As lições do jurista alemão aos juízes à serviço da Globo

Friedrich Müller, um dos maiores juristas contemporâneos, sobre os chicanistas brasileiros

Por Epaminondas Demócrito d’Ávila

para o jurista Marcelo Neves

Como qualquer ciência, o direito pode ser uma chave para um mundo melhor, no qual conflitos entre indivíduos, entre indivíduos e Estado e entre Estados, para citar apenas alguns exemplos, podem ser dirimidos de forma argumentada e transparente, com razões cogentes e plausíveis.

Mas o direito pode também ser utilizado como gazua. Torna-se então criminoso.

Boa parte do Judiciário brasileiro optou pela segunda via. Colocou-se assim na contramão dos interesses da maioria, que lhes paga salários e penduricalhos, e assumiu-se como instrumento de dominação. Mais ainda, como instrumento no bellum paucorum contra plurimos, na guerra dos poucos contra a maioria, fórmula engenhosa, na qual Friedrich Müller, um dos maiores pensadores da atualidade, jurista e filósofo, traduziu em 2012 a famosa fórmula hobbesiana do estado natural, o bellum omnium contra omnes (guerra de todos contra todos). Ao qual, como se sabe, Hobbes respondera com seu contrato social absolutista. Hoje temos a guerra dos poucos contra a maioria.

Desde 2003, o Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, empreendeu um notável esforço no combate a esse genocídio. O progresso não foi linear. Erros e acertos se mesclam e se alternam, mas o balanço geral é positivo. Tão positivo, que políticos lesa-pátria, parte significativa do Judiciário, da Procuradoria-Geral da República, da Polícia Federal, empresários e banqueiros, donos de impérios midiáticos e poderosos interesses estrangeiros, todos animados por e irmanados em egoísmo primário, tramaram um infame golpe de Estado de novo tipo em 2016.

O golpe seria incompleto sem inviabilizar a reeleição do maior presidente que o Brasil já teve, símbolo da política inclusiva iniciada em 2003.

Como os golpes militares estão fora de moda, os poucos armaram contra a maioria um novo e engenhoso golpe, no qual o Judiciário desempenha um papel central.

Membros do Judiciário como Sérgio Moro, os três desembargadores do TRF4 de Porto Alegre, Marcelo Bretas, muitos ministros do STJ e do STF usaram o direito como gazua para arrombar o frágil Estado brasileiro e a sociedade. Acolitados por membros do Ministério Público Federal como Rodrigo Janot e Deltan Dallagnol, cometeram o maior atentado contra a democracia e o Estado Democrático de Direito do qual temos notícia. Coonestaram o golpe, deram-lhe tinturas de respeitabilidade. Meras tinturas, pois a população está despertando, apesar da Rede Globo, apesar de VEJA, ISTOÉ e outras empresas da mídia reacionária e apesar da lavagem cerebral mais sorrateira, denunciada nas últimas obras de Jessé Souza. Pouco a pouco, a comunidade internacional toma conhecimento do que ocorre no Brasil.

No Brasil, o direito foi sequestrado pelos chicanistas, que fazem dele um uso seletivo, pervertem-no, violam-no frontalmente, da constituição até os códigos processuais. Já estamos pagando e ainda pagaremos um preço demasiado alto por essa destruição.

Em tempos tão sombrios, nunca é demais reler o texto de um clássico contemporâneo, o jurista alemão Friedrich Müller. Ele foi escrito em 1979 e publicado dez anos depois em homenagem a Helmut Ridder (1919-2007). Citemos desse ensaio, “Igualdade e normas de igualdade”, a primeira seção, intitulada “Sobre os caminhos a percorrer para ser malquisto”, em homenagem aos juristas e cidadãos comprometidos com o Estado Democrático de Direito, que se recusam a mover guerra contra a maioria da população. Qualquer semelhança com o linguajar vazio, mistificador e túrgido do Judiciário brasileiro é mera coincidência.

