As falácias, as más ideias e o otimismo necessário à vitória

Antes de abordar – e combater – as más ideias que andam correndo por aí, falemos um pouco sobre as falácias da votação de ontem no STF, encarnadas sobretudo pelo discurso demagógico de Luis Roberto Barroso.

A maior falácia de todas é que uma interpretação mais restrita da presunção da inocência, que implique na prisão obrigatória do réu após a condenação em segunda instância, é uma necessidade para se prender os “ricos”, porque estes, por poderem pagar advogados, conseguiam postergar o processo por um longo período.

Este é um entendimento fascista, que a esquerda não pode comprar. Ele parte de vários pressupostos autoritários ou mentirosos.

O mais autoritário deles é olhar o réu como culpado e que os seus recursos são sempre protelatórios.

Igualmente grave é achar que apenas os “ricos” podem pagar advogado e interpor recursos. Advogados são caros, mas 99% dos réus que usam recursos e contratam advogados não são ricos. São pessoas que fazem enormes sacrifícios de seus bens pessoais para se defenderem adequadamente. Famílias vendem bens, endividam-se, para defender o ente querido, culpado ou não, da persecução penal.

Pretender que mudar uma lei, contra o réu, que abolir uma garantia fundamental inscrita na Constituição, será benéfico para prender “ricos” é uma estupidez inacreditável, e nenhum liberal, nenhum progressista pode cair nessa.

Qualquer poder discricionário que se dá ao Estado de prender mais e por mais tempo não vai, obviamente, prejudicar apenas um punhado de ricos corruptos, e sim toda a sociedade brasileira, composta, em sua maioria, por pessoas pobres ou com poucos recursos.

Ah, dizem, mas 40% dos presos no Brasil não tem sequer condenação em primeira ou segunda instância, então essa mudança não fará diferença para eles! Ora, mas 60%, mais de 420 mil pessoas, tem condenação, há muitos casos de injustiça, ou casos em que o cidadão poderia, sem mal nenhum à ordem pública, responder o processo em liberdade!

Já mencionei, em post anterior, que Barroso foi desonesto e contraditório. Fux foi na mesma linha. Ambos chegaram ao ponto de embasarem o seu voto no espírito de linchamento: como se a histeria social fosse um argumento válido para se derrubar as garantias constitucionais que protegem o cidadão da persecução estatal. Ou então mencionaram, num tom demagógico inacreditavelmente cínico, casos de grande repercussão midiática em que o réu conseguia, através de interpostos recursos, atrasar a sua prisão.

Tudo isso parte de uma visão de justiça inteiramente punitivista, que olha a prisão como fim último do aparato repressivo. Não é. O fim último do aparato repressivo é o oposto: é garantir a liberdade; e para isso o mais importante é prevenir o crime, em primeiro lugar; investigá-lo corretamente, em segundo; e julgá-lo com imparcialidade e justiça, em terceiro. Por fim, e muito lá no fim, o Estado deve condenar um ser humano a perder o que ele possui de mais sagrado, a sua liberdade.

A tese de Barroso é muito perigosa, porque ele fundamenta seus votos não na Constituição, não na norma, e sim num discurso supostamente moral, fingidamente político, que é o oposto do direito humanista moderno. É constrangedor que um leigo, como este escriba, tenha de lembrar a Barroso as palavras de Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito:

A tese de que o Direito é, segundo a sua própria essência, moral, isto é, de que somente uma ordem social moral é Direito, é rejeitada pela Teoria Pura do Direito, não apenas porque pressupõe uma Moral absoluta, mas ainda porque ela na sua efetiva aplicação pela jurisprudência dominante numa determinada comunidade jurídica, conduz a uma legitimação acrítica da ordem coercitiva estatal que constitui tal comunidade. (Kelsen, Martins Fontes 2015, Direito e Moral, pág 78)

Ou seja, Kelsen alerta que o discurso moral serviria apenas para legitimar o arbítrio e a discricionaridade dos agentes públicos. Em termos mais populares: a moral, ou a “luta contra a corrupção”, é a desculpa principal para se legitimar a meganhagem.

Barroso menciona o longo tempo de espera do processo como se isso beneficiasse o réu. Ao pensar assim, mais uma vez, revela o seu pensamento: ele esposa a teoria fascista de que o réu é culpado até prova em contrário. O princípio da presunção da inocência precisa ser levado a sério, porque é o valor fundamental do humanismo moderno! Apenas se levarmos a sério este princípio, teremos uma visão clara sobre a natureza autoritária do discurso de quem descreve os longos e angustiantes anos de duração do processo penal como uma vantagem… para o réu!

