A entrevista de Haddad ao Valor

Para assistir aos vídeos, clique nas imagens abaixo:

Parte 1

Parte 2

No Valor

Abaixo, a íntegra da entrevista:

“Núcleo político de Bolsonaro é de tutela e intimidação”

Por Maria Cristina Fernandes e Malu Delgado | De São Paulo

O candidato derrotado à eleição presidencial, Fernando Haddad, tenta fazer um pedido logo no início da entrevista ao Valor, concedida na tarde de segunda-feira em sua casa em São Paulo (ver vídeo no site www.valor.com.br/videos). “Vamos combinar de falar das coisas para a frente?”, propõe, em vão, explicitando o estado de espírito de desapego pós-eleitoral. Não há cheiro de 2022 no ar. Reincorporou o professor e intelectual.

Ao lado dos cachorros Stick e Atena, na casa que viveu dos 6 aos 26 anos e para onde se mudou depois de ter deixado a Prefeitura de São Paulo, Haddad confessa que precisa de alguns dias de férias para reorganizar a vida e “pagar os boletos”. Mas já se preparava para viajar, no dia seguinte, ao sítio de José Mujica, o ex-presidente uruguaio. Chegou há poucos dias dos Estados Unidos, onde esteve, a convite do senador Bernie Sanders, para o lançamento da Frente Progressista Internacional. Essa é a agenda que inspira Haddad, muito mais que reuniões do diretório nacional do PT.

Sobre seu partido, diz não ter nem sequer lido a resolução do diretório nacional do PT, no dia 30 de novembro, que fez uma avaliação do processo eleitoral e da atual conjuntura. Ao analisar as perspectivas do governo Bolsonaro, afirma que haverá três núcleos centrais: o fundamentalista (coeso, com forte carga conservadora e ideológica), o econômico (“escancaradamente liberal”) e o núcleo político, formado pelo Ministério da Justiça e pelos militares. É o núcleo político, afirma, que dará o tom do novo governo, com “duas possíveis tarefas: tutela e intimidação”.

Haddad considera que Bolsonaro teve acesso, antes do segundo turno, ao relatório do Coaf, em que um ex-motorista de seu filho, Flávio Bolsonaro, foi flagrado movimentando R$ 1,2 milhão em um ano. Há também no relatório movimentações para Nathalia Queiroz, filha do motorista, que foi assessora parlamentar do próprio Bolsonaro. “Por que o Coaf liberou para Bolsonaro e não para a sociedade questões que são de interesse público?”

A seguir, os principais trechos:

Valor: O que o senhor descobriu no eleitor que desconhecia?

Haddad: Conheci um eleitorado novo, muitas vezes pobre, ou remediado, ou empreendedor, mas que está no horizonte hoje da política com o qual a esquerda vai ter que aprender a lidar. É uma população que, a princípio, deveria estar sensível ao discurso contra a desigualdade, a intolerância, mas está vulnerável a um outro tipo de diálogo. Essa agenda dos costumes, em grande parte, foi artificialmente construída por partidos conservadores que decidiram pautar temas que não estavam na agenda. Foi artificialmente introduzida para criar clivagens não postas até 2010. Quem começa isso tudo é o PSDB do [José] Serra, introduzindo a religião na vida política, enorme irresponsabilidade.

Valor: Mano Brown tinha razão ao dizer que o PT via parte do eleitorado do Bolsonaro como monstros?

Haddad: Ele não foi tão categórico. Estava no palanque e dei razão a ele no dia que falou. Eu não atentava a essa dimensão da vida nas periferias das metrópoles. Precisamos compreender e dar resposta.

Valor: O presidente da CUT, Vagner Freitas, disse, recentemente, que a eleição do Bolsonaro não foi legítima. Tinha ao seu lado a presidente do PT, Gleisi Hoffmann que disse ter sido uma fraude a eleição sem Lula. O senhor assina embaixo?

Haddad: Essa eleição vai ser analisada pela história sob vários aspectos. A ausência de Lula é um deles. As investigações sobre o WhatsApp e a maneira como o caixa dois foi utilizado para disparar calúnias contra nossa chapa, é outra. Assim como a ditadura militar foi saudada pelos meios de comunicação como uma coisa benfazeja e 50 anos depois vieram a público se retratar, a história às vezes exige tempo de maturação para que as coisas sejam colocadas no lugar.

Valor: A diferença é que agora foi pelo voto…

Haddad: Foi pelo voto, mas com ausência do favorito em todas as pesquisas de opinião.

Valor: O senhor teve 31 milhões de votos no primeiro turno e 47 milhões no segundo. Esse salto, no segundo turno, seria reflexo do antibolsonarismo ou é o reflexo ainda da transferência de votos de Lula?

