Bolsonaro, o homem sem qualidades, conduz o país ao genocídio

É complicado usar a lógica para comentar o desempenho do presidente Jair Bolsonaro.

Apelo antes à literatura.

Robert Musil explica, numa de suas obra-primas, o Homem sem Qualidades, a diferença entre o senso de realidade e o senso de possiblidade.

Aqueles que guardam o senso de realidade procuram entender as coisas como elas são.

Já os que tem apenas um senso de possibilidade julgam o mundo pelo que poderia ser.

“Essas pessoas com senso de possibilidade vivem, como se diz, numa teia mais sutil, feita de nevoeiro, devaneio e condicionais”.

Bolsonaro seguramente pertence à segunda categoria: é como um peixe que “puxa uma linha pela água e não tem ideia se existe uma isca presa nela”. Não vê a isca, tampouco o anzol, nem a linha.

Bolsonaro não parece ter nenhum senso de realidade.

“Um homem sem senso prático – ele não apenas parece assim, mas é assim – é inconfiável e imprevisível no trato com as pessoas. Cometerá atos que lhe significam outra coisa do que para os demais, mas tudo o deixa tranquilo, desde que possa ser sintetizado numa ideia extraordinária”.

Já se tornou clichê, por exemplo, dizer que Bolsonaro “se superou”, ou que “dobrou a aposta”.

Assim como no cinema, todavia, não nos resta outra saída senão o clichê.

Em sua sessão diária de humilhação à imprensa, que ocorre todas as manhãs em frente ao Alvorada, Bolsonaro “se superou”.

Dobrou a aposta.

O presidente voltou a atacar violentamente as estratégias de isolamento social.

Agora, porém, ele trouxe um argumento novo: a Suécia.

Segundo o presidente, a Suécia “não fechou”.

É muito  interessante que Bolsonaro tenha mencionado a Suécia.

Realmente, um homem sem senso prático fala qualquer coisa.

A Suécia poderia ser um modelo para o Brasil em inúmeras coisas.

É um dos países com maior igualdade social, por exemplo. Quase todo mundo no país vive confortavelmente em apartamentos ou casas espaçosas. Ninguém vive amontoado.

O país tem um dos sistemas de saúde mais avançados do planeta. O regime tributário sueco é positivamente socialista, ou se preferirem, profundamente progressista.

A carga tributária na Suécia é de 50%, na linha de outros países escandinavos (na Noruega, Finlândia, Dinamarca, por exemplo, são ainda um pouco maiores).

Além disso, a Suécia é um país fortemente industrializado e onde o investimento estatal e privado em pesquisa e ciência sempre foi extremamente elevado.

O Brasil poderia usar essas qualidades indiscutíveis da Suécia como modelo para construir suas próprias políticas públicas.

Mas não.

Bolsonaro agora quer usar a Suécia como modelo no combate à Covid-19.

Aqui temos um pequeno problema, todavia.

A Suécia não é um modelo no combate à Covid-19.

Na verdade, a Suécia é um antimodelo.

Segundo o Our World in Data, um dos sites que monitoram o número de mortes por Covid-19 no mundo, a Suécia ocupa o triste lugar de campeão global de mortes diárias por milhão de habitantes!

Bolsonaro, portanto, usa como modelo de combate à Covid-19 o país onde mais se morre gente no mundo vítima do coronavírus!

E como o gráfico abaixo deixa claro, enquanto a curva de mortes tem declinado em todos os outros países que experimentaram graves crises, na Suécia, não há tendência definida de queda.

No dia 14 de maio, numa média dos últimos 7 dias, ocorreram 7,28 mortes por milhão de habitantes na Suécia.

No Brasil, onde há grande subnotificação, morreram 3,15 pessoas por milhão, na média dos últimos 7 dias.

Entretanto, há algumas diferenças muito importantes entre a Suécia e o Brasil.

Algumas, a gente já falou: é um país majestosamente rico, estruturado e desenvolvido, com os melhores hospitais do mundo, o que afasta (mas não elimina!) o risco de um colapso no sistema de saúde.

Outra diferença é que a Suécia tem 10,1 milhões de habitantes, enquanto o Brasil tem 210 milhões.

Se a quantidade de mortes diárias por Covid por milhão de habitantes atingir no Brasil a marca sueca – a qual, lembremos, é a maior do mundo! – isso significará que perderemos 1,52 mil vidas por dia, ou 10,7 mil vidas por semana, ou 43 mil vidas em 1 mês, ou 128,4 mil vidas em cada 3 meses, ou 257 mil vidas em cada 6 meses!

Isso é bem diferente das 800 mortes que, segundo Bolsonaro, seria o total de mortes causadas pelo coronavírus no Brasil…

Bem diferente igualmente do máximo de 3 a 4 mil mortes que, segundo Osmar Terra, voz solitária na comunidade médica a defender as posições bolsonaristas, seria a cifra fatal máxima do Covid no país.

Agora, imagine se o governo chinês partilhasse das ideias de Bolsonaro e também usasse a Suécia como “modelo” no combate ao coronavírus?

A China tem 1,3 bilhão de habitantes. Isso significa que se morressem diariamente, vítimas da Covid-19, tantos chineses por milhão quanto os suecos morrem hoje, então o mundo assistiria, estarrecido, virem a óbito, a cada 30 dias, quase 270 mil chineses!

Até o momento, morreram apenas 4,6 mil mortes por Covid-19. Graças a Deus que a China não tem uma liderança como Bolsonaro!

Há um outro ponto para o qual o terraplanismo sanitário e econômico de Bolsonaro parece não estar atento.

Para cada morte por coronavírus, temos também um percentual muito maior de pessoas doentes, inutilizadas por várias semanas.

A Suécia, e repetimos isso aqui pela terceira vez, tem o melhor sistema público de saúde do mundo, o que inclusive pode explicar a autoconfiança um tanto temerária (e, como vimos, com consequências drásticas em termos de vidas humanas) com a qual o governo sueco decidiu enfrentar a crise do coronavírus.

Não é verdade, de qualquer forma, que a Suécia “não fechou”. O primeiro ministro da Suécia, Stefan Löfven, que é do Partido Operário Social-Democrata, jamais fez como Bolsonaro, abraçando pessoas nas ruas, soltando fake news diariamente contra as medidas de distancialmento social, e fazendo discursos minimizando os riscos da Covid-19. Muito pelo contrário, o governo sueco apenas não decretou lock-down rígido como outros países, porque, sendo um povo muito culto e disciplinado, a administração entendeu que bastava divulgar orientações gerais para que as pessoas adotassem as medidas necessárias de distanciamento social.

E mesmo sem o fechamento obrigatório de comércio, a atividade econômica caiu do mesmo jeito na Suécia como em qualquer outro país, pela simples razão de que as pessoas começaram a praticar – talvez mais gradualmente do que em outros países – medidas de distanciamento e isolamento social.

Um estudo divulgado no dia 12 de maio mostra que o comércio caiu tanto na Suécia como em outros países da Escandinávia que adotaram medidas mais rígidas de distanciamento social.

Ou seja, o que está ferindo a economia do mundo inteiro, senhor presidente, não são as medidas de distanciamento social, e sim o vírus!

O culpado não são prefeitos, governadores, tampouco a comunidade médica, que estão arriscando sua reputação e sua pele, para adotar medidas severas, às vezes antipopopulares, para combater a disseminação de um vírus assassino.

O culpado é o vírus, Bolsonaro!

A Suécia é o terceiro país no mundo com maior número de novos infectados por dia, por milhão de habitantes, e caminha para assumir o primeiro lugar, junto com o Brasil.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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