Considerações sobre o golpe na Bolívia

É muito triste testemunhar mais um golpe de Estado na América Latina. Nos últimos anos, assistimos golpes se repetirem em Honduras, no Paraguai, no Brasil, e agora, na Bolívia de Evo Morales.

Provavelmente, não há região no planeta mais propensa a golpes do que as terras ao sul do Rio Grande.

No caso da Bolívia, o golpe ainda não está totalmente consumado, porque tudo vai depender de um fator fundamental: haverá novas eleições em 30 dias, conforme o presidente Evo Morales havia prometido?

Se houver novas eleições, então a democracia boliviana, apesar de ferida, tem chances de sobreviver.

Sem eleições, então teremos, em pleno século XXI, uma ditadura militar instalada ao nosso lado.

Para o Brasil, isso é ruim, naturalmente, porque a Bolívia era um dos poucos países da região cuja economia vinha crescendo a taxas vigorosas, e  é um parceiro comercial importante nosso.

O momento, naturalmente, é de oferecer total solidariedade ao povo boliviano, e ajudar, da melhor maneira possível, que o processo eleitoral se realize, e a democracia possa ser restaurada no país.

Entretanto, julgo conveniente iniciarmos, desde já, um debate sobre as causas do nosso continente ser tão vulnerável a essas rupturas da ordem democrática.

Suponho que o fato de ser a região que apresenta os índices de desigualdade mais altos do planeta tenha algo a ver com isso.

Quem controla as riquezas e a renda, em países com índices de desigualdade tão elevados, estará sempre profundamente inseguro enquanto não segurar as rédeas do poder em suas mãos.

Este é, me parece, o principal fator de instabilidade da região.

De qualquer forma, essa é uma realidade dura com a qual as vanguardas políticas já vem lidando há muito tempo.

As concessões das esquerdas, quando no poder, ao status quo, em especial ao mercado financeiro, é resultado dessa fragilidade, que obriga os governos populares a sempre caminharem sobre uma linha tênue, permanentemente ameaçados pela violência de adversários com pouco comprometimento democrático.

Outro ponto que deveríamos discutir, porém, são as ações preventivas que o campo popular, diante desta vulnerabilidade, deve sempre adotar, para evitar esse tipo de problema.

Para mim, as ações preventivas antigolpe poderiam ser dividir em três eixos:

  1. Comunicação.
    Um governo popular precisa se comunicar diretamente com a população, de maneira a quebrar a influência dos meios de comunicação tradicionais, invariavelmente submissos a interesses políticos estranhos à soberania dos países latino-americanos. O novo presidente do México, Lopez Obrador, faz conferências de imprensa todos os dias.  É preciso também incentivar a pluralidade midiática, através do financiamento direto de canais de jornalismo independente, mesmo que isso implique em riscos políticos para o próprio governo, que será o principal alvo das investigações jornalísticas desses mesmos órgãos. Melhor correr esse risco do que levar golpe: esse mesmo raciocínio valerá para muitas outras ações. O governo também precisa investir em revistas de cultura voltadas para as classes mais instruídas, de maneira a cultivar – democraticamente – o apoio das camadas intermediárias, que são os setores mais vulneráveis às campanhas conservadoras patrocinadas pelas elites financeiras. É importante, todavia, evitar a cultura da cooptação, que é uma solução fácil, mas cujos resultados são enganosos. O governo precisa trabalhar com a cultura da emancipação, ou seja, fomentar a criação, na sociedade, de núcleos independentes de opinião. Repito: isso implicará riscos, porque esses núcleos podem se voltar contra o governo, mas é um risco calculado, que vale a pena correr.
  2. Inteligência.
    Nenhum governo sobrevive muito tempo sem um bom serviço de inteligência, que não deve ser confundido pela imagem caricatural que holliwood faz da CIA, do Mossad, da KGB, entre outros. A função mais importante dos serviços de inteligência, apesar disso não aparecer no cinema, é a produção de relatórios econômicos, sociais, políticos, boa parte deles abertos à consulta pública, que permitam ao governo e à sociedade combaterem as campanhas de desinformação.

    Ainda no campo da inteligência, governos progressistas devem criar, patrocinar, ou fomentar, thinks tanks, ou centros de pensamento, de maneira a levar adiante a luta de símbolos e ideias. Isso é fundamental. Mais importante ainda é que estes centros tenham autonomia, ou seja, que não fiquem vinculados excessivamente ao poder político, vulneráveis ao interesse partidário menor e de curto prazo, que mata qualquer possibilidade de produção de conhecimento.

  3. Participação democrática.
    Um governo popular, se leva a sério a questão democrática, deve trabalhar pela emancipação política da sociedade. Para isso é preciso criar universidades autônomas, descentralizar o poder, e, dentre muitas outras ações, aprender a lidar com derrotas eleitorais.

