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Crônica – Amor e abandono: o Brasil inteiro num posto de saúde

  Entrei na sala de procedimentos para receber uma medicação. Enquanto esticava o braço, comentei com a técnica de enfermagem o quanto o posto estava abandonado. “É o desgraçado do Crivella”, me respondeu. Pensei em todo o amontoado de situações com as quais me choquei desde que pus os pés naquele posto de saúde, hoje, […]

2 comentários
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Imagem: Reprodução

 

Entrei na sala de procedimentos para receber uma medicação. Enquanto esticava o braço, comentei com a técnica de enfermagem o quanto o posto estava abandonado. “É o desgraçado do Crivella”, me respondeu.

Pensei em todo o amontoado de situações com as quais me choquei desde que pus os pés naquele posto de saúde, hoje, em busca de atendimento. Eu e aquele tanto de gente buscando alívio pra dor. Em algumas horas entre tempo de espera, atendimento e medicação, pude compreender um vasto universo que se cria naquele microcosmo de uma microrregião da Zona Sul do Rio de Janeiro.

Logo que entrei, busquei atendimento em um dos guichês e descobri que minha “zona” seria Parque Guinle, e que essa equipe seria a responsável pela minha ficha. Ao meu lado, aguardava atendimento uma senhora que custava a falar. Precisava refazer alguns exames. Interpelando, um senhor atravessou varios papeis ao recepcionista. Tinha que tomar aquela medicação injetável, mas tinha que comprar antes ou o posto dava? Ele não sabia. E as seringas? Essas sim, o posto dava.

No meio do dia lotado, minhas costas em petição de miséria com a dor que eu sentia, conseguiram me encaixar entre um grupo de cinco pacientes e outro. Ou seja, ainda demoraria a ser atendido, mas seria. Eu adoro o SUS, pena que esteja abandonado. Ao meu lado, nas cadeiras de espera, uma senhora tira os óculos tão logo eu me sento e desejo boa tarde. Era herpes o que ela tinha. Queria que “a médica olhasse meus exames todos, mas ela me disse que uma coisa de cada vez”. E me contou sobre a médica amiga da filha dela que a consultou por WhatsApp. Eu já fiz isso, né Natália Cardoso? E, então, sobre como o posto era maravilhoso pra ela, que ia toda semana até lá. Mas por que?, perguntei. Ela disse que eles faziam “muita questão dela”. Davam atenção, por fim.

Depois de escapar da primeira senhora – estava difícil dar atenção sentindo dor -, vejo chegar um cara bem alto, negro, cabelo rastafari. Se senta no meu lugar. Tira uns desenhos da mochila e começa a cantarolar enquanto sentado. Até olhei melhor pra me certificar de que não era Luís Melodia logo ali, materializado e reencarnado. Não era, mas a voz era linda. A senhora ainda teve tempo de me contar a história do neto, que se compara a do sobrinho: dor forte nas pernas, formigamento e dor de cabeça. “Virose e stress”, eles disseram. Tudo agora pra “eles” é virose ou stress. “Ah, faça-me o favor. No meu sobrinho era leucemia”. Não sei como, ao me despedir, ela já falava sobre AIDS e o Lauro Corona.

Com muita, mas muita dor nas costas, já preocupado, fiquei me movimentando pelo espaço, fui ao banheiro, torcendo logo pra me chamarem, pelo menos, para a fila lá de dentro, a do atendimento. Me encostei numa parede, uma mulher sentada ao lado numa cadeira filha única. “Viu o tanto de caso de câncer?”. Aqui? Perguntei. “Pra todo lado, meu filho. Tudo agora é câncer”. Ou stress e virose, pensei. Mas câncer, tem muita gente por aqui com câncer? Havia sim, segundo ela. Daí até saber sobre como tratou a queda de cabelos por stress pós-traumático depois de meses cuidando do tio que tivera câncer no reto, tomei conhecimento de cada detalhe de todo este período da vida desta estranha, com uma infinidade de detalhes que agora conheço. Stress é mesmo uma boa forma de definir as coisas. Câncer? Câncer não.

Me chamaram no guichê Parque Guinle e foram específicos: o senhor siga direto por este corredor até o final. Seria atendido lá. Assim o fiz. A primeira senhora, a da herpes, veio atrás de mim e me disse que eu estava no lugar errado, que ali não era minha área. Eu a acompanhei até o local correto, segundo ela, mas desconfiado. Chegando lá, fingi atender o telefone e voltei pra localização original. Confirmei com um simpático faxineiro que ali era o local correto. Ele, que já havia me cumprimentado logo que cheguei, se ofereceu pra conversar com alguém para agilizar meu atendimento. Agradeci. A gentileza, àquela gente, àquele universo paralelo que é o interior de um posto de saúde.

