não é de esquerda nem de direita. E tinha que defender, publicamente, uma extensão das políticas anticíclicas, sob um novo pacto. Para isso, mais uma vez, tinha que ter feito política, ou seja, estar nas mídias 24 horas por dia.

Governo sem mídia não governa. Isso é óbvio. À direita e à esquerda. Se as castas burocráticas estavam, notoriamente, e a blogosfera denuncia isso desde 2005, se movimentando para dar um golpe, então o governo precisava ter usado o seu capital político para se defender.

Ou seja, precisava falar.

E ainda precisa falar.

A única maneira de vencer o golpe é através da informação.

Eu menciono o verso de Caetano no início do post porque gostaria de relembrar alguns dados das eleições de 2014. Acho importante que, diante da usurpação de poder, a gente tenha esses números na ponta da língua.

Os gráficos são do UOL.

A nível nacional, o resultado foi assim:

Eu quis reproduzir a capa do UOL, para mostrar como os portais iniciaram uma estratégia de reduzir a importância do resultado e enfatizar a suposta “divisão” do Brasil. Ora, eleições democráticas em países minimamente modernos, como achávamos que o Brasil era, sempre tem resultados apertados. Uma sociedade democrática é, naturalmente, dividida. O mito do país “unido” é uma falácia perigosa. Uns chamam isso de “divisão”, outros chamam, mais alegremente, de “diversidade”.

Thomas Jefferson, um dos pais fundadores da democracia norte-americana, ensinava:

O primeiro princípio do republicanismo é que a lex majoris partis é a lei fundamental de todas as sociedades de indivíduos de direitos iguais; considerar a vontade da sociedade, quando enunciada pela maioria, mesmo que a diferença seja de um só voto, tão sagrada como se fosse unânime, é a primeira de todas as lições em importância e, no entanto, a última que é integralmente aprendida. Uma vez desrespeitada essa lei, nada mais permanece a não ser a força, que termina, necessariamente, no despotismo militar.

Dilma obteve 54.501.118 votos; Aécio, 51.041.155 votos. A diferença, de quase 4 milhões de votos, de votos, é maior do que o eleitorado total de muitos países. É bem maior do que o da Noruega e Suíça, por exemplo.

E ainda tivemos quase 40 milhões de eleitores que ou não votaram ou votaram nulo ou branco. Esses eleitores, se estivessem decididos a afastar Dilma, poderiam ter votado na oposição. Não o fizeram, de maneira que o golpe é uma violência para esses também.

Eu menciono, no início do post, os versos de Caetano porque alguém terá de explicar aos nordestinos, que votaram em peso em Dilma Rousseff, o roubo de seus votos. A mesma canção se encerra com os seguintes versos:

E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina

Os eleitores do Piauí e do Maranhão, os estados mais pobres do país, deram quase 80% de seus votos para Dilma.

Ou seja, o golpe roubou o voto das pessoas mais vulneráveis, mais frágeis, que tem menos internet, menos dinheiro, menos capacidade de se informar, de se mobilizar para lutar por seus direitos políticos, usurpados por um punhado de meliantes proprietários de indústrias falidas, meios de comunicação decadentes, além das castas burocráticas e suas sinecuras milionárias.

Haverá um momento, porém, que os intelectuais nordestinos terão consciência mais aguda sobre a violência de que o seu povo foi vítima.

Milhões de jovens estudantes ou profissionais de origem nordestina, quando se derem conta da humilhação imposta às suas famílias, o que farão?

Pascal dizia, em seus Pensamentos, que “a justiça é sujeita a disputas; a força é muito reconhecível, e sem disputa”.

Ou seja, o governo democrático de Dilma Rousseff não era perfeito, mas era justo, e era justo porque tinha aberturas, podia-se criticá-lo e disputá-lo democraticamente.

O governo do golpe é sustentado unicamente na força bruta, na violência, e por isso não se pode criticá-lo. Não há disputa mais. A grande mídia estabeleceu um sólido pacto de blindagem ao governo Temer.

As denúncias de corrupção são apenas o esporão no lombo do cavalo do golpe, apenas para lembrar aos golpistas sobre quem manda, não abalam efetivamente o governo, até porque a narrativa agora mostra uma corrupção “normal”. Não há mais indignação. O governo é corrupto porque sempre foi assim.

E só a grande mídia pode criticar o governo, porque apenas ela tem a técnica correta para criticar sem machucar, sem derrubar, sem afetar o status quo.

As conspiratas sabem o que fazem. A narrativa do golpe precisa permanecer sob controle rígido, ao menos até a votação final no senado.

Depois disso, a plutocracia dá um jeito: no fundo, quanto pior a economia, melhor para ela, vide os tucanos, que se tornaram todos milionários após afundarem o Brasil – e isso também está muito bem para a elite.

O sistema financeiro nacional flerta com a sabotagem econômica. Se você tiver R$ 100 ou 200 mil para investir, o gerente do banco privado te mostrará alguns investimentos que lucram em cima da inflação e dos juros altos. Ou seja, quanto mais a economia piora, mas um setor social insignificante se enriquece.

Agora, se um petista compra uma casa para sua mãe em Passa Quatro, como fez Dirceu, então o juiz da plutocracia toma a casa e expulsa a idosa, sob aplausos da mídia e da classe média manipulada.

Só para constar: Dilma também ganhou as eleições nos estados do Rio e Minas Gerais.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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