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Uma resenha sobre um livro de coisas escritas

A coragem é a mais antiga das virtudes políticas e ainda hoje pertence às poucas virtudes cardeais da política, porque só podemos chegar no mundo público comum a todos nós – que, no fundo, é o espaço político, se nos distanciarmos de nossa existência privada e da conexão familiar com a qual nossa vida está […]

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Foto: capa do livro "Projeto Nacional: o dever da esperança", de Ciro Gomes.

A coragem é a mais antiga das virtudes políticas e ainda hoje pertence às poucas virtudes cardeais da política, porque só podemos chegar no mundo público comum a todos nós – que, no fundo, é o espaço político, se nos distanciarmos de nossa existência privada e da conexão familiar com a qual nossa vida está ligada.

Hannah Arendt, O que é política, p. 53.

Tadeu Alencar Arrais[1]
Professor Associado IESA/UFG
Coordenador do Observatorio do Estado Social Brasileiro 
tadeuarraisufg@gmail.com

O verbo resenhar 

Resenha, no interior do Brasil, adquire um significado diferente daquele que encontramos nos bancos acadêmicos. Primeiro, por confundir-se com uma conversa, dispensa os formalismos. Segundo, por dispensar os formalismos, pressupõe algum grau de confiança, intimidade e até mesmo cumplicidade. Uma resenha é, sobretudo, uma boa conversa. Não obedece, como sugere a etiqueta acadêmica, nenhuma linearidade ou modelo passível de avaliação bimestral. É passional e, por vezes, jocosa. Valoriza, provocativamente, as ausências.Também pode ser acusatória, afinal, a boa peleja não é propriedade do universo acadêmico, pouco acostumado com as críticas. Resenha é conversa que nunca acaba. Conversa lembrada, vagarosa, que vai e volta, paciente, por não encomomizar tempo. 

O livro como conversa

Ciro Gomes escreve como conversa. O livro é, nesse sentido, uma tradução inequívoca de suas inúmeras falas. Estranha que essa característica narrativa, com algum componente coloquial e memorialista, para aqueles acostumados com a segurança dos conceitos acadêmicos, possa soar como negativa. A leveza não é sinômino de superficialidade. Uma série de intelectuais, a exemplo de Eduardo Moreira, Paulo Gala e Laura Carvalho, tem se esforçado para decifrar e comunicar os problemas econômicos para as pessoas comuns, interessados em compreender os dilemas econômicos e sociais brasileiros [2]. Escrever, portanto, é uma forma pública de comunicação, não por acaso esses três intelectuais, acompanhados de Ciro Gomes, estejam entre os mais lidos da atualidade. A leveza da linguagem não exime o autor da responsbilidade com as fontes, distribuídas em inúmeras notas de rodapé, especialmente para confirmar dados e indicadores econômicos. As citações, comuns nos mais enfadonhos livros acadêmicos, são substituídas, por assim dizer, por testemunhos e o Político passa a ter mais protagonismo que o Economista e que o Jurista. Projeto Nacional: o dever da esperança é um testemundo, menos ácido do que as inúmeras falas registradas em palestras e entrevistas, sobre a sociedade brasileira contemporânea. É, também, um momento de pausa para recolher as armas e dedicar energias para as batalhas vindouras. 

As raízes superficiais do passado 

Uma bosa conversa pode começar com uma provocação. Em As raízes da crise econômica, segunda parte do livro, encontramos um diagnóstico de um período por demais dilatado da história brasileira. Por quê, de fato, a referência tão positiva  ao período localizado entre 1932 e 1980? A multiplicação do PIB justificaria essa opção? 

Toda síntese é um esforço passível de falhas e sujeita, portanto, ao julgamento. O recorte temporal, como exercício analítico, não pode ser um ato arbitrário. Bresser-Pereira, ao prefaciar o livro de Paulo Gala,  comunga de semelhante raciocínio quanto ao período destacado por Ciro Gomes. Para Paulo Gala, autor de Brasil, uma economia que não aprende, o país, até a década de 1980, obteve significativos ganhos de complexidade produtiva, conceito matriz que justificaria a fissura com o passado desenvolvimentista. É possível, focando a análise em apenas uma variável econômica, admitir a positividade do recorte. Não é possível, quando consideramos outras variáveis, fechar os olhos para um período que tem, como marcadores institucionais, momentos de centralização absoluta do poder estatal, repressão aos movimentos sociais, supressão de direitos políticos e ampliação das desigualdade sociais. 