Enquanto esperava ser chamado pela médica, fiquei sentado em meio a pessoas que esperavam para serem vacinadas. Fiquei observando, atento, pessoa a pessoa, face a face, expressão a expressão. Quando falo de saúde pública, é da vida dessas pessoas que falo, pensei. E da minha própria. E que bom que aquele espaço ali nos acolhia. Enquanto voltava da viagem com a senhora que queria me mudar de lugar, passei por um grupo de moradores que se reunia com a assistente social. Discutiam sobre as visitas e atendimentos a pacientes diabéticos. Na fila das vacinas, vi jovens pais totalmente perdidos com seus primeiros filhos, vi um casal adolescente com a recém nascida e um casal já mais velho, pais de primeira viagem, vi uma mãe solteira, um irmão mais velho levando uma bebezinha linda, com quem fiquei brincando e sorrindo.

Observei com atenção cada relação que se estabelecia ali. Os apelos dos casais mais novos, a impaciência dos mais velhos, a idosa atendendo como Agente de Saúde “experiente”, toda responsável de sua função. A fila de espera para a vacinação de filhos, a de gripe, a triagem dos casos mais complicados aos de menor risco, pra usar com precisão o lote de vacinas. Passando por mim três mulheres correndo, quando veem a fila, resmungam que não vão poder ficar, não iria dar tempo. A criança que acompanhava, uma menininha negra, sorri e comemora: não ia tomar vacina e ria da cara da mãe.

Logo após ser atendido por dois médicos, que se revezaram ao me examinar – eu disse adoro? Eu AMO o SUS – eu segui para a sala de “Procedimentos” onde Patrícia me atendeu. (Não coloquei aqui os nomes verdadeiros). Estava sozinha, entrei e já vi as seringas e ampolas junto à bolsa de soro. Comemorei. Disse a ela que salvaria minha vida, que não aguentava a dor na coluna mais. Ela riu e riu mais ainda quando pedi “me fura com cuidado, moça”, denunciando meu minerês. Patrícia é mãe de Vitor, que tem sete anos. Ontem ele derramou leite com Nescau no piso branquinho dela. É levado, mas parece adulto. Já começou a ajudar em casa. Ela mora com ele, com o namorado e com a mãe. Em breve, vai se mudar só com o namorado e Vítor, que recentemente ganhou um daqueles skates futurísticos que foi comprado em uma vaquinha entre a mãe, a madrinha, a avó e o pai. E Vitor, que caiu no primeiro dia, disse não mais querer. Quando dei por mim, já estava mergulhado nas histórias da comunidade do Itanhangá.

Entrou na sala a técnica de enfermagem Rita. Eu já estava lá com o soro, ela leu a receita pregada junto à bolsa e fez piada: “Menino, é um senhor coquetel”. A dor é grande, moça. Ela emenda contando que vê as crianças no posto e tem vontade de ter mais filhos. Mas quando ela “lembra que já pariu 3”, ela perde a vontade até de fazer sexo. E a contracepção? Perguntei. “E casado liga pra isso?”

Comentei com ela, como inicio ao narrar, que o posto estava abandonado. Após falar de Crivella e eu concordar com todos os insultos que se seguiram, Rita disse em alto e bom som: todo mundo querendo acabar com a clínica da família e em quem essas pessoas votam? Wilson Witzel (vocês podem imaginar o tom de voz de desprezo e ironia). Eu disse que votei na Marcia, ela disse que ela também. Eu disse que ele, Crivella, era corajoso de começar a visitar comunidades. Patrícia logo disse: na minha, nem Crivella nem Witzel têm coragem de ir. E se aparecer perto de mim, eu gasto meu “réu primário” com ele. Achei interessante a ideia de se “gastar” o beneficio de ser réu primário para um crime que compensava-se cometer. Como se fosse a carta coringa que Patrícia tivesse.

Rita também mora na comunidade do Itanhangá. Tem três filhos, todos na faixa dos 13 a 15 anos. Um deles é Tiago, como gosta de ser chamado. Todos os três, juntando com o marido, ela contou, formam um grupo de crianças que não ajudam em casa, ficam vendo filmes enquanto ela trabalha. “Mas descobri como funciona. Posso atirar panela no chão e gritar que eles falam que tava tudo em paz até eu chegar. Mas agora eu aprendi: eu começo a chorar e falar que não aguento essa vida mais e eles limpam tudo”. Rita fala que não, mas aguenta sim essa vida.

Me contou orgulhosa que Tiago, que por acaso estava ali, desenhava mangá, “uns bonecos com cabelo todo espetado, sabe?” Fez imitando com as mãos os cabelos dos bonecos que o filho desenhava. Enquanto ouvia mais histórias engraçadas de sua família e de Patricia, me apresentou a ele e seus desenhos. Ele tem 15 anos. Sentou-se ao meu lado e pôs-se a conversar. Estuda na Av. Das Américas, desenha quando dá, mas, às vezes, passa meses sem desenhar. Quer trabalhar com games e ser programador. Contei a ele que era jornalista. Ele disse que adoraria ser jornalista para poder ir ao Rock in Rio de graça. Eu ri, mas mandei ele ser programador mesmo, que jornalismo não dava dinheiro. “Ah tio, mas assim, com uns mil e quinhentos da prover bem, né?”. Você tem razão, Tiago. A gente nem precisa de tanto assim pra viver.

