O juízo final da Folha (e o perigo de se pedir “depuração” num ambiente conflagrado)

O editorial da Folha é uma daquelas obras-primas de cinismo que somente um jornal que empresta furgões para uma ditadura conduzir presos políticos é capaz de produzir.

Vamos comentar entre colchetes.

EDITORIAIS
Sem juízo final

26/06/2017 02h00

Espera-se, para os próximos dias, que a primeira das cinco ações penais em curso contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) venha a ser julgada pelo juiz federal Sergio Moro, em Curitiba.

[Vale lembrar que o MPF começou a abrir ações penais contra Lula sem disfarçar mais a estratégia de lawfare, ou seja, de guerra política travestida de guerra jurídica. Como uma condenação é um processo demorado, o consórcio mídia-judiciário entendeu que a melhor maneira de atacar Lula era abrir ações penais, mesmo que absurdas, baseadas em pedalinhos e triplex de terceiros. A imprensa tratava de divulgar as denúncias com ares de condenação. Serviu para elevar a rejeição a Lula e neutralizar sua influência no processo do impeachment, primeiro, e na contestação às reformas de Temer, em segundo.]

Trata-se do célebre caso do apartamento tríplex do Guarujá, visitado por Lula e seus familiares em companhia de Léo Pinheiro, ex-presidente da construtora OAS.

Segundo o Ministério Público, a reserva e a reforma do imóvel teriam funcionado como contrapartida a benefícios em favor da construtora nos seus contratos com a Petrobras.

Para alguns analistas, não se trata do processo em que sejam mais contundentes as provas contra o ex-presidente; o caso do sítio em Atibaia reuniria, por exemplo, condições de maior monta para levá-lo a uma condenação.

[Primeira manifestação de cinismo: a Folha admite que não há provas “contundentes” contra o ex-presidente, então lança mão da opinião de “alguns analistas” (quem seriam?), o que é apenas uma maneira pouco sutil de confortar o antipetismo que o próprio jornal incita diariamente: não fiquem tristes, se não houver condenação no caso do triplex, porque ainda tem o caso dos pedalinhos. A opinião dos tais “analistas” é uma mentira. O caso do sítio em Atibaia é ainda mais grotescamente sem provas do que o do triplex, e não foi por outra razão que os procuradores de Curitiba se concentraram no triplex. O famigerado powerpoint foi feito com base no triplex, não no sítio em Atibaia. ]

É de todo modo suspeito, para dizer o mínimo, que o proprietário de uma das maiores empreiteiras do país, às voltas com obras gigantescas no âmbito nacional e internacional, viesse a dedicar seu tempo a convencer Lula e seus familiares da conveniência de um negócio imobiliário no litoral paulista.

[Como não poderia deixar de ser, a Folha então promove o seu próprio julgamentozinho fulero, baseado em falsas e açodadas premissas. O editorial não deixa muito bem claro o que ela considera suspeito. Seria o fato de que o dono de uma empreiteira querer vender um apartamento construído e reformado por sua própria empresa? Seria uma função muito pequena para um empresário? Seria algo assim como, um dono de jornal querendo fazer… jornalismo? Se é suspeito, qual seria o crime? A Folha não diz. É engraçado, todavia, que ela adjetive o empresário, como dono de uma das “maiores empreiteiras do país”, sem dizer que Lula foi presidente da república duas vezes, era considerado o presidente mais popular do mundo, fora e dentro de seu país. Talvez esse detalhe ajudasse a explicar porque um empreiteiro tentasse agradar o presidente.]

Não há como prever o resultado desse processo, que, na hipótese condenatória, conhece ainda amplo caminho para recursos judiciais. Seria interessante, de resto, verificar qual a reação dos partidários de Lula –sempre veementes ao atribuir parcialidade a Moro– na eventualidade de o magistrado decidir-se por sua absolvição.

[Outra manifestação interessante de cinismo. Entre os “partidários de Lula – sempre veementes ao atribuir parcialidade a Moro” podemos incluir os maiores juristas do Brasil e até mesmo um dos maiores do mundo, como Luigi Ferrajoli, que chamou Sergio Moro de Inquisidor, num debate realizado no Senado italiano. A Folha, assim como a Globo, ignoraram solenemente esse episódio, então para elas é como as declarações de Ferrajoli não tivessem existido. Com isso, eles podem alimentar a narrativa de que os críticos de Moro são apenas os partidários de Lula… Ora, se Moro absolver Lula não terá feito mais do que sua obrigação. As críticas a Sergio Moro são fundamentadas em seus despachos grotescos, cheios de adjetivos e opiniões pessoais, em sua decisão de cometer um crime gravíssimo, ao divulgar as conversas pessoais de Lula e Dilma, de sua cumplicidade nos acordos da Lava Jato com o governo americano e, sobretudo, na imperdoável irresponsabilidade com que conduziu toda a Lava Jato, transformando-a numa operação política, sintonizada com a agenda do golpe. E isso sem falar na destruição de setores inteiros da economia nacional. Não vai ser a absolvição de Lula que nos fará esquecer disso tudo. Mas é claro que um ato de justiça será sempre benvindo.]

Aos adeptos e aos adversários do ex-presidente por vezes importam igualmente pouco as circunstâncias concretas do processo.

[Essa frase não tem nenhum sentido. Claro que importam as circunstâncias concretas do processo. Assim como importa, sobretudo, que o processo seja conduzido a partir de circunstâncias concretas! Ademais, os cidadãos são livres para acreditar ou não num processo judicial. São obrigados a cumprir a decisão judicial, mas não acreditar nela. Quem parece pouco se importar com “circunstâncias concretas” são os próprios procuradores da Lava Jato! ]

O clima de paixão ideológica parece confrontar dois ídolos populares, Lula e Moro, num terreno quase messiânico, do qual se abstraem tanto os imperativos da lei quanto estimativas concernentes ao futuro da política real.