O Brasil passou de uma população, em 1920, de 30.635.605 habitantes para uma população, em 1980, de 121.150.573 [3]. O incremento populacional, desigual regionalmente, foi acompanhado de intenso processo de urbanização, metropolização e ordenamento do mercado de trabalho que teve impacto direto na qualidade de vida da população. O isolamento da variável econômica não pode servir de álibi. Existem uma série de dados econômicos que também podem ser utilizados para sustentar as críticas.  Dados disponibilizados pelo IPEA, atualizando os valores reais do Salário Mínimo, dão conta que, em dezembro de 1940, o valor atingiu R$ 856,78, em dezembro de 1950, R$ 365,02, em dezembro de 1960, R$1.407,26, em dezembro de 1970, R$ 737,79 e em dezembro de 1980, R$844,61 [4].  Se acreditarmos que o Salário Mínimo reflete o potencial de consumo, reverberando na qualidade de vida, é possível entender que o crescimento do PIB não reverberou, de modo igual, para o conjunto da população brasileira ou, dito de outro modo, o famoso bolo da metáfora de Delfim Neto não foi dividido [5]. 

O quadro de reticências ao período não termina na análise das variáveis econômicas. O quadro político desenhado pelo Estado Novo não é tema de atenção. Getúlio Vargas é, com pouca margem para erros, uma das figuras mais controversas do século XX. O desenho do Estado Nacional Varguista não pode ser traduzido apenas pela ótica dos projetos de integração nacional, pelo conjunto de empresas estatais ou mesmo pela regulação das relacões entre capital e trabalho. É preciso recordar que o Estado Novo [1937-1946] foi um período de centralização política, inaugurando um modelo de repressão institucional, continuada em 1964, e encerrado, simbolicamente, com a anistia, em agosto de 1979 [6].

Desconfio, no entanto, que a negligencia, especialmente em relação ao Estado Novo, não resulte do desconhecimento da história política brasileira. Arriscaria dizer que o silêncio é tributário da cumplicidade com um tipo de trabalhismo e de nacional desenvolvimentismo cujo valor incônico é depositado nas costas de Getúlio Vargas. Ciro Gomes sabe bem disso, bastando lembrar sua referência (Gomes, p.252) à conhecida Carta de Lisboa, apontada como documento de referência de refundação do PDT. Em uma citação do documento, assinado por Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, entre outras figuras de prestígio, encontramos um diagnóstico, diríamos, menos entusiasta com o crescimento econômico do período: 

O regime militar que sucedeu ao governo constitucional, sendo regressivo no plano histórico, se fez repressivo no plano político e, em consequência, totalmente infecundo e despótico. Apesar de contar com todo o poderio do arbítrio, legislando a nível constitucional da forma mais discriminatória, só fez acumular mais riqueza nas mãos dos mais ricos e mais no colo dos mais privilegiados. O bolo que tão reiteradamente prometeram repartir quando crescesse, agora o sabemos, é o de uma dívida externa gigantesca que montava a 3 bilhões de dólares em 1964 e hoje supera os 50 bilhões. [7]

De: http://www.pdtrs.org.br/rs/pdtrs/rs/nossa-historia/67-fundacao/191-carta-de-lisboa-marco-do-trabalhismo-na-redemocratizacao-do-brasil. Acesso em 26/06/2020.

A dificuldade de compatibilizar a dimensão do crescimento econômico, traduzido no PIB, com a desenvolvimento social e a democracia, não parece tolerável. Ciro Gomes, por duas vezes, repete um recado em tom coloquial: “Contra um inimigo que pareceria imbatível, ganhamos todas” (p.48), “Eu tenho esse dever porque minha geração ganhou todas, e ganhou pelo milagre da política (p.258). Se o inimigo foi vencido com a democratização, resta perguntar por que se estaríamos disputando o espólio da batalha?  

Outra parcela dos problemas, herdados, é depositada na conta do Partido dos Trabalhadores. O diagnóstico é preciso:

Mas Lula não reverteu o rentismo (manteve as maiores taxas reais de juros do mundo na maior parte do seu governo) nem o processo de desnacionalização e desindustrialização da economia (embora tenha executado políticas importantes, como a de conteúdo nacional da Petrobras, investimentos em refinarias e a reativação da industrial naval).