Enquanto me preparava pro final do soro, Patrícia e Rita se arrumavam para sair do turno. Um menino chegou passando muito mal, com formigamento e vomitando. Uma amiga me deu dica de um remédio. Corretores de planos de saúde começaram retornar alguns contatos – por precaução, os procurei na madrugada. Uma senhora por ali passou para tomar sua injeção dia-sim-dia-não e conversamos um pouco sobre maternidade. Minha mãe ligou pra saber se eu estava bem. A enfermeira me emprestou um carregador. Perguntei à namorada do rapaz que chegara muito mal se ele estava bem e ela disse que sim. Um senhor veio aferir a pressão e ouviu a piada do médico, que torcia para o time errado, essa era a causa. Tiago também me contou que sua escola à noite é perigosa e que ele estudaria de manhã. O recepcionista lá de fora entra na sala e pergunta se alguém pode atender um morador de rua que queria cobrir um ferimento até a consulta do dia seguinte. Todas se negaram.

– Ajuda o moço, mãe. Não ele (eu), o moço que mora na rua.
– Meu filho, não é assim. Tem horário, eu já tenho que sair. Um dia você vai entender essas coisas. A enfermeira tem que preparar e assinar pra que eu possa ajudar e ela já saiu.

Tiago parecia desapontado. Eu também, não vou negar. Poxa, Rita, ajude o moço. Mas Rita se aprontou, pegou Tiago e saiu. Antes, me disse. “Quando voltar aqui essa semana, não esquece de me falar dos cursos de desenho mais baratos que você vai procurar”. Tudo bem, não vou esquecer. Só se eu tiver stress ou virose, fiz a piada internamente. Me despedi dela e de Patrícia. O rapaz que chegara por último teve o diagnóstico: gastroenterite. Meu soro acabou e outra técnica veio retirar o acesso. “Só vou retirar o acesso desse menino e já te atendo, ok?”. Disse ela a uma moça que perguntava se tinham chamado por Giovana. “Esse é o seu nome? Então chamei”. Que sorte eu dei de ter Rita e Patrícia ali comigo até então. Giovana estava aliviada. Deu negativo o teste de gravidez.

A vida por ali é corrida. O abandono do estado é grande, mas é maior o coração daquela equipe.

Saindo do posto de saúde, eu ganhei as ruas com o braço gelado pelo soro, dolorido pelos medicamentos e a sensação de que era tudo real demais, talvez bonito demais por isso mesmo, e que existiam pessoas fantásticas naquele microcosmo. Liguei pra minha mãe pra contar que estava melhor. Avisei ao Pedro que estava indo pra casa. Li uma manchete sobre os 80 tiros que assassinaram um homem na semana passada. Notre Dame incendiada. Uma amiga liga pra se dizer saudosa. Coração doeu de novo. Liguei para minha prima pra desejar feliz aniversário, recebi uma noticia triste, voltei a sentir uma leve dor, já contei tudo isso pro Pedro, enquanto agradecia o cuidado e a presença e agora estou aqui escrevendo tudo isso com a sensação de ter tido um dia, apesar de dolorido, potente.

Me encontrar com as histórias que contam por aí. Parar para ouvir. Pararem e me ouvirem. O SUS, o Crivella, as mazelas, Wilson Witzel e tiros do exército. Incêndios e prédios caindo. E, naquele microcosmo, era possível sentir a potência em todas suas escalas de reações. Desde o acolhimento ao máximo abandono do poder. Que bom seria acompanhar e saber mais da primeira senhora, daqueles pais, incentivar os desenhos de Tiago, o sorriso de Rita e Patrícia, de toda aquela gente. E é dessa subjetividade que temos que nos alimentar. Da capacidade da poética enquanto tentam nos ferir. Adorei ter conseguido pensar que recuperei, por fim, essa capacidade de ver poesia nas veias abertas da realidade escaldante carioca.

Não importa se é virose ou stress, afinal. Naquele pequeno universo que visitei, o que importa é atenção. Mas, claro, é bom que todo mundo saiba que lá me alertaram que há um surto de diarreia no Rio de Janeiro.

Sim, tem mais essa.

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Guto Alves

Guto Alves, 27, é jornalista e produtor no Rio de Janeiro Twitter: @gutoalvesp

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Comentários

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MARIANA DE P SILVA

17/04/2019 - 21h50

Que lindo texto !!! Lavou a alma. Por favor escreva mais aqui. Precisamos urgentemente de humanidades assim, da sua e das que você descreve. Um abraço !

    Paulo

    21/04/2019 - 00h10

    Endosso!


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