O alerta de Tocqueville: quando o direito se curva à tirania, a humanidade mal consegue respirar

Governantes e jurisconsultos – duas faces da mesma moeda

Por Quincas Esquerdopata Borba

para José Dirceu de Oliveira e Silva

Si l’on étudiait attentivement ce qui s’est passé dans le monde depuis que les hommes gardent le souvenir des événements, on découvrirait sans peine que dans tous les pays civilisés, à côté d’un despote qui commande, se reencontre presque toujours um légiste qui régularise et coordonne les volontés arbitraires et incohérentes du premier. À l’amour general et indefini du pouvoir qu’ont les rois, les légistes joignent le goût de la méthode et la science des détails du gouvernement que naturellement ils possèdent. Les premiers savent contraindre momentanément les hommes à obéir; les seconds possèdent l’art de les plier presque volontairement à une obéissance durable. Les uns fournissent la force; les autres, le droit. Ceux-ci marchent au souverain pouvoir par l’arbitraire; ceux-là par la légalité. Au point de section où ils se rencontrent, s’établit um despotisme qui laisse à peine respirer l’humanité; celui qui n’a que l’idée du prince sans celle du légiste ne connaît pas qu’une portion de la tyrannie. Il est nécessaire de songer em même temps aux deux pour concevoir le tout.

Alexis de Tocqueville. État social et politique de la France avant et après 1789. In: Oeuvres complètes, vol. VIII. Paris, 1866, pp. 39 s.

Em 1836 o insuspeito Alexis de Tocqueville escreveu, em passagem secundária do seu grande ensaio sobre o “Estado social e político da França antes e depois de 1789”, um parágrafo, que tomo como mote para essa breve reflexão. Em português:

“Se nos debruçarmos com atenção sobre o que ocorreu no mundo depois que os homens passaram a conservar a memória dos acontecimentos, descobriremos sem dificuldade que existe em todos os países civilizados, junto ao déspota que comanda, um legista que regulariza e coordena os caprichos arbitrários e incoerentes do primeiro. Ao fascínio geral e indefinido dos reis pelo poder, os legistas acrescentam o gosto pelo método e a ciência dos detalhes de governar, que por natureza possuem. Os primeiros sabem compelir momentaneamente os homens à obediência; os segundos detêm a arte de dobrá-los quase que voluntariamente a uma obediência duradoura. Uns fornecem a força, os outros, o direito. Aqueles acedem ao poder soberano pelo arbítrio; estes, pela legalidade. No ponto de intersecção onde se encontram, instaura-se um despotismo que mal deixa a humanidade respirar; os que concebem o príncipe sem o legista, não conhecem senão uma parte da tirania. Para apreender o todo há que se pensar em ambos.”

Excusa dizer aos concurseiros da geração de Sergio Moro e Deltan Dallagnol que “legista” não designa o médico-legista. Tocqueville refere-se ao especialista em leis, ao jurisconsulto ou legisperito. “Legista”, termo menos pernóstico, mais clássico e hoje em desuso, corresponde melhor à dicção clássica de Tocqueville.

O legista não necessariamente é um jurista, um pensador do direito. Entende de leis como um eletricista de Física. Aplica-as. Essa aplicação pode ser sinônimo de torção, perversão ou subversão. Onde isso ocorre na função judicante, o legista se torna um prevaricador. Aplica a lei de modo voluntariamente incorreto.

Entre nós, o representante emblemático do legista sempre a postos para servir aos donos do poder foi Francisco Campos (1891-1968), o “Chico Ciência”. Foi encarregado por Vargas de elaborar a Constituição de 1937, a famosa “Polaca”. Décadas mais tarde, ajudou na redação dos Atos Institucionais Nº 1 e 2 e apresentou sugestões para a Constituição de 1967. Não viveu o suficiente para dar uma mãozinha na redação das “Dez Medidas contra a Corrupção”, que possivelmente teria aplaudido.

Rubem Braga definiu-o com pertinência e simplicidade insuperáveis: “Toda vez que o sr. Francisco Campos acende sua luz, há um curto-circuito nas instalações democráticas brasileiras.”

Salvo engano, a biografia e o pensamento de Francisco Campos ainda não mereceram um estudo mais exaustivo.

Costa-Gavras, cineasta francês de origem grega, assinou há semanas o manifesto “Eleição sem Lula é fraude”. Foi diretor de filmes notáveis sobre as ditaduras militares da América Latina e dirigiu um filme clássico em 1975, intitulado “Section Spéciale”. O filme reconstrói um acontecimento de 1941 na Paris ocupada pela Alemanha nazista. Um oficial alemão é assassinado a tiros no metrô parisiense por um membro da Resistência. Os ocupantes ameaçam com retaliação. Pressuroso, o governo de Vichy cria um tribunal especial (Section Spéciale) com competência para condenar à morte. A necessária lei – retroativa, por sinal – é redigida e promulgada. Sempre há legistas para legislar. E como também sempre há legistas para aplicar a lei, o governo acaba encontrando juízes dispostos ao serviço.

O filme de Costa-Gavras mostra as dificuldades da empreitada. Pode ser visto com legendas em português em https://www.youtube.com/watch?v=RARvX-ztxgQ.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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