Gomes, 2020, p.62.
Figura 1. Evolução da taxa de juros nominal – Over/Selic, períodos selecionados
Fonte: Ipeadata. Dados extraídos em 27/06/2020. http://www.ipeadata.gov.br/exibeserie.aspx?serid=38402 Advertência: essa figura, que não aparece do livro, foi inserida como forma de ilustrar os argumentos alinhavados pelo autor.

Essa crítica, correta, atinge a jugular do Partido dos Trabalhadores. Em O novo rentismo e O populismo cambial Ciro Gomes lembra que o círculo virtuoso foi financiado pelo preço das commodities que permitiu reverter algum excedente para as políticas sociais. O Brasil sai do mapa da fome, dado que particularizará o governo Lula na história, sem, no entanto, romper com o rentismo. Mas é preciso lembrar que, antes de 2003, o controle inflacionário e o aumento no Salário Mínimo, que reverberaram nos benefícios previdenciários e assistenciais, foi componente, em par com o Bolsa Família, decisivo para combater a pobreza. Dito de outro modo, Lula não operou em um espaço histórico e econômico vazio. A economia, igualmente, respondeu positivamente, do ponto de vista da balança comercial, aos preços internacionais do petróleo, dos minérios e dos grãos. 

A principal crítica, para além da instrumentalização do Estado ou mesmo das denúncias de corrupção, debate reservado aos militantes profissionais, localiza-se na acomodação do rentismo, algo de difícil compreensão cotidiana. O rentismo é espoliação pura. A taxa Selic (Sistema Especial de Liquidação e de Custódia), de forma simplificada, pode ser considerada o termómetro da agiotagem institucional, uma vez que remunera o dinheiro que o governo toma emprestado dos bancos. Quando um banqueiro influencia, nominalmente, a decisão sobre a taxa de juros, os estragos são previsíveis. Em janeiro de 2003, a taxa Selic alcançou 26,38%, atingindo 10,56% em dezembro de 2007, 10,82% em janeiro de 2011 e 13,49% em janeiro de 2016. A curva de juros alimentou o rentismo. O rentismo erodiu as contas públicas. A déficit nas contas públicas alimentou a retórica das reformas e, pronto, o consenso sobre o Estado oneroso espalhou-se como fofoca de condomínio para os quatro cantos do país.  

O diagnóstico do período também incomoda aqueles que não acreditam na simbiose entre economia e política. A balança de pagamentos, os saldos positivos, foram financiados pelas commodities. O superávit havia permitido drenar os excedentes para dois campos. O primeiro, como já dito, para o rentismo, em processo, para utilizar expressão coloquial que “dá bilhão”. O segundo campo foi a implementação de uma politica redistributiva, barata e com forte impacto contra a fome. A aposta em atividades de baixa complexidade do setor agroexportador  negligenciou, por assim dizer, o setor industrial, justamente aquele cujo emprego tem melhores remunerações.  O retrato que se seguiu ao Governo Dilma é conhecido, mas vale a citação pela síntese:

Para aumentar a produtividade industrial, depois de uma alta nos seis primeiros meses, começou a baixar a taxa básica de juros até a Selic alcançar 7,25%. Paralelamente, para incentivar o consumo, pressionou o setor bancário a diminuir o spread com créditos mais baratos oferecidos aos bancos públicos. Obrigou as prestadoras de energia a baixarem suas tarifas e tentou, via renúncia fiscal, desonerar oficialmente a indústria.

Gomes, 2020, p.65.

O desastre, no entanto, já estava dado, seja pela ponta da arrecadação, com rombos mensais nas contas públicas, seja na economia, cujas medidas desesperadas geraram pouco impacto no consumo, na produção industrial e na geração de emprego, seja na política, cujo punhal, na mão de ex-aliados, selou o destino do Partido dos Trabalhadores. É importante ressaltar que Ciro Gomes não cede aos impulsos difamatórios. É justo recordar um trecho sobre a ex-presidente Dilma Rousseff:

Uma associação de gângsteres no Congresso, determinados a deter a Lava Jato e a recuperar os espaços para roubar, decidiu não mais deixar Dilma governar a partir de 2015.

Gomes, 2020, p.66.

O relato não é ingênuo. Ciro Gomes reconhece que forças internacionais também estavam em atuação, o que referendou, por parte da Lava Jato, a destruição das cadeias produtivas e, por parte do governo, um conjunto de reformas estruturais. A história a partir daí é lembrança de ontem. 

