Sucesso mundial de Aquarius faz denúncia ao golpe correr o globo

Arpeggio – Coluna política diária

Por Miguel do Rosário, editor-chefe do Cafezinho

Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, é uma obra-prima, mas a comoção nacional e internacional em torno do filme deriva não apenas da sua excelente qualidade artística. Há um outro fator importante, que é a admiração, o respeito, o carinho das pessoas por um artista que se posiciona com independência, lucidez e coragem em face do poder político e midiático.

É importante salientar este “poder midiático”, porque falar mal do governo é sempre muito fácil, sobretudo em países democráticos onde os Executivos são relativamente fracos ou tolerantes com críticas.

Agora, ser crítico ao golpe no Brasil, e explicar ao mundo do que se trata, a saber, de um consórcio criminoso entre mídia concentrada, judiciário seletivo e um bando de políticos sem qualquer respeito ao voto, isso é para poucos.

Há outros cineastas no Brasil tão bons quanto Kleber Mendonça Filho, mas ninguém tão corajoso quanto ele em se tratando de expressar o sofrimento experimentado por um número enorme de brasileiros, que assistem impotentes o seu país ser destroçado por elites sem compromisso nenhum com o bem estar da população.

O cinismo da nossa grande imprensa já superou todos os limites. Sua função não é mais informar, e sim contra-informar. Seu objetivo não é dizer a verdade, e sim consolidar um monte de mentiras.

Aquarius estreia hoje na França. É muito raro a crítica francesa, tradicionalmente rigorosa, ser tão unânime em relação a um filme, como se vê na relação abaixo, que traz a opinião, na forma de estrelas, dos principais jornais, revistas e sites especializados sobre o filme de Kleber.

É interessante ainda a curiosidade extrema da imprensa francesa pelas opiniões políticas de Kleber. A França é um país que ama o Brasil e passou a respeitar o nosso país muito mais após as políticas públicas implementadas por Lula, que se tornou talvez a personalidade política não-francesa mais admirada por lá.

A imprensa internacional tem assediado Kleber como há tempos não se via com nenhum outro artista brasileiro, e sempre com uma abordagem política, mencionando o golpe e o posicionamento corajoso e independente do cineasta.

Hoje, por exemplo, há uma matéria no New York Times, assinada por Simon Romero (que estamos tentando traduzir e publicar aqui no blog), que lamenta a mesquinhez da classe política brasileira, ao não indicar Aquarius para o Oscar. A matéria traz fortes elogios ao filme e trata o Brasil como uma república de banana cujo governo, por vingança política, tirou o filme da disputa. A foto (no início do post) que ilustra a reportagem do NY Times é justamente o protesto da equipe de Aquarius, no tapete vermelho de Cannes, contra o golpe no Brasil.

Ou seja, no afã de censurar o filme, o governo Temer acabou por dar à denúncia contra o golpe, feita pelos realizadores de Aquarius, um caráter ainda mais idealista, autêntico, heroico.

No Liberación, publicada também hoje, temos uma longa entrevista, assinada por Julien Gester, com Kleber Mendonça, na qual as principais perguntas são sobre a conjuntura política no Brasil. Eu traduzi essas partes e publico abaixo.

É interessante observar que o partidarismo da Lava Jato e a sua relação com o golpe parece já ter ficado claro para quase todos aqueles que não apoiaram o impeachment, inclusive Kleber.

Liberación: Como você vê o que se passa no Brasil por esses dias?
Kleber: Dilma Rousseff foi removida do poder em benefício da oposição, que agora assumiu o controle do governo. A polícia federal conduz uma investigação cujo objetivo oficial era inicialmente detectar os mecanismos de corrupção dentro do governo, mas é cada vez mais claro que os alvos dessa ansiedade por justiça são bastante seletivos. Parece que tudo se concentra sobre o Partido dos Trabalhadores, de Lula e Dilma, e que isso responde perfeitamente à narrativa construída pelos grandes meios de comunicação, eles mesmo muito seletivos na cobertura das informações. Então é extremamente complicado para mim te responder, porque você vem da França, onde as coisas seguem uma certa lógica. Hoje, no Brasil, elas frequentemente não apresentam nenhuma.

Liberación: O que isso quer dizer?
Kleber: Olha, esta semana, a capa da revista Veja mostrou a cabeça de Lula, como se ela tivesse sido cortada, em sangue, numa referência direta, e extremamente pejorativa, a cobertura da Newsweek sobre a morte de Kadafi, e ao ao mesmo tempo também à iconografia dos cangaceiros. Eles vendem pura e simplesmente o ódio a este homem, que é regularmente objeto de acusações de corrupção sem que isso tenha sido provado jamais. É preciso entender que o conjunto de informações do mainstream no Brasil é produzido por conglomerados de propriedade de cinco famílias brasileiras. Cada uma delas dispõe de redes de tv e rádio, jornais impressos e online, e repetem a mesma narrativa. Quando novas acusações contra Lula foram lançadas, na semana passada, nenhum dos procuradores fez questão de apresentar alguma prova. À cabeça da investigação, há um procurador muito jovem, saído de uma região extremamente conservadora do Brasil, conhecido por ser cristão evangélico, e que já declarou claramente que é importante pôr a moral e a religião acima da lei. Tudo isso é apavorante.

Liberación: Durante o lançamento de Aquarius em Cannes deu o que falar, não apenas por causa do entusiasmo suscitado pelo filme, mas também por causa do protesto no momento da projeção, em apoio à Dilma Rousseff, onde vocês denunciaram o golpe de Estado no Brasil…
Kleber: Nós não tínhamos outra escolha a não ser fazer aquele protesto no tapete vermelho. Havíamos saído de uma semana dramática, na qual o processo de destituição de Dilma, fundado em motivos totalmente bizarros, estava em vias de acontecer. Foi também naquela semana que o vice-presidente, Michel Temer, tomando a presidência interinamente, começou a agir como um líder, o que ele não é de maneira alguma: a ele cabia somente gerir uma situação temporária. Ele mudou a logo do governo, o que era um péssimo sinal, e extinguiu o ministério da Cultura, o que era uma mensagem desastrosa – a cultura é uma coisa muito importante no Brasil… Como cidadãos, tínhamos que fazer alguma coisa, dizer ao mundo que acontecia alguma coisa muito grave em nosso país. Nós recebemos apoio de muita gente, mas, claro, numerosos ataques dos partidos de direita, apesar da excelente recepção ao filme, tanto da imprensa brasileira como da internacional.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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