Análise da audiência de Moro na Câmara dos Deputados

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Façamos uma análise da audiência do ministro Sergio Moro, realizada ontem na Câmara dos Deputados, começando pela última intervenção, a do deputado Glauber Braga (Psol-RJ), que pode ser assistida no minuto 7:14:48. O player abaixo já está no ponto.

Braga (PSOL-RJ) fez um paralelo com futebol, lembrando a figura do “juiz ladrão”, que interfere no resultado do jogo.

Os governistas se enfureceram com a comparação, e partiram para cima da presidência da comissão, exigindo que o termo “ladrão” fosse retirado das notas taquigráficas.

Depois de alguns minutos de confusão, o ministro se levantou e se dirigiu à saída. Os deputados de oposição começaram a gritar “fujão”. Os governistas rebateram gritando “ladrão”, apontando o dedo para a oposição.

A oposição reagiu intrigada, acho que alguns começaram a repetir ladrão também, mas apontando para o ministro que saía, porque este tinha sido o termo usado por Glauber Braga, referindo-se a Moro.

Minha impressão da audiência é que Sergio Moro aferrou-se ao discurso, e o levará até o fim, de que não pode garantir a autenticidade das mensagens, e que, mesmo se forem verdadeiras, elas não conteriam nenhum ilícito: “é um grande balão vazio cheio de nada”, repetiu ele ao longo da audiência.

O cinismo e a frieza do ministro são impressionantes. Não é a tôa que ele tenha sido o “chefe da Lava Jato”, cometendo todo tipo de abuso jurídico e mesmo assim se mantendo, por tanto tempo, à frente de uma operação dessa envergadura.

Moro é alguém acostumado a correr riscos.

Os deputados de oposição estão afiados, mas o ambiente da Câmara acaba trazendo uma vantagem a Moro, a de levar adiante a sua narrativa de que todo o escândalo seria uma questão político-partidária, e não uma questão de Direito Penal.

Por outro lado, agora que há provas de tudo que Moro foi capaz de fazer ao longo de sua atuação como juiz da Lava Jato, entende-se melhor sua decisão de se tornar ministro: no fundo, Moro sabia que não poderia defender suas ações se se aferrasse apenas à lei e à jurisprudência; ele precisava de poder político, de ocupar uma posição de poder político, o que seria a maneira mais segura de defender suas decisões e seus métodos.

Temos uma situação complexa, cheia de contradições e nuances, mas que desenha um quadro bastante claro: as denúncias do Intercept, ao mesmo tempo que debilitam severamente a imagem de Moro como juiz, estão lhe fortalecendo como político. Não como um político independente, que representasse uma ideia ou um conjunto de valores; um ministro, por exemplo, que seria capaz de se insurgir contra o próprio governo, caso entendesse que o presidente estivesse ofendendo valores democráticos, éticos ou republicanos que lhe fossem caros. Não é esse tipo de político que Moro está se tornando. As denúncias do Intercept, e seus reflexos na conjuntura, fazem de Moro um ministro cada vez mais bolsonarista; as denúncias estão empurrando-o para o núcleo central do governo Bolsonaro, e não mais como um protagonista com relativa autonomia. Se antes havia especulações de que Moro poderia oferecer algum tipo de sombra a Bolsonaro, ou mesmo algum risco ao governo, hoje isso é página virada. Simultaneamente, porém, à medida em que sua imagem perde valor como uma figura independente, ele se torna ainda mais importante para o governo, porque mais identificado a ele.

Poderíamos dizer que o Sergio Moro juiz foi enterrado definitivamente ontem, na audiência da Câmara, e o que vimos foi o seu renascimento como um político cínico, debochado, reacionário, e por isso mesmo tão forte dentro de um governo como o de Jair Bolsonaro.

Na medida em que Moro perde as esperanças (se é que as teve um dia) de ser aceito pela elite jurídica do país como alguém com ideias próprias sobre Direito e Democracia, ele se dá conta – é o que suponho – de que o seu poder depende, cada vez mais, do governo. Agora que largou a magistratura – que, como ele própria confessa, despudoradamente, lhe oferecia tantas vantagens pecuniárias – a política é a única e última coisa que lhe resta.

A desvantagem para Moro é que ele, ao se colar de maneira tão orgânica a Bolsonaro, agora ficará tão dependente quanto o presidente de boas notícias em matéria de economia e política social – e estas notícias não estão vindo.

Entretanto muitas armadilhas se colocam para a oposição. A primeira delas é que as denúncias do Intercept, por mais graves que sejam, comovem apenas uma parte da população. E não porque a população seja desinteressada por questões de justiça, mas pelo fato muito mais pungente de que a situação econômica é dramática.