A vulgata do Estado ineficiente

O Estado importa. Assim poderíamos definir, em um artigo e duas palavras, a segunda parte do livro Projeto Naiconal: o dever da esperança. O discurso recorrente de que o Estado é, por natureza, corrupo, infeficiente, cai por terra diante dos argumentos que deixariam Rodrigo Constantino com caimbras abdominais. O discurso que deposita na corrupção a culpa pelos problemas da sociedade brasileira é colocado em segundo, terceiro plano. A corrupção e não o rentismo, um dos fatores da erosão da industria nacional, seria a culpada pelos problemas nacionais, o que desviaria a solução da política para a polícia, em caso exemplar da Lava Jato, cuja ação comprometeu, como descrito por Ciro Gomes, a cadeia produtiva do petróleo, da industria naval e da engenharia civil. O embate entre desenvolvimentismo e neoliberalismo, conceito mais explorado no livro, é emblemático.

Figura 2. Tripé da vulgata neoliberal. Advertência: essa figura, que não aparece do livro, foi inserida como forma de ilustrar os argumentos alinhavados pelo autor.  

Ciro Gomes empiriciza o neoliberalismo. O recado é inequívoco. O conjunto de reformas, representado pela Reforma Trabalhista e pela Reforma da Previência, não permite pensar um projeto de nação. Retoma o debate acadêmico da década de 1990, esquecido, intencionalmente nos anos 2000, para demonstrar que as condições de produção e trabalho não são globais. Esse dado, da escala internacional e da política internacional, é fundamental para compreender o papel reservado para o Brasil na divisão internacional do trabalho.

Investindo contra a vulgata que advoga que temos MUITO ESTADO, Ciro Gomes reclama exemplos internacionais, comparando, desde os recursos destinados aos serviços públicos, a proporção de gastos com os salários de servidores e a carga tributária.

Os EUA, frequentemente citado como modelo pelos defensores da diminuição do Estado, têm 15,3% dos empregados no governo, equanto os países escandinavos como a Dinamarca e a Noruega, nossas referencias em serviços públicos, têm 35% de servidores. Na prática, esqueça as estatísticas e pense você se o Brasil tem mais ou menos polícia do que precisa? O Brasil tem mais ou menos professores do que precisa? O Brasil tem mais ou menos médicos do que precisa?

Gomes, 2020, p.110

Mas que Estado, enquanto desejo, encontramos em Projeto Nacional: o dever da esperança? Nas palavras do autor:

Um Estado de bem-estar que garanta saúde e educação públicas de qualidade para seu povo, que tenha capacidade de planejamento e e investimento na economia, que garanta uma distribuicao mais justa da riqueza e uma sociedade civil mais rica, com uma economia baseada na livre iniciativa.

Gomes, 2020. p.108.

Esse Estado de bem-estar, considerando as experiências Ocidentais, é uma construção política, sempre, incompleta,  que revela, diariamente, uma preocupação com as demandas dos grupos mais vulneráveis. A gramática desse Estado é a própria gramática da democracia, motivo pelo qual nunca estará completo e, quase sempre, viverá ameaçado, motivo pelo qual é necessário pensar um projeto de nação que não negligencie, porque não ingênuo, as condições políticas e econômicas do presente. 

Um projeto para o presente 

A linguagem acadêmica se manifesta, de certo modo, com a preocupação em conceituar projeto, nação e desenvolvimento. A preocupação não é fortuita. Esses conceitos carregam sentidos políticos variados. Mas o que particulariza que Brasil que autoriza o autor a acreditar em um projeto de nação renovado com foco no desenvolvimento econômico e social?

Figura 3. Condições para o êxito civilizatório. Advertência. A figura, não presente no livro, expressa, pontualmente, o tripé exposto pelo autor. 

A identificação das condições para o êxito do projeto de nação, sintetizadas na figura 2, resultam, primeiro, da intimidade com a geografia do Brasil e, segundo, com o conhecimento do desenvolvimento na escala internacional, afinal, muitas nações trilharam caminhos mais exitosos. Não seria necessário, nesse caso, inventar a roda. 

Figura 4. Condições para o êxito civilizatório. Advertência. A figura, que não consta no livro, expressa, pontualmente, o tripé exposto pelo autor. 