Haddad: É muito difícil estimar sentimentos. Quando as pessoas falam que foi o sentimento antipetista que elegeu o Bolsonaro, isso é meia verdade. Havia outros 10 candidatos que podiam ter ganhado apoio, que não apoiavam o PT. Mas as pessoas queriam votar no Bolsonaro. E no PT também. Essas duas forças sociais se impuseram. O discurso ultraconservador do Bolsonaro não é algo que possa ser desconsiderado. Representa uma união de propósitos inédita no Brasil, que venho chamando, inspirado na filósofa americana Nancy Fraser, de neoliberalismo regressivo com aliança conservadora nos costumes, na cultura, na ciência e nos direitos civis, que está expressa no ministério.

Valor: O senhor corrobora com a tese de que a normalidade democrática nos EUA vai funcionar como barreira natural às ameaças do “trumpismo” e no Brasil, ao contrário, como não se tem instituições tão enraizadas, há chance de danos maiores?

Haddad: Temos uma sociedade civil mais frágil e um quadro institucional também mais frágil. Os EUA têm 200 anos de democracia. Nós temos 30. Nem que quiséssemos conseguiríamos construir em 30 o que eles fizeram em 200. Até pelo tempo de amadurecimento das instituições.

Valor: Mas a institucionalidade americana também se amolda a excepcionalidades que acabam se normalizando, como a legislação antiterrorista que foi aprovada no 11 de setembro e vale até hoje…

Haddad: Se mesmo lá há condições de manipular a opinião pública, dar drible nas instituições, imagine aqui. No Brasil há três núcleos diferentes no governo eleito, um que chamo de fundamentalista, cujo foco são os direitos civis, que une vários ministros de forma coerente. Depois tem o núcleo da economia, que é escancaradamente neoliberal e não está nem aí para direitos civis. Não vai aumentar imposto, então tem duas formas de acomodar: vendendo patrimônios, a agenda de privatizações radical, e cortando na carne. E tem um terceiro núcleo, que é o político, dado basicamente pelo Ministério da Justiça e pelos ministros militares. O destino do governo Bolsonaro vai depender do núcleo político que tem duas possíveis tarefas: a tutela e a intimidação.

Valor: Como vê o papel do PT, não como um cientista social, mas como liderança do principal partido de oposição?

Haddad: Em meu diálogo junto às bancadas, em Brasília, disse que é muito difícil termos um bloco monolítico de oposição. Precisaremos ter que a agilidade necessária para angariar apoio e evitar retrocessos drásticos. Talvez sejamos minoritários no Congresso sobre temas como a venda da Embraer, mas em relação a direitos civis, talvez sejamos majoritários.

Valor: O senhor disse na campanha que a idade mínima da Previdência não podia ser tratada como tabu. A resolução do PT nem menciona isso. O senhor não teme que o partido acabe reforçando sectarismos?

Haddad: Advoguei na campanha que deveríamos fazer reforma dos regimes próprios e sentar à mesa como fizemos em 2003 e 2012, para mostrar aos servidores que é insustentável. Ah, não quer mexer na idade mínima? Então vai mexer em que? Qual a sugestão? Ouvi-los, até para que eles se convencessem também de que o melhor é mexer aqui e não ali.

“Tem um jogador do banco de reservas [Mourão] que está no aquecimento antes de começar o jogo”

Valor: Mas não é o que o PT fala. Acredita que sem oxigenar a máquina do partido, esse tipo de resolução vai deixar de ser editada? Por que não disputa a presidência do PT?

Haddad: Tudo tem seu tempo. Meu posicionamento na campanha tinha o aval do PT.

Valor: Se o PT só discutir essas questões nas eleições como vai mudar sua relação com a sociedade?

Haddad: De quando é?

Valor: Da última reunião do diretório, de dez dias atrás.

Haddad: Nem li a resolução

Valor: Não dá para acreditar.

Haddad: Juro por Deus. Estava no exterior. Tô cheio de trabalho preparando o ano letivo que vem. Fiquei três meses de licença. Tô lendo tese acadêmica, não de partido.

Valor: Mas é uma resolução de balanço do desempenho do partido na eleição em que o senhor foi o principal candidato.

Haddad: Nem no Brasil estava.

Valor: Não dava para acessar pela internet?

Haddad: A resolução foi refeita…

Valor: Só alguns temas polêmicos e sem consenso foram retirados, mas o cerne foi mantido.

Haddad: Vocês cobram do PT o que não cobram de nenhum partido. Nem o governo eleito tem programa. Mal acompanho a imprensa. Sou professor universitário. Tô fazendo meu trabalho, tentando organizar minha vida. Pedi 30 dias para me organizar. Pagar minhas contas. Ver o boleto que foi pago.

