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A imprensa e o simulacro da realidade

Foto: Reprodução/ O Globo por Claudia Versiani, especial para O Cafezinho O recém-eleito presidente da Associação Nacional de Jornais, Marcelo Rech, no discurso de posse semanas atrás, declarou que jornais são certificadores da realidade. Discursos pedem frases bombásticas, de alto efeito retórico, passíveis de serem publicadas na primeira página dos jornais – como efetivamente ocorreu. […]

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Foto: Reprodução/ O Globo

por Claudia Versiani, especial para O Cafezinho

O recém-eleito presidente da Associação Nacional de Jornais, Marcelo Rech, no discurso de posse semanas atrás, declarou que jornais são certificadores da realidade. Discursos pedem frases bombásticas, de alto efeito retórico, passíveis de serem publicadas na primeira página dos jornais – como efetivamente ocorreu.

Mas de qual realidade estaria falando Rech? Cláudio Abramo, um dos luminares do jornalismo brasileiro, formador de gerações de profissionais, escreveu que a grande imprensa é ligada aos interesses da classe que pode mantê-la. E completa: “(a grande imprensa) pertence a pessoas cujos interesses estão ligados a um complexo econômico, político e institucional”. Não se trata de simples opinião: a promiscuidade entre os barões da imprensa e os intestinos do poder é fartamente documentada, por exemplo, no livro “O quarto poder”, de Paulo Henrique Amorim.

Jânio de Freitas, em entrevista para o filme “Mercado de notícias”, de Jorge Furtado, disse que jornais são editados não para fazer jornalismo, mas para publicar publicidade. É a pura expressão da verdade. Nada mais pragmático: empresas de comunicação são negócios pra lá de promissores, pois publicidade rende muito dinheiro. Nesse cenário, notícias são subproduto, grande parte das vezes servindo a interesses outros que não o interesse público – entendendo-se por isso responsabilidade social, bem comum, direitos sociais.

No melhor dos mundos, o jornalismo serviria ao interesse público e os jornais talvez fossem certificadores ao menos de parte da realidade. Não estamos no melhor dos mundos: em 2010, Judith Brito, executiva da Folha de São Paulo, assumiu a presidência da ANJ, entidade hoje presidida por Marcelo Rech. No discurso de posse, ela declarou candidamente que os meios de comunicação estavam fazendo a posição oposicionista no país, já que a oposição estava profundamente fragilizada.

Destaque-se que essa posição oposicionista não foi propugnada por um ou outro jornal, o que poderia ser considerado legítimo, mas pela presidente de uma associação que congrega no país dezenas de publicações da grande mídia.

Em artigo para o Observatório da Imprensa, Washington Araújo, mestre em Comunicação pela UnB, contestou magistralmente a postura da executiva. Entre outras questões, indagou: é função da Associação Nacional dos Jornais, além de representar legalmente os veículos, fazer oposição política, ou se trata de usurpação e deformação do rito democrático? É possível fazer sistemático papel de oposição e ao mesmo tempo praticar bom jornalismo, sem afetar a credibilidade? O exercício de oposição não deveria ser democraticamente concedido pelo voto? E o mais importante: onde fica o direito do leitor, de ser livremente informado da forma mais imparcial possível?

No Brasil, seis ou sete famílias são proprietárias dos grandes meios de comunicação. Pior: a propriedade cruzada desses meios – quando um mesmo grupo detém jornais, revistas, televisões, rádios, plataformas na internet – leva ao incauto consumidor de notícias um pensamento unívoco. A propriedade cruzada é proibida na maioria dos países democráticos, e também pela Constituição Brasileira de 88 – embora essa norma constitucional não tenha sido regulamentada, e consequentemente não é cumprida, como se sabe.

Com as conhecidas e raras exceções, inexiste o contraditório na imprensa brasileira. O público tem percebido isso com progressiva intensidade. A tiragem dos jornais cai ano a ano, assim como a audiência das televisões. E a responsabilidade não é só da concorrência da internet. É também da crescente falta de credibilidade da imprensa, cada vez mais escancaradamente vulnerável a conveniências alheias ao interesse público. “Se os jornais prussianos são pouco interessantes para o povo prussiano, isso sucede porque o povo prussiano é pouco interessante para os jornais”, escreveu Karl Marx. Desinteresse gera desinteresse. Ótimo tema de meditação para os barões da imprensa preocupados com a fuga de leitores.

Caro senhor Marcelo Rech, sua frase é bonita, mas vazia de sentido. No Brasil, a grande imprensa funciona dissociada da realidade. Transmite ilusão do real, já que não exprime a pluralidade das vozes existentes na sociedade. A selva da internet, com todos os perigos de um território de ninguém, é preferível à da grande imprensa, onde as armadilhas são menos visíveis, e os engodos, maiores.

O resultado dessa distorção da realidade é o atual momento político brasileiro: ao restringirem o direito dos cidadãos à informação, os meios de comunicação promoveram e ajudaram a consumar o violento atentado à democracia que abala e polariza o país. É uma responsabilidade da qual jamais poderão se eximir.

Cláudia Versiani é jornalista, fotógrafa e professora do curso de Comunicação Social da PUC-Rio, além de autora dos livros “Os homens de nossas vidas” (crônicas) e “Bodas de Sangue: a construção e o espetáculo de Amir Haddad” (fotografias).

 

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