A opinião incrivelmente idiota de Barroso contra a universidade pública

(Foto: Elza Fiúza/ABr)

Desgraça pouca é bobagem.

Não bastasse a sucessão de tragédias que caracterizam esses tempos pós-democráticos: desemprego galopante, entrega frenética de patrimônio público, destruição do nosso parque industrial, aumento da repressão policial, massacres nos presídios, defesa de leis fascistas, criminalização da política, partidarização golpista do aparelho jurídico do Estado, golpes, golpes e mais golpes, não bastasse tudo isso ainda temos de conviver com ministros do STF produzindo clichês idiotas em escala industrial.

Nesse quesito (de clichês idiotas), as principais estrelas são Carmen Lucia e Luis Roberto Barroso.

Barroso publicou, no último dia 14, um artigo (no Globo, claro) que, embora curto, 269 palavras, classifica-se como uma obra-prima da cretinice intelectual.

A gente se pergunta: a troco de que Barroso publica um troço desses, que não traz uma ideia nova, uma solução criativa, que ignora estudos que já existem, aos montes, sobre a importância da universidade pública e gratuita?

Barroso é um constitucionalista e fingia, até antes de ser ministro, ser uma pessoa progressista. Após vestir o manto preto, transformou-se num almofadinha covarde, oportunista, que só abre a boca para falar exatamente o que interessará aos donos da mídia e do dinheiro.

Vamos comentá-lo por partes. O meu texto vem entre colchetes e em negrito, e há comentários adicionais em seguida.

Por um novo modelo para financiar a universidade

Por Luis Roberto Barroso, ministro do STF

[A primeira pergunta que nos fazemos é: a troco de que Barroso acha que sua opinião é importante? Quer dizer, se ele fosse uma pessoa que estuda o tema, tudo bem, mas ele não estudou o tema. Ele não sabe nada sobre o tema. É constrangedor.]

A crise da Uerj revela não apenas a falência do Estado do Rio, mas também de um modelo de financiamento da universidade no Brasil.

[Mentira! A UERJ está aí, viva, há décadas. Já sobreviveu a várias crises. Por ela passou boa parte da inteligência fluminense e nacional, contribuindo para o desenvolvimento do Estado e do país. Engenheiros, juristas, escritores, geólogos, médicos. Blogueiros. Eu estudei na UERJ, e aprendi tudo que sei em suas bibliotecas. Politizei-me ao contato de suas comunidades. Ela está em crise agora por fatores alienígenas: a Lava Jato quebrou a indústria naval, de construção pesada, de petróleo e gás, paralisou todas as obras do Estado do Rio, exatamente no momento em que a Petrobrás sofria o maior ataque especulativo de sua história. A culpa disso deve ser partilhada pelo STF, e pelo próprio Barroso, que ao invés de dar entrevistas para falar de questões processuais que poderiam levar a Lava Jato a combater a corrupção sem destruir nenhuma empresa, e, portanto, sem produzir os efeitos sistêmicos que levaram a falência do Estado do Rio, usa um cargo público para defender o enfraquecimento da coisa pública. Além disso, Barroso bem que poderia falar sobre as incríveis regalias que o Estado proporciona ao Ministério Público e ao Judiciário do Rio de Janeiro, e que certamente não ajudaram o governo a manter as contas em dia.]

Portanto, há duas coisas a fazer. A primeira é ter um plano emergencial para salvar uma das principais universidades do país, pioneira na implantação de um sistema de cotas que vai mudar a vida da próxima geração. Na área do direito, por exemplo, a produção acadêmica da Uerj é a mais relevante do país. Também na medicina ela tem sido referência de qualidade. E em muitas outras áreas.

[Plano emergencial deveria ser cortar todas as mordomias dos mandarins do serviço público. E, sobretudo, defender a importância da universidade pública. Esse artigo de Barroso apenas reforça a crise da UERJ, na medida em que justifica e legitima a decisão de governos golpistas de cortar os investimentos em educação superior e pesquisa. Os governos do Rio e federal, além da Globo, que defende o fim do ensino superior público, encontraram um grande aliado em Barroso.]