[Taí uma frase brilhantemente cretina. Os jornalões ora vociferam contra os partidos “sem ideologia”, ora menosprezam as paixões ideológicas. Mas… peraí! A Folha equipara Lula e Moro a “dois ídolos populares”. Ora, o jornal poderia ter aproveitado a oportunidade para lembrar a seus leitores de que há uma diferença básica entre Lula e Moro. Lula é, de fato, um ídolo popular. Sua popularidade foi atestada pelas urnas em diversas vezes. Teve grande votação em 1989, 1994, 1998, 2002 e 2006. Sua indicada foi eleita em 2010 e 2014. Quantas vezes Sergio Moro foi eleito? A popularidade de Moro existe apenas, por enquanto, em pesquisas. Não passou pelo crivo do voto. Moro nunca participou de um debate político, onde a população pudesse vê-lo exposto ao contraditório. Ademais, Moro é um juiz, nunca teve que tomar decisões políticas difíceis. Nunca teve que fazer alianças com seus próprios adversários. Então a comparação é esdrúxula. É saudável, ou normal, que Lula desperte paixões ideológicas, porque o povo o conhece há muitos anos. Quanto a Moro, é uma criação midiática recente, que nasceu junto com a crise política, e sua única realização propriamente política foi ter subsidiado, com suas decisões e seu cronograma, um golpe de Estado e a destruição de mais de 4 milhões de empregos.]

Neste último aspecto, deve ser lembrado que mesmo se condenado agora, ou em algum outro processo de que é alvo, Lula dificilmente estará impedido de candidatar-se à Presidência da República nas eleições de 2018.

Só se confirmada uma sentença condenatória em segunda instância –para o que, no ritmo da Justiça brasileira, o prazo seria exíguo–, o líder petista teria a alcançá-lo a lei da Ficha Limpa.

[Aí está a informação mais importante do editorial. A única, talvez. E que explique a pressa de Sergio Moro. O prazo para tirar Lula do processo eleitoral se esgota nos próximos dias. A Folha diz que o prazo – para impedir Lula – é “exíguo”, mas não afirma que se esgotou. Ainda há tempo, portanto, para um tapetão.]

Nessa hipótese, ganhariam força, ademais, as versões conspiratórias de que todas as ações judiciais contra Lula tinham apenas o fito de excluí-lo da vida política.

[Conspiratórias por que? A justiça política, o lawfare, não existem, para a Folha? Que espécie de jornalismo é esse? As histórias de que o Iraque não tinha “armas de destruição em massa”, e que os relatórios da CIA e da Casa Branca, eram mentirosos, também foram consideradas como “conspiração” e o resultado foi uma guerra e milhões de mortos. A mídia, com a cumplicidade do judiciário, vive abraçando as teses conspiratórias – e idiotas – do Ministério Público sobre o esforço, por parte de partidos, de se “perpetuarem no poder”. Daí até atos banais de governo são vistos por uma perspectiva paranoica, conspiratória, policialesca. Antes de falarem, portanto, em teoria de conspiração, a mídia e o judiciário deveriam escovar bem os próprios dentes. ]

Com ou sem o tríplex, entretanto, não resta dúvida de que o PT e seu líder, a exemplo de tantos outros na política, puseram o Estado a serviço de suas conveniências e dos grupos que os corromperam.

[Frase puramente farisaica, cretina e inteiramente absurda. O Estado nunca esteve “a serviço” das conveniências do PT e seu líder. E os grupos que “os corromperam” (corromperam a quem, o PT, seu líder? A frase é uma condenaçãozinha malandra)   corromperam, muito antes, o Estado e a imprensa.  Ou os milhões pagos pelos “grupos” à grande imprensa, para que esta fale isso e aquilo, são dinheiro virginal e puro, e os milhões pagos aos partidos políticos, e apenas estes, são dinheiro sujo? A grande imprensa brasileira tem sido cúmplice, há décadas, de toda essa “corrupção sistêmica”.  Por que as denúncias contra a compra de votos, na emenda de reeleição de FHC, nunca foram para frente? Por que a Folha, o Globo, o Estadão, nunca se interessaram pelo assunto, nem jamais pressionaram o MP e a Justiça? ]

O julgamento deste caso específico não se confunde com o juízo final; é uma pequena etapa, mais uma, de um processo de depuração sem data marcada para terminar.

[O editorial da Folha termina com uma ameaça pueril a não se sabe quem, mas que pode facilmente se voltar contra si mesma. Ora, o processo de depuração não começou com a Lava Jato e sim com a redemocratização do país. Desde então, com altos e baixos, idas e recuos, o Brasil vem amadurecendo politicamente. Antes da redemocratização, por exemplo, os brasileiros não sabiam que seus grandes jornais emprestavam furgões para o regime militar transportar presos políticos de um centro de tortura para outro. Até hoje, essa é uma informação a que poucos tem acesso, porque o sistema de comunicação de hoje é o mesmo da ditadura. O apoio da mídia ao golpe de 2016 também precisa ser melhor explicado à população. Cada um tem sua própria visão sobre o que seja “depuração”. Os nazistas tinham, por exemplo, uma ideia muito radical sobre “depuração”. Eu considero, por isso mesmo, uma expressão perigosa e de viés fascista. Não tem que haver depuração nenhuma. Tem de haver democracia, justiça social e crescimento econômico. O povo precisa de acesso a melhores informações, para poder votar melhor, consumir melhor, lutar por seus direitos e  cumprir seus deveres. Falar em depuração num ambiente conflagrado é mais uma das irresponsabilidades inacreditáveis da imprensa brasileira. ]

 

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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