Os chicanistas já foram desmascarados, inclusive na sua assustadora precariedade intelectual e no seu acanhado provincianismo. Resta-nos neutralizá-los e afastá-los, para pôr termo à guerra dos poucos contra a maioria e reverter a destruição e o sucateamento do Brasil.

***

Sobre os caminhos a percorrer para ser malquisto 1

Friedrich Müller

I.

Há poucas opções para quem anda à procura de caminhos de ser malquisto. Fica eliminada de antemão a possibilidade de se tornar um subversivo. Subversivos não são malquistos; são apenas temidos. Isso se deve à sua desesperada semelhança de família [Familienähnlichkeit]2 com quem eles querem subverter. Querem dominar: no lugar dos dominadores.

II.

Fica sendo malquisto – existe um caminho – quem parte só por realismo do status quo. Do contrário ele se tornaria benquisto, na medida em que entraria nos eixos para engrenar na engrenagem [den Betrieb zu betreiben3]. Portanto, é malquisto quem recua um passo, para apreender com clareza o status quo.

Fica malquisto quem entra no mérito da ordem vigente, tomando-a ao pé da letra, em vez de usar as letras dos que a dominam4. Restam-lhe o trabalho e a consciência.

III.

Muito do que fazem juristas “que pensam com justiça e equidade” é temerário enquanto “ciência”: a prolação de meras opiniões, a publicação de posicionamentos de perfil aerodinâmico, apoiada em cadeias de tradições seletivamente amarradas, em ditos de autoridades e referências cruzadas a nível interno do grupo, para intimidar indivíduos que ainda não pensam com justiça e eqüidade.

Essa ciência está à altura de si mesma. Se resta algo a refinar, são as estratégias da exclusão silenciosa, bem como a estilística das partituras de palavras secundadas pela armada das notas de rodapé, destinadas a justificar resultados antecipados. Quem de qualquer modo sabe o que quer, sabe também quem quer a mesma coisa, o que os outros devem querer e, não por último: para que, sempre a postos [allzeit bereit5], tal ciência tem serventia.

IV.

Ela não tem serventia e não é boa para quem se lhe nega, para quem pena em elaborar a regularidade honesta como fundamento do direito uniformemente efetivado, para quem se retira de uma práxis que aplica e omite seus métodos de caso em caso: dependendo do que está em jogo, de quem se trata e contra quem se joga e para que fim definido em termos finalistas. Esse caminho para ser malquisto promete êxito: na metódica do opiniatismo, na ciência jurídica das partes interessadas.

Não cair no conto do vigário do poder e dos seus intrigantes, ser punido por isso por uma onorevole società chamada ciência: poucos de nós acumularam numa e noutra coisa tanta experiência como o homem ao qual essas linhas são dedicadas [Helmut Ridder, a quem o texto é dedicado].

V.

“Passar em silêncio” [Totschweigen] é a forma espiritual do assassínio. “Le combat spirituel est aussi brutal que la bataille d’hommes”, escreve Carl Schmitt6 em 1937, sem mencionar autor e fonte. Mais tarde, em 1955, e diante de um público mais familiarizado com a literatura, ele mencionou pelo menos o autor7. Em ambos os casos o scholar silencia sobre a continuação da mesma frase em Arthur Rimbaud: “mais la vision de la justice est le plaisir de Dieu seul”8. Os homens não só podem chacinar-se, mas também tentar matar-se espiritualmente; assim eles não verão a face da justiça. Contra isso, a expressão inicial da frase mutilada produz, no contexto da argumentação de Carl Schmitt, o efeito previsto, o de um aplauso9. A lucidez moral do communard menor de Charleville não é acessível ao Conselheiro de Estado da Prússia.

VI.

Boas perspectivas de serem silenciados têm todos aqueles que se ocupam com a desigualdade juridicamente amortecida dos homens, com a “ordem social da Lei Fundamental”10, com a “falsificação” da – apenas simbolicamente citada – norma da igualdade universal, em proibição de cometer atos arbitrários e com isso “em passepartout banal”11.