Valor: Se ressente da falta de autonomia naquelas duas primeiras semanas do segundo turno?

Haddad: Ao contrário do que parece, o constrangimento maior foi no primeiro turno.

Valor: Por que?

Haddad: Pelo fato de termos muitos candidatos, um programa recém-lançado. Já no segundo turno, na primeira reunião, praticamente já recebi carta branca.

Valor: Mas nos primeiros dias do segundo turno o senhor parecia procurar um rumo…

Haddad: O que nos tirou o foco no começo do segundo turno foram as fake news do WhatsApp. A gente demorou a entender o que havia acontecido. Até a matéria da “Folha de S.Paulo” não tínhamos ideia do que havia acontecido.

Valor: Vítima que que foi das notícias falsas, se arrepende de ter repassado a acusação do Geraldo Azevedo contra o general Mourão?

Haddad: Você está comparando coisas diferentes. Dei visibilidade a uma pessoa que respeito e sei que foi torturada pela ditadura. E que no dia em que fez isso, teve oportunidade de se retratar. Se isso tivesse acontecido comigo talvez hoje fosse presidente da República. Se Bolsonaro fizesse acusações a mim face a face, como eu fiz, as coisas iriam se elucidar. O que ele fez foi oposto. Dei voz a um torturado, que reconheceu o equívoco no dia. Não houve prejuízo à imagem de Mourão. Com o WhatsApp não se consegue fazer essa reparação.

Valor: Voltando ao PT, ao abdicar de disputar os rumos do partido o senhor não está abdicando também a interlocução com a sociedade? A crise do Macron não mostrou a crise da desintermediação?

Haddad: O Alckmin vai assumir a Presidência do PSDB? [ o tucano na realidade já é presidente da sigla] O Ciro vai assumir a Presidência do PDT?

Valor: Eles não saíram da eleição com a força eleitoral como a sua.

Haddad: Lula não é presidente do PT há quanto tempo? Não é verdade que seja necessário estar na presidência do partido para contribuir como militante, professor. Pelo contrário, muitas vezes a estrutura burocrática te sufoca. O dia a dia é exigente. Teria que parar de lecionar. Quero contribuir da maneira como acho que faço melhor.

Valor: Em suas viagens deve ter constatado que a desintermediação de partidos não levou ao maravilhoso mundo da democracia. Há saída fora de estruturas partidárias?

Haddad: Estou de acordo. Mas nós não apenas reforçamos antigos laços de mediação nessa campanha, sobretudo no segundo turno, como estamos totalmente conscientes de que esta é uma tarefa do próximo período.

Valor: Se sente representado na mediação que o PT oferece hoje?

Haddad: Qual é o partido que hoje oferece essa mediação? O PSL? É a segunda maior bancada. Dá para chamar de partido? Partido mesmo na acepção da palavra que sobreviveu a esse cataclisma do sistema político foi o PT. Quem governou o país depois da ditadura foram o MDB, o PSDB e o PT. O MDB e o PSDB caíram pela metade. Soçobraram na crise. E emergiu uma coisa que a gente não sabe o que é. É uma coisa muito nova ter 30% dos ministérios na mão dos militares. Eu já imaginava há dois anos que a extrema direita ia ter um papel muito grande na disputa presidencial. Mas da maneira como se configurou é uma novidade: fundamentalismo religioso, neoliberalismo e caserna.

Valor: Há viabilidade para um novo partido de centro no Brasil?

Haddad: Estive com o Bernie Sanders, o [Yanis] Varoufakis lançando a internacional progressista. A preocupação de todos é que mesmo governos liberais, no sentido clássico, estão envelhecendo precocemente. O centro está se esvaziando. Tanto [Emmanuel] Macron quanto a [Angela] Merkel começam a perceber o esvaziamento do centro político da Europa, com tensões que jogam na direção do retrocesso da União Europeia. E, do outro lado, uma esquerda confusa entre o nacionalismo e a radicalização do federalismo. No Brasil não temos centro. O Bolsonaro criou um centro entre ele e o PT, que não está articulado. É o que foi derrotado nas eleições. Essa centro-direita pode se organizar num partido. Haverá movimentos nesse sentido. Não é ruim para o país. Fica mais fácil colocar uma barreira à regressão de direitos civis.

“A novidade é como a direita se configurou, com a tríade fundamentalismo religioso, neoliberalismo e caserna”

Valor: Que partidos o senhor coloca nesse espectro?

Haddad: Não sei se são partidos inteiros, tem gente do PSDB que não é da linha do Doria, PV, PPS, setores do MDB. Tem uma chance embora haja uma heterogeneidade grande.

Valor: Como o senhor vê a equação política do futuro governo Bolsonaro no Congresso?