Os eixos do projeto nacional, expostos no livro, estão em perfeita consonância com o diagnóstico e, principalmente, com os instrumentos de execução. É isso que tem incomodado uma parcela dos interlocutores de Ciro Gomes. Para o conjunto de cada proposta existe uma descrição, com o grau de detalhamento possível para um livro, das mudanças operacionais necessários para efetivar as ações. 

Os cinco eixos aparecem articulados. O gasto público é visto como investimento, sem cair na armailha do Estado Mínimo. Percebemos, por exemplo, como perdemos com a Reforma da Previdência. O sistema proposto, diferente do atual, valoriza a regionalidade do mercado de trabalho e as diferenciações funcionais, propondo um regime complementar de capitalização que não abre mão da contribuição patronal. 

O mais interessante, no entanto, refere-se a reforma tributária. Ciro Gomes demonstra íntimo conhecimento do tema, colocando por terra a ideia, por assim dizer, de que a carga tributária brasileira é socializada. Os impostos sobre o consumo e o serviços pesam mais na base da piramide e as compações internacionais são vergonhosas. As propostas, indigestas para o 1% da população mais abastada, mudam a estrutura de tributação para a renda e para o patrimônio. Um exemplo é a proposta de junção do ITR (Imposto Territorial Rural) com o IPTU (Imposto Sobre Propriedade Territorial Urbana). Quanto ao Imposto sobre Grandes Fortunas, previsto da Constituição de 1988, a proposta é a seguinte:

A alíquota tem que ser moderada o suficiente para dissuadir fuga de capitais. Proponho que seja progressiva entre 0,5% e 1% para os patrimonio superiores a R$10 milhões.

Gomes, 2020, p.145

A discussão da reforma tributária é importante para evitar a bravata advogada pelos defensores do impostrômetro. Os impostos, em um sistema progressivo, funcionam como um guarda-chuva do financiamento das políticas de desenvolvimento. Não é por acaso que os chamados complexos industriais (petróleo, gás, bionergia, agronegócio, saúde e defesa) tenham centralidade no projeto de desenvolvimento. Primeiro, porque o investimento nesses setores tem significativo impacto na geração de empregos de qualidade. Segundo, porque são importantes para a balança de pagamentos. Terceiro, porque são de interesse estratégico para o Estado nacional. A ironia do destino demonstrou, com clareza, como o desmantelamento do Complexo Industrial da Saúde criou as condições ideais para o “sucesso” da pandemia no Brasil. A citação é profética:

Todo ano a União importa desde produtos de tecnologia rudimentar, como camas de hospital, próteses, muletas, cadeiras de rodas, até produtos sofisticados, como aparelhos de ressonância magnéticas e tomografia computadorizada.

Gomes, 2020, p.150

Todos sabem o preço que estamos pagando por não investir no complexo da saúde. Máscaras da China. Filas para comprar álcool em gel. Insumos fundamentais para a saúde são importados, gerando emprego e renda em países como a China, Alemanha e Estados Unidos. É por isso que o financiamento do setor industrial esta intimamente relacionado com o investimento em ciência e tecnologia. Simbiose é a palavra que define o investimento público.

Mas, como diz o conhecimento popular, o diabo esconde-se nos detalhes. Existe um obstáculo a ser transposto que é condição para a realização do projeto de desenvolvimento proposto. Trata-se do limite de gastos representado pela PEC-95, denominado Novo Regime Fiscal, que vigorará por vinte exercícios financeiros: 

O Brasil estará impedido de crescer além de taxas vegetativas enquanto vigorar essa reforma inconstitucional que, na prática, revoga a Constituição de 1988. A obrigação primeira de todo brasileiro que tem compromisso com a súade da população, o futuro de nossas crianças e o crescimento do país é revoga-la.

Gomes, 2020, p.174

Não deixa de ser irônico o fato de que os comentaristas econômicos da mídia hegemônica tenham, nos últimos meses, argumentado, diante da histórica crise de saúde pública, que é possível admitir certo grau de endividamento. As coisas faladas foram, momentaneamente, esquecidas – o livro deveria ter sido dedicado aos jornalistas Carlos Sardenberg e Miriam Leitão.

