Tristeza, pé no chão, faca amolada (uma resenha do novo livro de Ciro Gomes)

Vamos publicar uma resenha do livro de Ciro em várias partes. Isso facilitará tanto a leitura dos internautas quanto o nosso trabalho.

O objetivo dos textos não é apenas, contudo, fazer uma resenha tradicional, mas provocar uma discussão sobre os temas trazidos pelo livro.

Tristeza, pé no chão, faca amolada

Parte 1: o prefácio de Mangabeira

No início de 2018, quando se podia vislumbrar nuvens estranhas se formando no horizonte, uma canção de Clara Nunes soava a meus ouvidos como a mais adequada ao estado de espírito com o qual – eu pensava – deveríamos enfrentar a tempestade. Eu passei algumas noites ouvindo essa canção repetida e obsessivamente.

“Tristeza e pé no chão” é uma dessas joias que, seguindo a tradição de Noel Rosa e outros gênios, conseguem introduzir um elemento irônico em músicas de grande apelo popular. Em todas as interpretações que assisti, Clara Nunes canta essa canção com seu magnífico sorriso, não como se ela não estivesse falando a sério sobre tristeza, mas antes como alguém que, através da arte, pudesse superá-la!

O novo livro de Ciro Gomes, “Projeto Nacional: o dever da esperança”, me faz lembrar daquela música e, em especial, daquele estado de espírito que ainda acredito ser o mais apropriado para enfrentarmos os tempos difíceis de hoje.

Vivemos momentos tão tristes no país! A desigualdade vem crescendo dramaticamente desde o segundo mandato da presidenta Dilma, quando as agitações golpistas se aproveitaram da inabilidade, covardia e falta de projeto do governo para se transformarem num movimento de massa.

No entanto, precisamos encontrar na imaginação, aqui entendida não como delírio, mas como a construção teórica de nosso futuro, as energias necessárias para reproduzirmos, como postura diante dos desafios à nossa frente, o poderoso e otimista sorriso de Clara Nunes!

É disso que se trata, a meu ver, o livro de Ciro Gomes. Um apelo à imaginação, à força das ideias, uma oração racional a essa corrente progressista irresistível que, através dos tempos, arrosta todos os obstáculos para levar a humanidade a um patamar superior de civilização.

O prefácio, assinado pelo filósofo Mangabeira Unger, que alguns chamam de “guru” de Ciro Gomes, mas que é antes, como ele mesmo se qualifica, “aliado, interlocutor e amigo, beneficiário de décadas de discussão e parceiro em lutas que já se prolongam por boa parte de nossas vidas”, traz alguns spoilers sobre esse convite de Ciro a uma postura mais aberta e mais criativa.

Aliás, e isso é um pouco engraçado, Mangabeira vai um tanto além da missão tradicional de um prefaciador, e fala de ideias de Ciro que, na verdade, não estão no livro, embora pudessem perfeitamente estar. Ou então são ideias partilhadas entre irmãos espirituais, como parecem ser Ciro e Mangabeira, presentes na cabeça tanto de um como de outro, mesmo que, eventualmente, ainda não tenham sido formuladas racionalmente por um deles.

Isso se dá porque Mangabeira não escreveu propriamente um prefácio sobre o livro de Ciro, mas antes usou o livro como pretexto para falar de suas proprias ideias. E eu não critico isso, muito pelo contrário, na medida em que o prefácio de Mangabeira é uma das partes mais saborosas de toda a obra!

Vejam esse trecho:

“É comum, mesmo entre os líderes políticos mais talentosos, imaginar que, uma vez no poder, só precisam se preocupar em construir alianças e superar interesses contrariados. Supõem ser claro o caminho. As ideias necessárias para defini-lo em pormenor aparecerão na hora, quando forem necessárias, providenciadas por técnicos prestativos e intelectuais obsequiosos. Os esquerdistas, em particular, costumam fingir esconder, por razões táticas, um plano que não tem”.

Essa é a crítica mais substancial que tanto Mangabeira como Ciro Gomes farão ao esquerdismo tradicional brasileiro, em especial aquele que teve a oportunidade de governar o país por quase quatro mandatos presidenciais: a ilusão – de consequências trágicas – de que é possível governar por improviso.

Outra crítica de Mangabeira, embora ele a atribua a Ciro, à esquerda tradicional brasileira (que é a mesma que Ciro costuma chamar, em tom deliberadamente ofensivo, de “lulopetismo”) é a seguinte:

“Ciro Gomes propõe um projeto nacional de desenvolvimento que aborda os brasileiros como agentes a empoderar em vez de abordá-los, do modo costumeiro da política brasileira, como beneficiários a cooptar”.

Em seguida, Mangabeira diz que Ciro Gomes irá contrastar sua proposta “com os dois ideários que predominaram nos governos”, desde a redemocratização: o primeiro é o fiscalismo financista, ao qual poderíamos também chamar (a expressão é minha) de neoliberalismo conservador, que caracterizou a primeira fase do período, de Collor a FHC, e que ressurgiu com Michel Temer e Jair Bolsonaro; o segundo é o “nacional-consumismo” dos governos petistas, que poderíamos chamar de neoliberalismo progressista, caracterizado pela “regressão a um primarismo produtivo”.

A crítica de Mangabeira ao petismo é pesada: “organizou um sistema geral de cooptação – dos pobres pelas transferências sociais, das corporações pelos direitos adquiridos, dos graúdos pelos favores tributários e pelo crédito subsidiado, e dos rentistas pelos juros desnecessários e irresponsáveis”.

Mangabeira diz que Ciro é um adepto do realismo fiscal, que seria, em suas palavras, “indispensável”. Mas o conservadorismo enxergaria esse realismo fiscal às avessas, porque o correto seria usá-lo como um instrumento de rebeldia: os países devem ter contas sólidas não para ganhar a confiança financeira das grandes potências e dos mercados, mas justamente “pela razão oposta: para que o Brasil e seu governo não dependam da confiança financeira e possam ousar na construção de estratégia insubmissa de desenvolvimento”.

Podemos fechar essa primeira parte da resenha citando uma outra música popular, desta vez de Milton Nascimento, “Fé cega, faca amolada”, mas fazendo a ressalva que a proposta de Mangabeira/Ciro é eliminar a primeira parte do verso e manter a segunda. O Brasil precisa saber direitinho para “onde vai a estrada”, e ter fé sim, mas jamais uma fé cega; para dar um bom uso à “faca amolada”, ou seja, para transformar as virtudes da audácia, da coragem e da criatividade em instrumentos eficazes de emancipação do povo, é preciso saber, com o máximo de detalhes, para onde se vai, como se vai, e manter o olho bem aberto!

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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