Haddad: Aposta arriscada demais essa ideia de compor por bancadas temáticas. Talvez seja um primeiro movimento para dar satisfação à sociedade de que não haverá toma lá dá cá, e depois não seja possível evitá-lo.

Valor: O fato de ele estar exposto nessa vidraça dos depósitos dos assessores parlamentares a duas semanas da posse afetará a formação de sua maioria no Congresso?

Haddad: O núcleo político é de tutela e de intimidação. Ele teve acesso ao relatório do Coaf, no mais tardar, no dia 15 de outubro. Data em que demitiu o motorista e a filha. Por que teve acesso ao relatório e a sociedade não? São questões que precisam ser respondidas. Por que o Coaf liberou para Bolsonaro e não para a sociedade questões que são de interesse público? Esse expediente, que ao que parece é de peculato, o de usar seu gabinete para fazer vaquinha para si mesmo, é um expediente muito comum no baixo clero. Inexplicável é que só tenhamos sabido agora. Como esse núcleo vai operar é importante saber. Desde o tuíte do Villas Boas, às vésperas do julgamento do habeas corpus de Lula no Supremo, essa interferência, definitivamente, veio à mesa. Qual é o significado disso? Tutela ou intimidação. Você tem um jogador do banco de reserva que está no aquecimento antes de começar o jogo.

Valor: O General Mourão?

Haddad: Sim. Está no aquecimento antes da partida. Para o bem da democracia temos que prestar atenção.

Valor: Essa condição dificultará sua agenda de reformas?

Haddad: Daqui a alguns dias toda investigação por atos praticados antes de sua posse estará suspensa. A Constituição estabelece isso. Depois só por atos praticados a partir da posse e por consentimento do Congresso. O presidente empossado é uma figura muito forte no Brasil.

Valor: O senhor disse que Ciro não soube fazer a coalizão com o PT. Segundo ele, essa coalizão foi interditada pela disposição de Lula de se manter aliado a Eunício Oliveira e Renan Calheiros. É fake news dele?

Haddad: Ciro é um amigo de quem gosto e respeito, mas o PDT apoiou o MDB no Ceará e fez coalizão com Renan Filho em Alagoas. Não vale a pena esse tipo de especulação. Não corresponde ao que estava em jogo. Os três candidatos do PDT a governador que foram ao segundo turno apoiaram o Bolsonaro. São fatos. Não juízo de valor. O PT e Lula tomaram a decisão de levar sua candidatura às últimas consequências. Decisão unânime. Aguardávamos o posicionamento da ONU sobre o tema. E a ONU só se pronunciou porque Lula não desistiu. Ciro tinha que ter aceitado ser vice de Lula para representar a todos na possibilidade de indeferimento da candidatura, mas seria muito difícil pra ele aceitar.

Valor: Essa proposta foi feita ao Ciro claramente?

Haddad: As sondagens aconteceram desde janeiro no sentido de construir a unidade. Eu mesmo sentei nesta casa com Mangabeira Unger, levando minha consideração. Ponderei que a única chance disso dar certo era com a aliança montada dessa forma, pelo fato de o PT estar inteiramente fechado com a candidatura Lula.

Valor: O senhor continua se encontrando com Lula?

Haddad: Com menos frequência porque os temas que me levavam até lá, como advogado eleitoral, cessaram. Continuo interessado em contribuir como advogado nos fóruns internacionais, sobretudo na ONU, quando temos a expectativa de haja julgamento no mérito, do plenário, porque, até agora, apenas dois conselheiros se manifestaram.

Valor: Terá reflexo para o processo judicial no Brasil?

Haddad: A decisão jurídica já está tomada no Brasil, mas para a história terá reflexo. A manifestação do pleno da ONU dizendo que Lula teve seus direitos desrespeitados e a soberania popular foi comprometida é muito importante. Uma figura como ele está pensando na história. Não no conforto da prisão. Tem 73 anos.

Valor: O que o senhor vai fazer, disputar prefeitura, governo? Rodar o país, promover seminários?

Haddad: Não passa por minha cabeça disputar. Tenho convites para rodar não apenas o país, mas também de dezenas universidades da Europa e dos EUA. Falei com [Cuauhtémoc] Cárdenas várias vezes. Estive com o [Massimo] Dalema, [Dominique] Villepin, o Varoufakis, o Sanders, estou indo visitar o [Pepe] Mujica no sítio dele. Quero manter interlocução com essas lideranças.

Valor: E com a sociedade, como pediu o Mano Brown?

Haddad: Vou manter contato também, fui muito para a periferia, mas acho importante trocar experiências com o resto do mundo. Há uma preocupação sobre como enfrentar questões comuns.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.