Em segundo lugar, precisamos reunir as melhores cabeças do país e, talvez, uma consultoria internacional, para repensarmos o sistema público de ensino superior em geral.

[Essa é uma típica tirada de Barroso, que parece estar seguindo o mesmo caminho do Brasil, ou seja, avançando espetacularmente em direção ao passado. A frase poderia ser dita por um janota reacionário de um romance de Eça de Queiroz, um Conselheiro Acácio da vida. Que melhores cabeças do país, ministro? Uma democracia toma decisões via sufrágio universal. Numa democracia, decisões como essa são discutidas por toda a sociedade e não pelas “melhores cabeças”. O conceito de “melhores cabeças” seria o guardianismo, que, na literatura da ciência política moderna, conforme explicado por Robert Dahl, um dos maiores cientistas políticos do mundo, é exatamente o contrário de democracia. Ou seja, o novo Acácio do STF revelou-se um elitista, um não-democrático, um autoritário. Em suma, um idiota. Seria o primeiro a ser cortado desse grupinho imaginário de “melhores cabeças”.]

Precisamos conceber uma universidade que seja pública nos seus propósitos, mas autossuficiente no seu financiamento. Que saiba gerar seus próprios recursos, que saiba atrair filantropia, que tenha contribuições de ex-alunos. Que tenha uma dotação inicial relevante (endowment), com gestão financeira e pedagógica profissional e despolitizada. O orçamento público tem de ser, prioritariamente, para ensino fundamental e médio. A universidade brasileira vai ter de aprender a viver com recursos próprios, só contando com dinheiro público para alguns projetos específicos.

[Em agosto do ano passado, num de seus periódicos surtos de frases feitas, Barroso usou uma expressão mais direta: “Precisamos de um modelo que seja público nos propósitos e privado no financiamento.” Ele mudou “privado” para “autossuficiente no seu financiamento”. É um hipócrita, um farsante. “Público nos propósitos e privado no financiamento”? No Brasil? Barroso revelou que é uma espécie de lobisomem. Tem uma carinha boa e pacata durante o dia, mas vira um monstro à lua cheia dos holofotes da grande mídia. É muito irritante porque são frases que falseiam a realidade, desinformam. As universidades dos Estados Unidos, que são o modelo óbvio no qual o ministro se inspira, nasceram de um sistema tributário completamente diferente do nosso. Os EUA sempre tiveram, historicamente, o maior imposto sobre herança do mundo. Franklin Roosevelt, o presidente americano que salvou o país da depressão através de grandes investimentos em obras públicas, que se elegeu quatro vezes consecutivamente, e que convenceu a opinião americana a ajudar a Europa a vencer o nazismo, elevou o imposto sobre herança nos EUA para 75% em 1935. Sim, 75%.

O tributo imediatamente produziu um efeito profundo sobre a decisão de todos os milionários americanos desde então. Antes de morrer, eles doavam suas fortunas para uma fundação, de preferência ligada a universidades. Foi assim que as universidades privadas americanas começaram a receber uma grande quantidade de recursos. De lá para cá, o imposto sobre herança nos EUA (inheritance ou estate tax) oscilou bastante, mas sempre permaneceu acima de uma média de 40%, como é hoje. 

Além disso, os EUA têm um outra cultura. Sendo o país mais rico do mundo, inclusive por causa do patrocínio a golpes de Estado em países como o Brasil, eles conseguiram elevar a sua taxa de poupança interna a níveis muito altos. O americano médio (embora hoje cada vez menos) conseguia juntar dinheiro desde cedo para pagar os estudos superiores de seus filhos. Mas o modelo americano é também um dos mais elitistas do mundo, ao contrário do europeu e do asiático. Não é um bom exemplo para ninguém. Sobretudo para um país com tanta gente pobre como o Brasil.

