As certezas de todos nós, parte II: a esquerda irreconciliável

Foto: Vaso grego mostrando Odisseu, o herói humano e falível, e seus companheiros se preparando para juntos cegarem o cíclope Polifemo

No primeiro destes textos, dividido em três partes, falei sobre as ‘certezas’ da direita que nos trouxeram à situação onde estamos. Neste texto discuto o que chamo de ‘certezas’ das esquerdas.

Acabei o texo passado dizendo que a direita não tinha conseguido chegar onde pretendia. E acabou criando o ‘imbatível monstro Lula’.

Disse também que o papel de Lula vai muito além do homem político que deveria ter o direito de disputar as eleições simplesmente porque ele representa os anseios de boa parte da população.

Até a morte de Marielle, Lula era também um escudo para toda a esquerda, já que ele e o PT eram os principais alvos de ataque. E, também, porque é o alarme que chama a atenção às arbitrariedades do golpe.

Talvez uma das grandes diferenças entre a esquerda e a direita, é que a direita, apesar de suas enormes contradições conceituais, (melhores representadas pelo conflito entre o ‘conservadorismo de costumes’, que não concebe uma abertura a novas práticas sociais e os conceitos de um ‘liberalismo econômico’, que destrói tudo e qualquer prática e costume a favor dos lucros econômicos) consegue se unir, pelo menos em um bloco de conceitos hegemônicos, enquanto que esquerda, é incapaz de se reconciliar (apesar dos atuais sinais encorajadores, se um tanto atrasados).

Isso porque quase qualquer pessoa que se diz de esquerda tem uma concepção diferente dos problemas do mundo e dos caminhos para resolvê-los. E, geralmente estão tão convencidos de suas posições que uma conciliação com as ‘outras’ esquerdas se faz praticamente impossível.

Deixo – antes de tudo – minha opinião clara aqui: não sou contra opiniões diferenciadas no campo da esquerda. Concordo com Boulos, o que nos diferencia é justamente esta diversidade de opiniões. O que critico é o fato da esquerda, muitas vezes, não saber quem são seus reais inimigos, e nem quando tem que se unir para combater um mal maior.

Como dizia, os pontos de vistas são múltiplos:

Há, por exemplo, o antigo debate sobre as ‘mudanças estruturais’ que o PT nunca fez e que, dizem alguns, levaram a o governo ao ‘fracasso’ e o Brasil ao golpe.

Alguns queriam tanto as mudanças estruturais que olham com desprezo qualquer outra política, se distanciando e lavando as mãos de tudo que é, ou foi feito, ‘só para remediar’, como diriam.

Tem o também velho argumento de que melhor não se deixar ‘corromper’ e não governar do que tentar fazer pelo menos algo de valor para melhorar a vida da população.

De novo, a atitude ‘reformista’ ou ‘conformista’ (dependendo do seu ponto de vista) do governo petista deixou alguns muitos revoltados, uma parcela significativa da esquerda ficou com enorme ódio, como se a vida concreta das pessoas não importasse, esquecendo-se de que, esperando o momento conjuntural apropriado para a revolução se vão vidas e mais vidas.

Depois vem o argumento da luta ‘fora da via institucional’, que também está dividindo a esquerda. “Se o PT não tivesse…”, dizem alguns, “agora só fora das instituições…” dizem outros, também com ódio daqueles que tentam o caminho das instituições.

Mas a luta fora da via institucional, apesar de mencionada como panaceia, também traz uma série de questões práticas: O que significa exatamente? Principalmente se não estamos falando de ‘luta armada’.

É por pessoas na rua? Greve? Desobediência Civil? Tudo ao mesmo tempo? Temos pessoas engajadas em números suficientes? Os movimentos sociais poderiam bancar estas ações sozinhos? E o chamado ‘povo’, ele foi educado para ver isso como realístico? E se forem às ruas, aguentariam até quando?

E tampouco é verdade dizer que não há ação. Alguns movimentos estão lá, lutando o tempo todo – por seus direitos específicos e no geral.

Boulos e Guajajara, os pré-candidatos do PSOL, por exemplo, representam movimentos que estão em luta constante contra uma sociedade que não lhes dá espaço e de forma mais generalizada, contra o golpe e seus desencadeamentos nefastos.

E houve certa demonstração de resistência ‘das ruas’ assim que o Golpeachment foi dado, e algumas vitórias pontuais.

A mídia alternativa está cheia de exemplos de movimentos batalhadores, desde os movimentos negros e feministas, movimentos das favelas, etc. até o ciberativismo.

Portanto, não estamos falando da falta de luta não-institucional, mas de sua massificação. E essa massificação é possível? Quem, como, quantos, por quanto tempo?

E ainda podemos perguntar, se a luta ‘das ruas’ não acontece de forma massiva, não acontece por que? Aí temos uma série de argumentos que vão de um extremo ao outro.

Temos o velho ‘vamos culpar o caráter do povo brasileiro’, tipo: ‘o brasileiro é muito dócil e burro, nunca luta’, e o mais recente, ‘o pobre de direita’ que, francamente, remonta aos mesmos insultos vira-lata de sempre.

Não podemos também esquecer o ‘vamos culpar o Lula por tudo’: desde ‘Lula e o PT retiraram o protagonismo dos movimentos sociais…’ até o ‘Lula não chama, se Lula chamasse, todos estariam na rua…’

Será? O que não seria mais desmoralizador do que uma grande chamada para parar o país e o país não parar?

Meu irmão é um desses que acredita na necessidade da desobediência civil, mas quando pergunto o que ele vai fazer, ele diz que não pode porque tem filhos e família para cuidar… Quantos esperam dos outros o que não esperam de si mesmo?

Dizem que parte importante do povo está com Lula.

Mas há um grande caminho entre 40% da população dizer em pesquisas de opinião que ‘se houverem eleições votam no Lula’ e que ‘Lula está sendo discriminado’, e sair contra a injustiça que Lula está sofrendo a ponto de fazer mobilizações, protestos por dias e dias, atos de desobediência civil, com possibilidade até de perder o emprego.

Há diferenças que, até agora, nos pareciam irreconciliáveis, portanto. Cada um na sua trincheira tentando provar que a sua teoria é a única válida. Ou então com medo de se ‘manchar’, de ‘sujar a biografia’, se pondo ao lado de pessoas ‘desmerecedoras’, como seria o caso de Lula e do PT.

A execução de Marielle e os ataques às caravanas de Lula trouxeram um certo sentido de urgência e muitas vozes começam a conclamar uma ‘esquerda unida’.

Estamos chegando perto das eleições que, se acontecerem (e precisamos fazer de tudo para que elas aconteçam, em primeiro lugar), poderiam (pelo menos teoricamente) nos tirar do buraco no qual nos enfiamos.

Muitos de nós, mas não todos ainda, têm a consciência de que só unidos poderemos reverter os estragos: ontem boa parte da esquerda – pelo menos através de alguns de seus líderes mais relevantes – demonstraram uma rara, e necessária, união.

Mas o que quer dizer isso? Será que esta união vai além de atos pontuiais?

E para refletir, se a esquerda decidir disputar o primeiro turno fragmentada, isso é necessariamente ruim?

Deixo para discutir isso na terceira parte.

Mariana T Noviello:
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