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QUANDO A VACA IGNORA O BREJO

Por Ronaldo Bicalho (*) No último fim de semana, o Estadão trouxe dois textos que sintetizam a pobreza de ideias que marca o debate atual sobre o setor elétrico brasileiro. A discussão é desanimadora e atinge a profundidade de um pires com água que uma formiguinha atravessa sem molhar os joelhos. O primeiro deles, da […]

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Por Ronaldo Bicalho (*)

No último fim de semana, o Estadão trouxe dois textos que sintetizam a pobreza de ideias que marca o debate atual sobre o setor elétrico brasileiro. A discussão é desanimadora e atinge a profundidade de um pires com água que uma formiguinha atravessa sem molhar os joelhos.

O primeiro deles, da jornalista Renée Pereira, aponta a preocupante perda de competitividade da indústria brasileira em função do aumento das tarifas de eletricidade, e o segundo, do consultor Adriano Pires, aborda a privatização da Eletrobras

O texto de Renée Pereira chama a atenção de um tema crucial da crise estrutural que atravessa o setor elétrico no país. No entanto, salto aos olhos a ausência desse caráter estrutural nas respostas dos agentes públicos e privados entrevistados na reportagem.

A exaustão do modelo de operação e expansão da indústria elétrica brasileira baseado na hidroeletricidade, com todas as suas drásticas implicações sobre a segurança do abastecimento elétrico, está completamente fora do quadro de argumentos apresentado pelos inquiridos pela repórter para justificar tal perda de competitividade.

São Pedro, como sempre, carrega grande parte da culpa. Como de costume, são as chuvas as causas das nossas infelicidades elétricas.

Nada é dito sobre a completa inadequação do nosso modelo de comercialização à nova realidade de esgotamento da nossa base tradicional de recursos naturais. Nada é levantado em torno dos enormes desafios envolvidos na transição em direção a uma nova base. Nada é abordado sobre os grandes obstáculos presentes na introdução das novas renováveis, tanto aqui quanto no mundo. Nada, nada e nada. Apenas o silêncio ensurdecedor dos ignorantes. Ignorância funcional que não nasce do desconhecimento do assunto, mas da intenção deliberada de ignorar tudo aquilo que coloque em xeque as propostas atuais de privatização da Eletrobras e de reestruturação setorial.

Desse modo, a garantia da disponibilidade física, do acesso econômico, da sustentabilidade ambiental e social do suprimento de energia elétrica no médio e no longo prazo, no contexto de uma dramática transição elétrica, problema central da política energética brasileira para o setor elétrico, não está posta na mesa das nossas autoridades e dos nossos especialistas.

Isto não é gratuito. Transformar a discussão sobre segurança energética em uma discussão sobre Estado versus Mercado tira o foco daquilo que deveria ser o essencial no debate sobre a crise brasileira na atividade elétrica. Focar naquilo que não é relevante é um recurso muito útil quando se deseja justamente esconder o essencial. E aqui o essencial é muito claro: o essencial é a transição elétrica. Esse é o tema fundamental da crise brasileira e que, portanto, subordina os demais e estrutura o debate.

Cabe notar que não estamos falando de um setor econômico qualquer, mas do setor elétrico; não estamos falando de um setor elétrico qualquer, mas do setor elétrico brasileiro; não estamos falando de um momento do tempo qualquer, mas do momento atual do setor elétrico brasileiro. Ou seja, não estamos discutindo princípios gerais, mas um problema bastante específico; ou seja, estamos discutindo um setor específico, em um país específico, em um momento específico.

Quem quer discutir princípios gerais e dar testemunhos de fé que vá procurar um púlpito para fazer isso.

Nesse sentido, os agentes do Estado e do mercado envolvidos com o setor elétrico no Brasil, diante da óbvia inadequação crescente entre as atividades econômicas intensivas em energia, pelo lado da demanda, e o forte estreitamento da base de recursos naturais hidráulicos, pelo lado da oferta, têm apresentado uma cegueira estratégica desqualificante. É evidente que a competitividade de uma parte significativa da indústria brasileira foi construída a partir da disponibilidade de energia elétrica abundante e barata (principalmente depois do II PND). Energia abundante e barata de origem hidrelétrica advinda do aproveitamento de um generoso potencial hidráulico.

