Editorial do Estadão sobre “industrialização”: um ponto de virada no debate?

O editorial do Estadão “O desafio é reindustrializar” significa admissão, por parte de um setor influente da elite brasileira, que a estagnação, ou mesmo decadência, industrial do país se tornou um obstáculo para o crescimento econômico.

Os “desenvolvimentistas” venceram o debate. O Brasil precisa ter política industrial.

Para isso, terá que estudar,  formular, e aprender com erros e acertos do passado.

Eu sugiro que se assista a um vídeo do canal Revolução Industrial, onde o economista Luis Felipe Giesteira explica um dos motivos de fracassos de políticas industriais anteriores. Segundo ele, há um problema de ordem política que precisa ser resolvido: sempre que se reúne um conjunto de políticas industriais, visando produzir mudanças estruturais na base produtiva, ele é inteiramente deturpado ao chegar ao congresso, pela pressão que as indústrias convencionais exercem sobre os parlamentares.

O espírito de inovação vai por água abaixo, e as políticas se convertem em ações compensatórias, como por exemplo redução de impostos ou crédito subsidiado para velhas e pouco inovadoras fábricas de São Paulo, as mesmas de sempre, que tem expertise e lobby para seduzir os deputados.

Pressionado pelo jornalista Fausto Oliveira a apresentar uma solução, Giesteira observa que é essencial a existência de um corpo técnico blindado das pressões políticas, mas que ao mesmo tempo não degenere num estamento burocrático alheio à vida real: é preciso, portanto, um corpo ao mesmo tempo blindado e inserido.

Para Fausto Oliveira, o editorial do Estadão, é um “ponto de virada” no debate sobre política industrial, e conclama a economistas e jornalistas que vem batendo nessa tecla há algum tempo para intensificar seus esforços.

Poderíamos advertir novamente, mesmo sendo repetitivos, que as políticas industriais precisam estar voltadas para a transformação da base produtiva, e não para a continuação do modelo existente, fadado ao fracasso. Isso não significa abandonar nossas indústrias ou desprezar o que temos. Muito pelo contrário. Qualquer política industrial pragmática precisará estar fundamentada nas potencialidades inerentes às nossas vantagens comparativas. O conceito “transformação da base produtiva” não significa jogar nada fora, mas precisa estar blindado contra os lobbies do atraso. Por exemplo, há anos que grandes produtores de soja fazem lobby contra a instalação de sistemas de escoamento de sua produção lastreados em transporte ferroviário, pela simples razão de que eles se tornaram proprietários de empresas de caminhão. É um fator de irracionalidade. O Brasil precisa de uma estrutura de escoamento infinitamente mais moderna, com uso intensivo de ferrovias, sobretudo para as cargas pesadas, como produtos agropecuários e minérios, que constituem boa parte da nossa produção.

Giesteira lamenta que, no Brasil, há poucos exemplos de corpos técnicos naturalmente blindados, que poderiam participar do processo de formulação de novas políticas industriais. Ele menciona que dentro das Forças Armadas haveria este espaço, de blindagem contra influências políticas, mas aí – a observação é minha – é preciso medir os riscos do problema de que esta blindagem seja excessiva, convertendo-se num modelo pouco democrático, conservador, infenso a ideias inovadoras e a preocupações de ordem social ou ambiental, o que também não seria desejável.

No Estadão

O desafio é reindustrializar

Se quiser mesmo consertar a economia brasileira e reencontrar o caminho do firme crescimento, o governo terá de promover a reindustrialização do País

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
05 de fevereiro de 2020 | 03h00

Se quiser mesmo consertar a economia brasileira e reencontrar o caminho do firme crescimento, o governo terá de promover a reindustrialização do País. A produção industrial encolheu 1,1% em 2019, depois de dois anos de expansão. O parque industrial brasileiro ainda é um dos nove ou dez maiores do mundo, mas está enfraquecido, atrasado e sem poder de competição depois de uma longa crise iniciada bem antes da última recessão. Houve um tombo de 18% entre o ponto mais alto da série histórica, atingido no trimestre encerrado em maio de 2011, e os três meses finais do ano passado. Olhando de baixo para cima, tem-se uma noção mais clara do esforço necessário para retornar ao topo. O volume produzido terá de crescer 21,9% sobre a base do último fim de ano para chegar de volta ao pico histórico.

Finda a recessão, o produto industrial cresceu 2,5% em 2017 e 1% em 2018 e voltou a cair no primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro. Só em março será conhecido o primeiro cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) de 2019. As estimativas correntes têm apontado um crescimento entre 1,1% e 1,2%. O número oficial, de toda forma, refletirá o péssimo desempenho da indústria, já refletido na recuperação muito lenta do emprego, marcada pela informalidade e pela expansão de precárias ocupações por conta própria.

O desastre da mineração, sempre lembrado quando se comentam os números da indústria, explica apenas uma pequena parte do novo desastre. Houve queda na produção de bens de capital e bens intermediários e expansão de 1,1% na de bens de consumo. O exame mais detalhado mostra recuos em 16 dos 26 ramos de atividades cobertos pela pesquisa, em 40 dos 79 grupos e em 54,2% dos 805 produtos incluídos no levantamento regular.

Em todos os trimestres de 2019 o desempenho foi pior que o de um ano antes. Esse tipo de resultado ocorreu desde os três meses finais de 2018. Mas o novo governo nada fez, durante a maior parte de seu primeiro ano, para tentar pelo menos conter o declínio da indústria. Os primeiros estímulos só foram aplicados a partir de setembro, embora os números da produção e os dados do emprego fossem muito ruins.

Evitar mais um voo de galinha foi a justificativa repetida por muitos integrantes do Executivo, quando se tentou chamar sua atenção para o problema. Mas essa desculpa deixou de valer quando se tornou indisfarçável a necessidade urgente de algum incentivo. O acesso a recursos do Fundo de Garantia (FGTS), iniciado em setembro, acabou sendo prorrogado em novas condições.

Se as projeções do mercado estiverem certas, a produção industrial crescerá 2,21% em 2020 e 2,50% em cada um dos três anos seguintes. O resultado será um crescimento acumulado de 7,4% em 2020, 2021 e 2022, fim do atual mandato presidencial. No primeiro ano do mandato seguinte a indústria produzirá 2,50% a mais. Faltará quase metade do caminho para o retorno ao pico de 2011, se se tratar apenas de recompor o volume produzido.

Mas o problema é muito mais complicado. Além das perdas de produção, a indústria acumulou em muitos anos – pelo menos desde 2012 – um enorme atraso em termos de tecnologia, de inovação e, portanto, de competitividade. Isso é visível no comércio exterior. Em 2000 as vendas de manufaturados corresponderam a 59% do valor exportado. Em 2009 a proporção estava reduzida a 44%. A partir daí a participação foi sempre inferior a 40%, exceto em 2016, quando esse número foi registrado. Em 2019 a parcela dos manufaturados caiu para 35%, a menor taxa desde o ano 2000.

De vez em quando algum membro do governo fala de produtividade e competitividade, mas sem apresentar mais que vagas intenções e ideias. A expressão política industrial é evitada como blasfêmia. O discurso é geralmente um recitativo com tinturas de liberalismo econômico e nenhuma referência clara a planos, metas e instrumentos. Diante disso, até as modestas projeções de crescimento industrial conhecidas chegam a parecer otimistas.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
Related Post

Privacidade e cookies: Este site utiliza cookies. Ao continuar a usar este site, você concorda com seu uso.