Um livro de coisas escritas 

“Os livros hoje em dia, como regra, é um montão, um amontoado… Muita coisa escrita, tem que suavizar aquilo” [8]. Poderíamos localizar essas frases no conjunto de banalidades ditas pelo Presidente Jair Bolsonaro. O que deveria despertar asco para a sociedade brasileira, em um momento de negação absoluta da razão, é motivo de orgulho para segmentos que apostam no obscurantismo e na violência como linguagem da democracia. Mas por que, ao final de uma resenha sobre um livro de coisas escritas, evocar a fala de um Presidente conhecido por seu pouco apreço aos livros?

Não lembro de um momento na história do Brasil que tenhamos abandonado a ambição, a gramática, a retórica, a esperança, em um projeto nacional. Getúlio Vargas imprimou um projeto nacional cuja ambição passava por formar a nacionalidade brasileira. Mirou para Oeste. Brasília, síntese do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, prometeu, a partir do Planalto Central, rasgado por estradas de rodagem, modernizar o país. O desenvolvimento assumiu a gramática da modernização. Nem mesmo os militares ousaram, com suas práticas autoritárias,  eliminar de seu horizonte um projeto de desenvolvimento, bastando para isso folhear os retóricos Planos Nacionais de Desenvolvimento. A democratização, firmada no discurso de Ulysses Guimarães, prometeu um futuro diferente, garantindo direitos e universalizando os serviços públicos. Fernando Henrique Cardoso imaginou o desenvolvimento, mesmo que subordinado, a partir da integração internacional e de um conjunto de medidas para redução do Estado. O discurso de Luís Inácio Lula da Silva, no ato de posse, revelou o desejo de perseguir o desenvolvimento com inclusão social. A gramática do projeto de nação, até então, não tinha sido abandonada. O discurso de posse de Jair Bolsonaro derrota essa, mesmo que retórica, tradição. 

O sentimento é que ficamos órfãos de um projeto de nação. Nos transformamos em uma nação covarde, sem inteligência para interpretar o presente e sem coragem para lutar pelo futuro. A res-pública, coisa pública, sucumbiu diante dos mais mesquinhos desejos privados.  Mas a coragem, virtude política, cautelosa, acanhada, começa a aparecer novamente. Sumida das ruas, em razão das circunstâncias, encontra voz nas redes sociais. Aparece, também, em manifestos de coisas escritas que pululam no espaço virtual. Aparece, de forma sistematizada, em Projeto Nacional: o dever da esperança. Escrever um livro, sistematizar ideias, além de um convite para o debate, nos dias atuais, transformou-se em um ato de coragem. Digam o que quiserem, mas coragem não falta ao autor desse livro. 

Notas de rodapé
[1] Uma parte do debate político da esquerda e do autodenominado campo progressista tem se limitado ao trivial embate entre aqueles que acham que o PT, em função das pesquisas eleitorais, deveria ter apoiado Ciro Gomes e aqueles que acusam o candidato do PDT de evadir-se para Paris. Essa discussão, pela futilidade que encerra, camufla o fato de que parte da esquerda, tanto quando do autodenominado campo progressista, não precisariam discutir um projeto de nação, perspectiva pouco pedagógica e demasiadamente adesista. Foi esse projeto, e não a expectativa de vitória, que me levou a votar, apesar dos ruídos carinhosos de colegas, em Ciro Gomes.
[2] A economia do desejo, de Eduardo Moreira, Valsa Brasileira, de Laura Carvalho, Brasil, uma economia que não aprende, de Paulo Gala e André Roncaglia, são exemplos de recentes livros que debatem questões fundamentais, em linguagem leve, sobre o desenvolvimento brasileiro.
[3] In.: https://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=10&op=0&vcodigo=CD90&t=populacao-presente-residente. Acesso em 28/06/2020.
[4] In.: Paulo Singer, em Repartição de Renda, pobres e ricos no governo militar, livro publicado em 1985, analisa a queda absoluta e relativa do Salário Mínimo no período em questão.
[5] Maria Conceição Tavares, em O grande salto para o caos, assim caracteriza o chamado “milagre econômico”: “A arquitetura impressionista do “milagre econômico assemelhava-se a um castelo de cartas precariamente apoiado no sistema de crédito. No externo, pela abertura financeira da economia. No interno, fundamentada no instituto da correção monetária de ativos financeiros. Estava balizado, como visto, pelo sistema de incentivos e subsídios generalizados, bem como pelo sistema tributário regressivo, tudo favorecendo a acumulação. Com os salários contidos através de uma forma de reajustes que subestimava descaradamente a inflação futura, a pressão de custos sobre os preços se limitava ao comportamento dos preços dos insumos importados e da taxa de juros. ” (1985, p.33)
[6] Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6683.htm
[7] In.:http://www.pdtrs.org.br/rs/pdtrs/rs/nossa-historia/67-fundacao/191-carta-de-lisboa-marco-do-trabalhismo-na-redemocratizacao-do-brasil. Acesso em 26/06/2020.
[8] In.:https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/01/03/bolsonaro-diz-que-livros-didaticos-tem-muita-coisa-escrita.htm. Acesso em 28/06/2020.
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Comentários