Se esse potencial se esgotou, não precisa ser um gênio para chegar a conclusão que a fonte de energia abundante e barata secou e, por tabela, a competitividade, ceteris paribus, foi para o vinagre.

Considerando que não há nenhuma nova fonte de insumos abundante e barata para colocar no lugar, tá na cara que, como diz a galera, deu ruim.

O fundamental em um momento como esse é ter uma visão estratégica sobre a segurança do suprimento elétrico do país; é ter claro qual o papel do Estado na garantia desse suprimento e quais os recursos estratégicos que esse Estado vai deter em suas mãos para garantir a segurança elétrica diante de um quadro no qual essa segurança é colocada em xeque. A reestruturação do setor, a privatização da Eletrobras, por exemplo, devem estar subordinadas a esta questão crucial. Afinal é ela que pode estruturar e dar consistência ao conjunto de políticas públicas para o setor elétrico do país neste momento. O contrário é o exercício do oportunismo voluntarista no vazio descompromissado das irresponsabilidades.

Imagine que historicamente o seu jogo foi armado em cima de um conjunto de jogadores brilhantes. Esses jogadores estão chegando ao fim de carreira e isto terá consequências enormes na competitividade do seu time. Como encontrar uma nova forma de jogar baseada nos novos jogadores disponíveis? Como inventar uma nova maneira de jogar e continuar sendo um grande time? Como fazer isso em um momento em que todos os times estão tentando se reinventar, empurrados, no limite, pelo mesmo motivo que o seu que é o esgotamento da base de jogadores?

Será que, diante desse quadro, vender o time é a melhor proposta que se pode encontrar?

O problema é que no estágio atual do problema vender o time não resolve. Em um momento de mudança profunda a grana só não resolve. De fato, eu não preciso de um Al Khelaifi, milionário árabe dono do PSG, mas de um Pep Guardiola que reinvente o meu time. Um novo jogo está surgindo e com ele uma nova forma de jogar. Quem é craque hoje pode deixar de ser amanhã. O que é valorizado hoje pode não ser amanhã. Por isso o que importa não é a grana; o que importa é a imaginação.

Pedir imaginação não é bobagem. A construção de um setor elétrico sofisticado como o nosso exigiu uma grande dose de imaginação das gerações passadas. O que se pede é que estejamos à altura dos desafios do país.

O artigo de Adriano Pires peca justamente pela incapacidade de fugir da pequenez do debate em que nos metemos, com seu vazio de soluções desestruturadas.

Não é gratuito que a questão fundamental do setor elétrico brasileiro esteja ausente do texto. Discutir transição, nem pensar. Vamos de privatização porque é o que temos pra hoje na gôndola do nosso supermercado pobre de ideias.

Assim, ao longo do artigo o autor desfia um conjunto de argumentos requentados do receituário dos anos noventa. Recorre a receita da superioridade da gestão privada sobre a gestão pública para sair da crise. Utiliza a dívida da Eletrobras como desculpa para a sua inviabilização como empresa estatal, escondendo os fatores decisivos na formação dessa dívida: as distribuidoras e a MP 579. Não é à toa que a desova dessas distribuidoras e a suspensão dos efeitos tarifários da referida MP são condições sine qua non para a privatização da empresa. Sem esquecer, a referência à liberalização de recursos para a educação e para a saúde, o que, no contexto do governo atual de assalto a direitos sociais e farra de isenções fiscais, é um escárnio. Também, não ficam esquecidas as promessas de salvamento do São Francisco para aquietar as desconfianças nordestinas em relação ao destino da CHESF. (Para ver a crítica detalhada do Instituto Ilumina ao texto em questão clique aqui).

Esse último item é uma pérola do atual momento brasileiro do me engana que eu gosto. O problema do São Francisco, complexo e histórico, embute a explosiva questão do uso múltiplo das águas, que faz com que na maioria dos países a gestão dos reservatórios fique nas mãos do Estado. Até as pedras das ruas sabem que uma recuperação à vera do velho Chico envolve fortes restrições ao uso das águas para a geração. Estas restrições fatalmente irão bater no potencial de geração das usinas dessa bacia e, portanto, na sua rentabilidade/atratividade. O resultado final, tá na cara, é a redução do valor desses ativos. A pergunta que fica no ar é quem está fazendo o papel de otário: quem está apostando na promessa de uma revitalização futura do rio porque acha que ela vai ocorrer; ou quem está apostando na compra de um ativo cheio de restrições à sua rentabilização porque acha que elas não vão ocorrer?