Data venia, Barroso se porta como um ignorante exatamente na doutrina que ele finge defender, o iluminismo. Se relesse Cesare Beccaria, lembraria que o italiano denuncia a justiça medieval justamente pela interminável demora que esta levava para chegar a um veredicto. O processo precisa ser breve, a sentença branda, e a justiça justa! É assim que ensina Beccaria em seu livro Dos Delitos e das Penas, que Voltaire chamou, como bem lembrou o ministro Celso de Mello, de “le code de l’humanité”, o código da humanidade.

Concordo que os processos devem ser simplificados, agilizados, e criminosos e inocentes devem ter seus casos solucionados no tempo mais breve possível. Mas isso não pode ser feito através de uma interpretação hostil à Constituição e que transfira ainda mais poder discricionário ao poder repressivo!

Se Barroso entende que há recursos demais, e que há criminosos que demoram a ser punidos por causa disso, então que faça como qualquer cidadão interessado em mudar o seu país de maneira democrática: que escreva artigos, que faça vídeos, que dê entrevistas, que faça campanha para um parlamentar ou para um partido!

É demorado, eu sei, mas é assim o regime democrático! O que não pode é interpretar a constituição a seu bel prazer porque se acreditou na campanha da Globo e da Lava Jato de que a luta contra a corrupção está acima de tudo!

A função do Supremo Tribunal Federal é garantir a Constituição, e não interpretá-la de maneira contrária ao que está escrito nela!

Em seu discurso, Barroso não esconde que a sua argumentação é inteiramente baseada nas ações e narrativas da Lava Jato. Ele fala como um Savonarola furioso. Quando se empolga, menciona desvios em estatais que sequer foram apurados ou encontrados, como pagamento de propina para se obter financiamentos no BNDES. Barroso acusa uma instituição estatal contra a qual não se encontrou uma mísera prova de desvio, apesar de duas CPIs, da campanha midiática agressiva, e de seus servidores estarem trabalhando hoje para responder as mesmas questões, feitas obsessivamente por técnicos lavajateiros do TCU. Para Barroso, todos são culpados até prova em contrário: políticos, engenheiros, estatais, partidos, sindicatos, empresas.

Claro, ele não inclui a Globo no rol de culpados pela situação em que o Brasil se encontra, logo ela, que controla a opinião pública nacional há cinquenta anos. Ao contrário, Barroso, em seu voto, não poderia deixar de ler um artigo qualquer publicado no jornal O Globo, como fez.

Liberais, progressistas, pessoas “de bem”, não se enganem. O punitivismo explode, sempre, no colo dos pobres e da classe média. Por mil motivos. Se o STF se permite interpretar a Constituição de maneira frontalmente oposta ao que disseram os legisladores, então estamos numa ditadura judicial. O único controle maior sobre um judiciário que não mais respeita a lei, conforme Barroso fez questão de deixar bem claro, é o “sentimento social”, ou seja, a mídia. De maneira que o cidadão, se quiser se defender contra a persecução penal, já não basta poder contratar bons advogados, ele tem de contar com o apoio da grande imprensa. E assim acrescentamos um novo filtro plutocrático à nossa justiça.

É muito difícil pagar um bom advogado, mas não impossível. Se você é uma figura da política, o seu partido irá lhe ajudar. Se pertence a um sindicato, este poderá lhe dar apoio jurídico. Se é um blogueiro reconhecido, seus leitores podem contribuir. Se é um cidadão comum qualquer que, por algum motivo, ganha as graças do mundo, pode receber doações de anônimos de toda parte. Se tem ligações com movimentos sociais, poderá igualmente ser apoiado por estes. Por fim, você pode dar sorte de ter acesso a uma excelente defensoria pública.

Entender a contratação de bons advogados como um sinal de culpabilidade é a coisa mais fascista que emerge dos argumentos de Luis Roberto Barroso.

Agora, ser dono de um grande jornal, possuir uma concessão pública de TV, ter influência determinante sobre a opinião pública, isso sim é para poucos!

De onde surgiu essa ideia, implícita no discurso demagógico de Barroso, de que o fato de se poder contratar um advogado para lutar por liberdade, inocência, honra, é sinal de que se é um rico corrupto, um assassino incorrigível, um criminoso sem traço de humanidade no sangue? Que raio de “iluminismo” é esse, Barroso?

Lembre-se, Barroso, do que dizia Pascal: “É arriscado dizer ao povo que as leis não são justas; pois ele só lhes obedece porque as julga justas”.

Pela lógica de Barroso, a revolução francesa não deveria ter existido.

Ao invés de acabar com as bastilhas (onde eram jogados muitos “ricos” que perturbavam a ordem, como Voltaire), ao invés de instituir um regime de mais liberdades, Barroso defenderia que a persecução penal chegasse àqueles que, até então, por uma razão ou outra, ainda não tinham sido atingidos?