O Tio Sam sempre regulamentou sistemas de empréstimo estudantil, a juros baixos, para os jovens americanos poderem pagar seus estudos. Mesmo assim, muitos especialistas alertam para a bolha que se formou com esses empréstimos, e que podem ser a base para a próxima grande crise financeira mundial. Em junho de 2014, a Economist estimou que o déficit estudantil nos EUA havia excedido US$ 1,2 trilhão, com 7 milhões de devedores em situação de calote. Cerca de 43 milhões de americanos usam o financiamento estudantil para pagar suas universidades. É uma bomba relógio que pode explodir a qualquer momento.

Outra coisa: os EUA tem universidades públicas e comunitárias, cujo funcionamento, custos e receitas, não são analisados por esses aventureiros, como Barroso, que desatam a falar sobre o que não entendem.]

Nessa linha, devemos ver os diferentes formatos praticados no mundo, estudando as universidades de sucesso nos diferentes países. E adotar um que sirva para o Brasil. Na medida em que a universidade se torne autossuficiente, ela deverá recrutar professores em todo o mundo, com aulas em português, inglês e espanhol. Não há país verdadeiramente desenvolvido sem instituições de ensino superior de ponta. Estamos atrasados e com pressa.

[O modelo usado aqui serve muito bem ao Brasil. Já não temos problemas demais? O que o Brasil precisa não é de um novo modelo de financiamento da universidade pública e sim um Judiciário que proteja a democracia de golpes de Estado. É muito cinismo! Barroso lavou as mãos para o golpe, e agora quer fazer a universidade pública pagar pelas consequências devastadoras geradas por ele? “Estamos atrasados e com pressa”. Quem disse? Quem está com pressa? E que história é essa de aulas em português, inglês e espanhol? Já existe intercâmbio entre universidades do Brasil e do resto do mundo, e eles podem ser intensificados, mas o que isso tem a ver com o financiamento da universidade? Por que o Barroso não pergunta a seus novos patrões, a família Marinho, se eles não estão dispostos a doar todo seu patrimônio, como fizeram tantos milionários americanos, a uma fundação universitária?]

***

Comentários do blog:

A universidade pública brasileira sempre pode melhorar. Novas ideias são bem vindas. Incentivar doações seria ótima coisa, mas terá Barroso coragem de defender um imposto sobre herança aos moldes americanos? Os milionários brasileiros, hegemonizados por golpistas sem o mínimo compromisso com o bem estar e o desenvolvimento da parte mais pobre da população, doarão suas fortunas para fundações universitárias?

Barroso, aliás, podia dar o exemplo, e doar todo o seu patrimônio a uma fundação voltada para o ensino superior público.

Teria Barroso a coragem de falar do imposto sobre herança num artigo, com vistas a, ao menos, informar à opinião pública brasileira que a universidade privada americana não surgiu por milagre, e sim por conta de um sistema tributário extremamente rigoroso, voltado especialmente para rico?

Não tem.

Barroso só tem coragem de expor platitudes e clichês idiotas que não lhes causam problemas na mídia. Por isso, eu digo que o STF se tornou um puxadinho jurídico da Globo, uma instituição completamente desmoralizada, e que, aos moldes de sua própria covardia em 1964, foi novamente leniente e cúmplice do golpe de 2016.

É tudo muito engraçado, diabolicamente falando. Os caras dão um golpe de Estado no Brasil e levam ao poder um monte de corruptos não eleitos. O país afunda em questão de meses. As contas não fecham. Aí eles começam a entregar patrimônio público, nossas principais empresas, estatais e privadas, para os outros países, e passam a defender a privatização até mesmo das nossas universidades, usando como justificativa a crise que eles próprios criaram.

Até onde vai o cinismo dos almofadinhas do golpe, como Luis Roberto Barroso?


[Arpeggio – coluna política diária. Por Miguel do Rosário]

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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