Porém, para que não se diga que o autor não falou de flores, o último parágrafo afirma que não basta a privatização, mas é necessário também o equacionamento do risco hidrológico (GSF) e a consolidação do novo modelo do setor elétrico.

Assim, ao final, como naquela piada em que o cara afirma piamente que basta um copo de água para curar uma dor de cabeça, desde que isso seja acompanhado por uma aspirina, Pires coloca dois pontos verdadeiramente relevantes. Contudo, nada afirma sobre como seria o novo equacionamento do risco hidráulico, tampouco como seria a consolidação do novo modelo do setor.

E não o faz pelo simples fato de que provavelmente não saiba como fazê-lo. O que, por justiça, é bastante razoável, considerando que hoje, de fato, ninguém sabe muito bem como realizar tais tarefas, dada a imensa complexidade nelas envolvidas (Me desculpem, mas soluções tipo separação lastro-energia não valem porque nem os autores sabem bem como fazer isto, tampouco suas consequências. Afinal, até o voluntarismo oportunista tem limites). Pires, sabiamente, não cai nessa armadilha. Reza pelo milagre, mas não aponta o santo. Caso isso não aconteça, não será por falta de reza, mas por falta de santo.

Assim, depois de passar parágrafos e mais parágrafos defendendo a privatização da Eletrobras, o autor reconhece que o jogo é muito mais complexo que isso e encerra rapidamente a sua participação no espetáculo porque sabe perfeitamente que a tigrada não está interessada em complexidade e sim em negócios.

E neste sentido, a privatização da Eletrobras é um negócio; a desova das distribuidoras é um negócio; o novo equacionamento do risco hidráulico é um negócio e o novo modelo do setor também é um negócio.

A disputa aqui é quem fica com a Eletrobras; quem fica com as distribuidoras; quem fica com o mico do GSF; quem fica com a energia barata que restar (de preferência via mercado livre – sonho acalentado por nove entre dez grandes consumidores de energia. A propósito, o que não acredita nisso é o único sensato).

É uma disputa de desejos conflitantes em que “um movimento de convergência e união dos interesses dos agentes de governo e de mercado em todos esses processos, para que o setor se recupere, sob o risco de um desastre tarifário, físico e financeiro” – como deseja Pires – é simplesmente uma impossibilidade.

Pelo simples fato de que as instituições brasileiras simplesmente foram para o vinagre, tornando um desastre tarifário, físico e financeiro no setor elétrico uma possibilidade real e concreta.

Em suma, os dois textos do final de semana do Estadão demonstram que, por um lado, os nossos liberais elétricos ficaram nos anos 1990s e não têm nada a dizer sobre o que está acontecendo no setor elétrico aqui e no mundo. Por outro lado, os agentes de governo e de mercado estão encalacrados em um jogo pequeno, marcado pela busca de vantagens imediatas, de pequenos negócios, de tacadas salvadoras, que não tem a menor chance de estruturar uma saída para os graves impasses que definem o difícil momento do setor elétrico brasileiro.

Na verdade, a vaca, senhores, foi solenemente para o brejo. A luta hoje é evitar que ela morra afogada. Se isto acontecer, em bom português, já era. Por isso, seria muito bom que os responsáveis pelo setor parassem de fazer bobagens e sandices e tivessem o mínimo de bom senso. Se não por inteligência, ao menos por uma questão de sobrevivência. O país agradeceria.

(*) Pesquisador do GEE/IE/UFRJ e Diretor do Ilumina

 

Fonte: http://www.ilumina.org.br/quando-a-vaca-ignora-o-brejo-artigo/

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Tiago Bitencourt Vergara

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Mar

07/12/2017 - 11h41

Pais governado pela direita é assim, não tem por onde correr.

Reginaldo Gomes

07/12/2017 - 10h36

Enquetes:
1) Qual o preço que um rio cobra para virar as turbinas de um usina hidrelétrica?
2) Qual o preço justo de uma conta de energia para o povo?
3) O que dá mais lucro : uma mina de ouro ou uma usina hidrelétrica?
4) Faltar chineis na china e faltar água no Brasil são possíveis?
5) Eletrobras é um negócio da china? Dos ee.uu? Dos dois?

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