    Um dos erros mais graves de Evo Morales, e que, seguramente, está por trás do atual golpe de Estado, foi não ter aceito o resultado de um referendo proposto pelo próprio governo, em 2016, sobre a possibilidade de reeleição contínua do presidente. Evo Morales perdeu o referendo: 51% dos votos foram para no “não”, numa eleição que contou com a participação de 84% dos eleitores. Em seguida, porém, o Tribunal Eleitoral do país autorizou que Evo concorresse novamente, através de uma brecha na lei que interpretava o direito de se reeleger continuamente como um “direito humano”. Com isso, o governo golpeou a credibilidade da principal autoridade eleitoral do país, e despertou o espírito golpista, que talvez andasse adormecido na Bolívia, em função do crescimento econômico e dos bons índices de aprovação popular do presidente.  Por ocasião das eleições presidenciais deste ano, quando o tribunal eleitoral atrasa a divulgação dos resultados por algumas horas, a sedição golpista abre os olhos; quando a OEA menciona a possibilidade de fraude e pede novas eleições, os golpistas vão às ruas, queimar e quebrar tudo.

 

A alternância de poder é um tema fundamental para a democracia.

A comparação com governos parlamentaristas, como o da Alemanha, Israel ou da Inglaterra, em que os primeiros ministros duram muito tempo, não é válida, porque a realidade política é completamente distinta. Governos parlamentaristas podem ser desfeitos a qualquer momento, bastando um voto de desconfiança do parlamento.

O presidente Franklin Roosevelt elegeu-se quatro vezes seguidas, mas este também não é um bom exemplo, porque foi justamente por causa disso que os EUA aprovaram, logo após a morte de Roosevelt, uma emenda constitucional proibindo mais de dois mandatos consecutivos. Ou seja, o fato de um presidente se eleger por quatro mandatos deixou cicatrizes. Além do mais, a quarta eleição de Roosevelt se deu num momento muito excepcional: era 1942, e os EUA estavam no meio da II Guerra Mundial.

A essência do espírito democrático, desde seus primórdios, é o combate à concentração de poder em poucas mãos, e sobretudo em mãos de um só. Insistir em permanecer no poder por mais tempo do que prevê a Constituição e o bom senso é cultivar o golpismo.

O resultado, além disso, como se vê, é contraproducente.

Evidentemente, nada disso justifica um golpe, mas essas são reflexões importantes para evitar novas rupturas.

Ao invés de lamuriar-se eternamente pelos golpes consumados, a esquerda precisa desenvolver teorias e técnicas objetivas, factíveis, para debelar essas ondas de golpismo que, periodicamente, assolam nosso continente.

Aqui no Brasil, por exemplo, foi uma temeridade muito grande o PT lançar um candidato condenado por corrupção e… preso. Sei que tanto a condenação e a prisão eram injustas, mas não era assim que pensava nem o Poder Judiciário, nem boa parte da população e tampouco a maioria das Forças Armadas. Caso Lula ganhasse as eleições, não seria surpresa nenhuma que houvesse também um golpe militar no Brasil.

As lideranças populares no Brasil e em toda América Latina precisam agir sempre com muita responsabilidade.

O Estado não é algo que pode ser visto como um troféu que se pode conquistar, a qualquer custo, com uma vitória eleitoral. É preciso, sobretudo, construir hegemonia moral.

Numa entrevista ao Canal Livre, em 1980, Leonel Brizola, instigado por jornalistas progressistas a fazer uma autocrítica (se fosse hoje, a internet faria campanha para “cancelar” estes jornalistas), admite que um dos principais erros da esquerda brasileira da década de 60 foi não ter dado mais atenção à confiabilidade da classe média. A classe média, argumenta Brizola, era a correia de transmissão para que as ideias de vanguarda atingissem a massa; sem a conquistar a confiança da classe média, o governo não conseguiria promover as  mudanças necessárias para melhorar a vida da maioria da população.

Daí Brizola diz que, por isso mesmo, elegeria a partir daquele momento dois adversários: o primeiro era o imperialismo, com o qual não queria conversa; o segundo era o radicalismo pequeno-burguês, do qual também havia decidido se afastar. Pouco tempo depois, Brizola venceria as eleições para o governo do estado do Rio de Janeiro.

Além do imperialismo e do radicalismo pequeno-burguês, eu acrescentaria mais dois adversários do campo popular:

  1. o golpismo inerente às elites financeiras, sempre aterrorizadas com a possibilidade de perder seus privilégios;
  2. o caudilhismo político, o qual, além de dificultar a formação de novas lideranças, produz uma polarização emocional e destrutiva – pois o contraponto ao êxtase hipnótico, muitas vezes despolitizado, que o caudilho exerce sobre as massas sob sua influência, acaba se tornando o ódio irracional daqueles segmentos que, por alguma razão, não se sentem representados pelo caudilho.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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