De um lado, as pessoas mais pobres e menos instruídas, com dificuldade para entender debates jurídicos e políticos sobre Direito Penal, estão aflitas, desesperadas, com os riscos que a crise econômica traz para a sua sobrevivência física.

De outro, cidadãos de renda média, com maior instrução, ainda apoiam, em sua maioria, o governo Bolsonaro (seu apoio nestes setores não está caindo no mesmo ritmo com que cai entre mais pobres; na verdade, até cresceu um pouco na última pesquisa CNI/Ibope), por razões políticas.

A denúncia de que a prisão de Lula é “política” não comove estes setores médios; ao contrário, seu desejo de que o ex-presidente continue preso é abertamente político. A candidatura de Lula a presidência da república não ajudou a despolitizar a sua prisão. Milhões de brasileiros passaram a ver a prisão de Lula não mais como uma questão jurídica, mas sobretudo como uma necessidade política; não basta apenas derrotar o PT nas urnas, parecem pensar, é preciso manter Lula preso.

Quando a Vaza Jato é vista, por isso mesmo, apenas pela perspectiva de que seria um pretexto para se libertar Lula, e não uma nobre oportunidade para aperfeiçoarmos, de maneira geral, as nossas instituições penais, blindando-as contra abusos e arbítrios, o seu potencial político de oxigenar democraticamente a prática jurídica no país, derrubar um ministro corrupto e, efetivamente, soltar Lula, se choca contra um muro de ódio.

O movimento bolsonarista já assimilou possíveis derrotas no STF, cujo prestígio vem combatendo há tempos; aliás, neste quesito, com ajuda luxuosa de uma parte importante da esquerda, que também combate duramente o STF – e não tinha como ser de outra forma – desde que este começou se transformar em instrumento de exceção.

Então temos uma situação paradoxal: uma decisão do STF contra Sergio Moro e em favor de Lula, em agosto, pode gerar um efeito exatamente contrário ao que tem ocorrido até então. Lula tem sofrido sucessivas derrotas jurídicas, mas estas se convertem, até certo ponto, em vitórias políticas, inclusive elevando-o à condição de mártir internacional da esquerda. Com a possível suspeição de Moro, numa mesma decisão em que o ex-presidente é posto em liberdade, estaríamos diante da mais relevante vitória jurídica de Lula desde que foi preso, mas possivelmente seria também uma derrota política para ele (e uma vitória para Bolsonaro), porque todo esse eleitorado antipetista, que hoje se tornou a maior força política do país, irá se mobilizar, de uma maneira ou outra, em favor de Sergio Moro. A sensação dentro de algumas bolhas de esquerda será de grande vitória, mas a realidade fora da bolha, ou seja, no mundo concreto, será bem outra.

O resultado pode ser o fortalecimento de Bolsonaro, pelas mesmas razões que produziram sua vitória eleitoral em 2018. Para lembrar: à medida que o PT brandia, em rádio, TV e redes sociais, a possibilidade de que Lula poderia voltar a ser presidente, independente do fato de estar preso e condenado, a população, não movida necessariamente por um “antipetismo” de ordem ideológica, mas antes por um desejo legítimo (e desesperado) por mudança, que é tão natural em democracias, voltava-se para o candidato que entendia ser exatamente o oposto de Lula e do PT.

O que fazer diante dessas armadilhas? Bem, provavelmente não muita coisa. A essa altura já virou futilidade sugerir bom senso e “estratégia” aos agentes políticos, pois isso implicaria que estes agissem exatamente da maneira contrária ao que vem fazendo desde meados de 2018. Mesmo assim, seguem algumas reflexões:

  • A oposição deve bater na tecla que o arbítrio judicial, se for normalizado, ou seja, se não for denunciado e devidamente punido, mantém o país numa situação eterna de  instabilidade jurídica e política, o que inviabiliza qualquer movimento de  recuperação econômica.
  • A liberdade de Lula é necessária por uma questão de justiça, porque a sentença de Moro é absolutamente inconsistente. Ponto.
  • Lula, todavia, é uma pessoa profundamente estigmatizada politicamente. As mesmas pesquisas que petistas e o próprio Lula gostam de lembrar obsessivamente, por mostrarem a vantagem eleitoral de Lula ao longo do primeiro turno da campanha presidencial de 2018, também mostravam que a maioria dos eleitores queria vê-lo na prisão, num percentual que crescia assustadoramente no sudeste, no sul, e nas camadas mais instruídas da população. Por essa razão, sua eventual  liberdade deveria ser tratada sem triunfalismo; não será uma grande “vitória política” nem um “terceiro turno”. Caso aja assim, o PT estaria apenas fazendo uma provocação que pressionaria a justiça a acelerar outras condenações, tanto de Lula quanto de outros quadros importantes do PT.
  • O desprestígio de Sergio Moro e as denúncias da Vaza Jato, se tratadas com inteligência, sem paixões políticas excessivas, estimularão um debate jurídico profundo, em que será possível construir consensos progressistas mínimos, ao menos na área do Direito Penal, necessários para estabilizar a nossa democracia, já que evidentemente não voltaremos à normalidade democrática enquanto juízes e procuradores agirem como justiceiros, sem compromisso com as garantias e liberdades fundamentais vigentes em nossa Constituição.
  • As condições sociais do país ainda são tão precárias e desiguais que o campo conservador só conseguiu ascender ao poder após a normalização de uma série de arbítrios judiciais; entretanto, a esquerda – especialmente o PT, mas no fundo todo o campo progressista, que se calou e se omitiu- tem responsabilidade direta, ao não ter oferecido o combate necessário quando as conspirações jurídico-midiáticas começaram a intervir no processo democrático; ao invés de combater, parte da esquerda entregou-se ao autoritarismo, aceitando indicações pouco refletidas para tribunais superiores e sancionando uma política penal profundamente irresponsável e antidemocrática.
  • Se é muito difícil transformar as burocracias do país em forças progressistas, já será uma grande vitória se conseguirmos ao menos neutralizá-las politicamente, ou seja, criando aqueles consensos de que falo no item acima. Obtendo essa mínima neutralidade política por parte das burocracias jurídicas, o campo progressista terá o caminho livre para voltar ao poder e governar o país; aliás, o campo precisa se dar conta de que não basta criar algum tipo de onda efêmera que o permita ganhar esta ou aquela eleição, mas sim lutar para a consolidação de um estado de coisas que ofereça ao país um longo período de estabilidade e crescimento econômico – independente do partido que venha a governar.
  • Neste sentido, a luta contra o arbítrio e contra Sergio Moro tem importância estratégica para todo o campo progressista. E por ser tão estratégica, precisa ser conduzida com muita inteligência, sem os vícios chauvinistas e triunfalistas dos últimos anos.

Felizmente, as coisas jamais se dão de maneira tão esquemática ou previsível como estamos falando. Novos fatos virão à tôna. O próprio escândalo da Vaza Jato ainda está em seu começo. Espera-se que áudios comprometedores de Moro & Dallagnol possam provocar maior comoção, furando bolhas e constrangendo setores sociais que ainda sustentam o legado do ministro à frente da Lava Jato.

Se Moro e Bolsonaro, juntos, formam um bloco forte, também formam um bloco mais pesado, que afunda mais rápido.

Abaixo, o relato da Agência Câmara:

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Na Agência Câmara Notícias

Sérgio Moro nega parcialidade e descumprimento da lei em atuação como juiz
Atualizado em 02/07/2019 – 22h16

Atual ministro da Justiça esteve na Câmara para prestar esclarecimentos sobre denúncias publicadas pelo site The Intercept Brasil. Oposição considerou respostas do ex-juiz evasivas e criticou a atuação dele na Lava Jato; deputados pró-Moro defenderam decisões do ministro

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, voltou a afirmar que não foi parcial nem infringiu nenhuma lei em sua atuação como juiz na primeira instância na Operação Lava Jato. Ele falou nesta terça-feira (2) por sete horas e meia em audiência conjunta de três comissões da Câmara dos Deputados: de Constituição e Justiça e de Cidadania; de Trabalho, de Administração e Serviço Público; e de Direitos Humanos e Minorias. Moro prestou esclarecimentos no Senado em 19 de junho.

“Como juiz na Lava Jato sempre agi com correção, com base na lei, com base na imparcialidade, decidindo os pedidos apresentados, sem qualquer desvio. As minhas decisões já foram avaliadas nas instâncias superiores”, disse Moro. Segundo o ministro, a maioria (39%) de suas decisões foram mantidas pelo Tribunal Regional Federal da 4ª região (TRF-4) ou mesmo tornadas mais rígidas (25%).

Os deputados queriam esclarecimentos sobre o conteúdo revelado pelo site de notícias The Intercept Brasil, que trouxe mensagens supostamente trocadas entre Moro, então juiz federal, e o coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, o procurador Deltan Dallagnol. Além de mensagens entre outros procuradores membros da força-tarefa.