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Francisco

30/06/2020 - 16h22

Iniciando o artigo:
“A coragem é a mais antiga das virtudes políticas e ainda hoje pertence às poucas virtudes cardeais da política, porque só podemos chegar no mundo público comum a todos nós – que, no fundo, é o espaço político, se nos distanciarmos de nossa existência privada e da conexão familiar com a qual nossa vida está ligada.” (Hannah Arendt, O que é política, p. 53.)

Finalizando o artigo:
“Escrever um livro, sistematizar ideias, além de um convite para o debate, nos dias atuais, transformou-se em um ato de coragem. Digam o que quiserem, mas coragem não falta ao autor desse livro.” (Redação)

Mais não falta, além de considerar ‘falta de controle’, ao desnecessário comentar.

Kleiton

30/06/2020 - 08h23

Cirolipa o Mágico…kkkkkk

Paulo

29/06/2020 - 19h46

Eu não sei por que Ciro (re)propõe a Capitalização. A Previdência tem que ser pública e universal. Mas, claro, é um detalhe, pelo texto todo. De resto, sim, temos que retomar o projeto nacional de desenvolvimento. E este só se pode elaborar e implementar sob a batuta do Estado…Outro ponto: não subestimem o papel da corrupção no fracasso do país, nos últimos anos…

    Gustavo

    30/06/2020 - 12h20

    Paul, capitalização não necessariamente significa previdência privada, vide por exemplo a Funpresp, que é o fundo de previdência complementar dos servidores públicos federais. O que Ciro propõe, grosso modo, é criar uma Funpresp universal.

      Paulo

      30/06/2020 - 22h12

      Entendo, Gustavo! Ciro até propôs a Capitalização com a carteira de segurados sob administração do Banco do Brasil, salvo engano, o que, sem dúvida, mitigaria os riscos. Mas é que eu acho que a Previdência Social (e Assistência Social e Saúde) deve estar em mãos do Estado, permanentemente. Esses Fundos de Pensão, por mais sérios que se vendam, e por híbridos de público e privado que sejam, e até por isso, estão sempre sujeitos a desvios de gestão. Não que a Previdência, Assistência Social e Saúde não estejam sujeitas à má-gestão e corrupção. Estão, mas é que são mais escrutinadas pelos Órgãos de controle, pois, se faltar dinheiro, a culpa será sempre do governante de plantão ou de vários que o antecederam, o que reforça os mecanismos de controle políticos…

Netho

29/06/2020 - 18h16

Ciro não é neófito e já viveu suficientemente no serpentário político. Portanto, já de longa data, em sua longeva parceria com Mangabeira, usualmente procura balizar o debate político demarcando o campo programático. Até agora não funcionou, o que não quer dizer que não funcionará, mas pelo menos não se poderá dizer que não apresentou uma agenda explícita para o debate. Observa-se que saiu da lenga-lenga do imposto de transmissão e sobre heranças para admitir expressamente regulamentar o Imposto sobre Grandes Fortunas há 32 anos esperando regulamentação. Faz tarde, mas faz bem. Sabe que a tributação do latifúndio rural é ridícula e que um hectare de terra improdutiva recolhe menos imposto territorial rural do que o IPTU por metro quadrado de área útil. Não ignora que de nada adianta uma baixa taxa de juro incide sobre uma base elevada e concentrada na rolagem inferior a 4 anos. Falta a Ciro apenas reler, acuradamente, a obra seminal de Celso Furtado, sobretudo no que diz respeito aos ‘centros de decisão’, ao ‘mercado interno’, ao Banco Central e ao papel do Ministério do Planejamento, sem falar, obviamente, na “Questão Nordeste” à qual, atualmente, há se ser tratada em linha com a “Questão Norte” consoante os novos protocolos ecológicos-ambientais de Kioto.


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