A sociedade foi e é uma sociedade de classes. Isso quer dizer que seus elementos basilares são cunhados pela desigualdade da posição das classes. O ordenamento jurídico é parte essencial de todo e qualquer nexo social atual. “Cunhados” quer dizer: formados pela desigualdade e mantenedores da mesma.

VII.

O jurista que não identifica a justiça com o que é simplesmente dado avaliará o direito desigual como direito injusto. Se ele procurar atingir com seu trabalho a justiça, deverá procurar dar o que é de direito aos que não carecem de ajuda e, aos que dela carecem, o que lhes falta.

No ordenamento jurídico, seu campo de trabalho, tal postura se revela idealista. Se ele der aos primeiros o que é de direito, dará mais do que os destinatários poderão necessitar. Se quiser dar uma ajuda que é necessária, transcenderá o direito vigente.

No momento em que ele compreender isso, poderá deixar de ser jurista; ou de ater-se ao direito, enquanto jurista; ou de procurar atingir a justiça; ou ainda conceber a justiça em outros termos que não sejam os do que é simplesmente dado; ou poderá, ainda, procurar uma ordem social na qual o ordenamento jurídico não é parte essencial.

Ou ele poderá recolher as suas bandeiras de combate. Cultiver son jardin juridique. Está por ser redefinido o conceito de escapismo.

***

Notas:

1 Transcrito com duas pequenas alterações de Friedrich Müller. O novo paradigma do direito. Introdução à teoria e metódica estruturantes. 2ª edição, revista, atualizada em ampliada. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2009, pp. 173-177. Traduzido por Peter Naumann, que agradece ex corde a Paulo Bonavides pela leitura atenta e algumas sugestões de ordem estilística, e a Fábio Konder Comparato pelo conselho amigo de “esquecer o original alemão” e tentar fazer da tradução um texto português.

2 Termo das Philosophische Untersuchungen de Wittgenstein.

3 Jogo de palavras intraduzível. O sentido é: operar a máquina (scil. econômica, social, política, cultural etc.)

4 Mais literalmente: tomando-a ao pé da letra [beim Wort = verbalmente], em vez de fazer suas as palavras dos que a dominam. Usei a tradução supra para preservar o jogo de palavras.

5 Versão alemã da expressão latina semper parata [sempre preparado para ajudar, caminhar junto…], o lema das “bandeirantes”.

6 Totaler Feind, totaler Krieg, totaler Staat, in: Schmitt. Positionen und Begriffe im Kampf mit Weimar – Genf – Versailles 1923-1939 (1940), p. 235 e ss. e 239.

7 Die geschichtliche Struktur des heutigen Welt-Gegensatzes von Ost und West, in: Freundschaftliche Begegnungen. Festschrift für Ernst Jünger zum 60. Geburtstag (1955), p. 135 e ss. e 150: sobre uma “inimizade entre os homens”, que “transcende em muito a dimensão da natureza”.

8 Rimbaud, Une saison en enfer (1873), in: Oeuvres Complètes (Pléiade 1963), p. 219 e ss. e 244.

9 Essa “tendência interna que vai além de si mesma” [“überschießende Innentendenz”] foi levada ao extremo onde Schmitt, ao que tudo indica, achava que valia a pena radicalizar ainda mais a frase. Em Clausewitz als politischer Denker. DER STAAT 6 (1967), pp. 479 ss. e 502, a citação tem a seguinte forma: “Le combat spirituel est plus brutal que la bataille des hommes”.

10 A expressão cita o título do livro Die soziale Ordnung des Grundgesetzes [A ordem social da Lei Fundamental] de Helmut Ridder, a quem o ensaio foi dedicado. O livro foi publicado em 1975.

11 Helmut Ridder, op. cit. 1975, p. 151 e ss.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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