Além disso, aqui no Brasil, as coisas estão bem claras do ponto-de-vista da guerra entre as próprias altas classes. Os executivos de mercado financeiro, que não precisam se envolver com política, as corporações midiáticas, que podem se defender judicialmente através do controle que exercem sobre a opinião pública, os donos de banco, cujo poder financeiro os posiciona num olimpo distante até mesmo dos mais tarados savonarolas do aparelho repressivo, as castas do alto funcionalismo estatal, protegidas pelo corporativismo crescente dos estamentos jurídicos, os agentes estrangeiros, blindados por um sistema de “cooperação jurídica internacional” que atende apenas os interesses econômicos de seus países, todos esses ganham preponderância sobre aquela outra parte da elite nacional que, para sobreviver, precisa botar o pé no barro, lidar com orçamentos variáveis, seus projetos econômicos estão expostos ao escrutínio da sociedade, tem de disponibilizar verbas de campanha para entidades representativas, federações, partidos, sindicatos, e, sobretudo, precisam se sentar à mesa com a política, que é uma maneira de se relacionar com a verdadeira democracia.

Estas são as falácias ouvidas ontem, das quais eu consegui me lembrar até o momento. São tantas!

Falemos, para encerrar o post, das más ideias.

A primeira delas é sugerir que Lula procure asilo numa embaixada. O presidente já deixou bem claro que ele jamais faria isso.

De fato, seria uma péssima ideia, por vários motivos. Primeiro porque haveria o risco de Lula ser preso no momento em que pronunciasse tal coisa. O argumento mais fácil para um juiz usar, numa ordem de prisão, é: risco de fuga.

Segundo, porque, ao fazê-lo, Lula estaria abandonando a luta na ONU e na opinião pública internacional, que pressupõe respeitar a ordem jurídica vigente no país.

Terceiro porque Lula é nosso Sócrates. Ele sabe que nossa democracia é falha, que está sendo corroída por dentro, por interesses políticos mesquinhos, com participação obscura, mas já evidente, de forças imperialistas, e que é preciso defendê-la até o fim.

Uma outra má ideia é alimentar a onda de “sair do país”. Cada um pode alimentar esse projeto como lhe aprouver, e uma quantidade crescente de conhecidos, parentes e amigos já está, de fato, migrando para fora. E não apenas por razões políticas. Tem muita gente saindo sem pensar em questões políticas, mas simplesmente porque entendeu que o golpe não trouxe melhores dias para seus filhos.

Entretanto, não se pode confundir um projeto assim, que é estritamente individual, com uma ideia coletiva. O povo brasileiro não pode, evidentemente, “sair do país”. O mundo civilizado está cada vez mais fechado e hostil a imigrantes de países em dificuldade, e há países com vivem dificuldades bem maiores que as nossas. O povo brasileiro tem de permanecer aqui, lutando por sua liberdade.

É aqui que nós, jornalistas, intelectuais, militantes democráticos, devemos ficar então. Junto ao povo, até o fim.

A pior ideia de todas, no entanto, é o derrotismo. Fiquemos tristes, isso é normal. Fiquemos indignados, isso é necessário.

Derrotados, jamais.

Quando o Antigo Regime mandou Voltaire à Bastilha, foi um derrota do Antigo Regime, não de Voltaire.

Atos de cinismo, violências jurídicas, falácias, falsidades, mentiras, precisam ser desmascaradas diariamente. E a cada vez que o fazemos, a cada vez que mostramos que ainda existe uma pessoa que resiste a essas novas formas de opressão, é uma importante vitória.

Outro erro crescente, que tenho notado por aí, nascido do mesmo derrotismo, é subestimar a luta política, em especial a resistência feita nas redes, “atrás de um computador”. Escrever artigos, dar sua opinião, manifestar-se, apenas parece que não muda o mundo, porque não é possível, para um indivíduo, enxergar o todo.

De fato, o que altera o curso da história são as grandes forças coletivas, movidas, por sua vez, pelo entroque dos interesses sociais e econômicos. Mas o sentido e a velocidade dessas mudanças são influenciados diretamente pelas batalhas da opinião pública.

A luta política, a resistência intelectual e moral, dão resultados sim. É preciso paciência e determinação.

Por último, e este também é um erro ligado ao derrotismo, é a promover acusações levianas e irresponsáveis às lideranças democráticas, a seus partidos e movimentos.

Cuidado com isso.

A autocrítica é essencial para o aperfeiçoamento da nossa representação política, mas não a calúnia, a ofensa, a agressão gratuita.

Nossas lideranças são humanas. Erram, caem, mas se corrigem e se levantam. Temos que apoiá-las e não ajudarmos a derrubá-las. Disso já se encarregam nossos adversários.

Hoje, mais que nunca, precisamos fortalecer as organizações democráticas, os partidos de esquerda, os sindicatos, os movimento sociais.

Hoje, mais que nunca, precisamos instilar otimismo e fé revolucionária no povo brasileiro.

É difícil fazer isso num cenário de tantas derrotas?

Sim, mas justamente por ser difícil, é nossa principal tarefa.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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