Moro afirmou que não dirige nenhuma investigação da Polícia Federal sobre eventual ataque hacker aos celulares dele e de procuradores da Lava Jato e que apenas acompanha o caso como vítima. “Minha opinião é que alguém com muitos recursos está por trás das invasões. O que existe é uma tentativa criminosa de invalidar condenações e evitar novas investigações”, declarou.

Segundo o ministro, não é possível recordar-se das mensagens divulgadas porque ele deletou o aplicativo Telegram em 2017. “Não reconheço, mais uma vez, a autenticidade de um material que não tenho. O que se tem presente é que não tem nada ali de conteúdo ilícito [nas mensagens]”, disse Moro.

Parcialidade

O líder do PT, deputado Paulo Pimenta (RS), porém, questionou se o ex-juiz manteve diálogos parecidos com a defesa e com a acusação nos processos que julgou. “O senhor falou que é trivial conversar com advogados e procuradores. Quero que o senhor cite cinco advogados com quem tenha conversado pelo Telegram. Quero que o senhor mostre um diálogo com o senhor Cristiano Zanin [advogado de Lula]”, declarou.

Moro respondeu que não manteve conversas com Cristiano Zanin por sua “atitude beligerante” nas audiências.

Segundo o deputado Rui Falcão (PT-SP), a fala sobre Zanin demonstra que a alegação do ministro sobre “memória fraca” não prevalece sempre. “Se isso não é prova de parcialidade, é um indício forte.”

Falta de memória

A líder da Minoria, deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), afirmou que Moro se comporta nas mensagens como sócio da acusação, como chefe dos acusadores. “Nos diálogos que estou lendo, há violação da Constituição, do Código de Processo Penal e do Código de Ética da Magistratura. Há uma violação imensa na legalidade da tradição jurídica brasileira”, sustentou. Feghali questionou ainda a “falta de memória” de Moro por não se lembrar de fatos como o diálogo com indicação de testemunha para os procuradores da Lava Jato. “Uma conduta dessa não pode não estar na sua memória”, comentou a deputada.

Para o deputado Marcelo Freixo (RJ), vice-líder do Psol, Moro não deveria usar os resultados da Lava Jato como defesa pessoal. “Ao fazer a justificativa das suas atitudes usando a operação, o senhor cria uma cultura de que os fins justificam os meios. O senhor não pode defender que o juiz possa seguir uma determinada conduta a depender do réu”, criticou.

Montanha e rato

Por outro lado, o deputado José Medeiros (Pode-MT), vice-líder do governo, afirmou que a narrativa inicial da divulgação das mensagens era a de que “o mundo iria cair”, mas isso, na visão dele, acabou não acontecendo. “A grande verdade é que a montanha pariu um rato”, apontou. Para Medeiros, a divulgação tem objetivos claros: a libertação do ex-presidente Lula; a desconstrução da Lava Jato; e dar uma grande derrota ao governo Bolsonaro.

Conforme a deputada Bia Kicis (PSL-DF), muitos parlamentares têm a “cara de pau” de agredir Moro com o intuito de questionar as decisões tomadas por ele, em especial no processo contra o ex-presidente Lula. Para Kicis, o fundador do The Intercept, Glenn Greenwald, que teria informações bombásticas a revelar, terminou a semana passada desmoralizado ao justificar erros de edição nas mensagens divulgadas.

Para o líder do Novo, deputado Marcel Van Hatten (RS), a energia que alguns deputados dispensam “para atacar o combate à corrupção e defender bandido é de envergonhar o Parlamento”. Segundo ele, a maioria da população apoia a atuação de Moro como teria sido comprovado pelas manifestações em diferentes cidades do País no domingo (30).

Mártir de imprensa

Moro justificou não ter processado o The Intercept pela divulgação das mensagens por defender a liberdade de imprensa. “Acho que havia interesse de pedido de busca e apreensão para que a pessoa pudesse posar como ‘mártir da imprensa’”, argumentou. De acordo com ele, todas as reportagens até agora são “um balão vazio no meio de nada”. Para ele, é um “escândalo fake afundando”.

O ministro afirmou ainda não ter receio de que novas mensagens sejam divulgadas, pois está tranquilo com sua atuação como juiz. “Pode ser que saia alguma coisa. Se saírem as mensagens sem adulteração, só vão revelar compromisso com a lei, imparcialidade e ética”, disse Moro.

Confusão

A reunião foi encerrada após desentendimentos entre parlamentares. A fala do deputado Glauber Braga (Psol-RJ) de que Moro seria reconhecido pela história “como um juiz que se corrompeu, como um juiz ladrão” gerou reações de deputados favoráveis ao atual ministro, que pediram a retirada do termo “ladrão” das notas taquigráficas.

Reportagem – Tiago Miranda
Edição – Geórgia Moraes

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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