A disputa pela hegemonia na esquerda: primeira análise pós-segundo turno

Finalmente, pudemos ouvir a voz rouca das urnas.

Agora todas as especulações abstratas, pesquisas, análises de conjuntura, narrativas, precisam ser varridas para debaixo do tapete, porque não valem mais nada. Tornaram-se como que títulos podres, sem lastro, perante a moeda fundamental do regime democrático: o voto.

Entretanto, mesmo diante de um conjunto tão sólido de dados, vemos que, ainda assim, há uma disputa de narrativa para identificar quem ganhou e quem perdeu, sobretudo porque se pode observar os números sob ângulos diferentes.

Pode-se olhar para os números, a partir dos números de prefeituras e vagas de vereador conquistadas, pela votação dos diferentes partidos, independente das vitórias obtidas, nas eleições proporcionais ou majoritárias – e para a magnitude das populações a serem administradas. Deve-se levar em conta ainda o tamanho relativo dos partidos em cada grande cidade, estado ou região. Podemos também avaliar o desempenho dos partidos segundo o tamanho das cidades: com menos de 50 mil habitantes, entre 50 e 150 mil, entre 150 mil e 500 mil, e mais de 500 mil habitantes. Há, por fim, uma “taxa de sucesso” de cada partido, que deve ser considerada: qual o percentual de eleitos no total de candidatos?

Evitemos olhar a realidade a partir de apenas um desses ângulos, e vamos considerá-los a todos, para depois tirarmos nossa conclusão com base naquilo que é ao mesmo tempo a ferramenta e o método mais poderosos da inteligência humana: o bom senso.

Vamos olhar a evolução da quantidade de prefeitos eleitos por partido. Neste tipo de avaliação, os pontos que merecem destaque são:

  • Declínio do PSDB: o que é um declínio apenas relativo, visto que conservou São Paulo, e se mantém como um partido bem maior do que qualquer outro de direita ou de esquerda; está abaixo apenas das legendas de “centro”, como MDB, PP e PSD.
  • Recuperação do DEM, depois de passar por inúmeras crises, que o levaram a mudanças de nome, o partido hoje mostra bastante vigor: experimentou um forte aumento no número de prefeituras, incluindo aí capitais estratégicas, como Rio, Salvador, Curitiba e Florianópolis.
  • Tombo do PT: o partido que chegou a ter 630 prefeituras em 2012, incluindo a de São Paulo, que ganhou 4 eleições presidenciais sucessivamente, sai dessas eleições municipais governando apenas 183 cidades, entre as quais, nenhuma capital.
  • O PDT obteve um bom desempenho relativo: se em 2016, havia se tornando o segundo maior partido da esquerda em número de prefeituras, hoje é o primeiro. Mas não porque cresceu, e sim porque o PSB caiu muito, perdendo a posição de primeiro do ranking, e o PT caiu ainda mais.  Se considerarmos que o PDT obteve a vice-prefeitura em inúmeras cidades importantes, como Salvador, Recife e Maceió, sua performance ganha mais pontos.
  • Apesar da queda, o PSB não teve um desempenho tão ruim. O partido havia inchado  entre 2012 e 2016 com muitos membros estranhos a seu programa. Com seu movimento de “volta às origens” a partir de 2017 e 2018, muitos prefeitos migraram de volta para legendas conservadoras. Além disso, o partido obteve uma vitória muito emblemática em Recife, que é a sede histórica do partido, ganhou em Maceió (deslocando o poder da família Calheiros), e obteve um respeitável terceiro lugar em São Paulo.
  • O PCdoB sofreu um recuo expressivo, saindo de 80 para 46 prefeituras. O auge do partido foi em 2016, ainda na esteira da vitória de Flavio Dino em 2014, no Maranhão. O PCdoB chegou a ter 46 prefeituras apenas no Maranhão, a partir de 2016; nas eleições deste ano, o partido ganhou apenas 22 prefeituras. O PDT, por sua vez, que tinha 30 prefeituras no estado, agora tem 41, habilitando-se para pleitear o governo do estado em 2022, num projeto liderado pelo senador Weverton Rocha.
  • O PSOL experimentou um forte aumento no número de prefeitos, mas ainda é uma legenda nanica, neste quesito, com apenas 5 administrações. No entanto, ganhou uma capital importante, Belém, e chegou ao segundo turno de São Paulo, com Guilherme Boulos, e isso já é mais do que o PT conseguiu.

Outro ponto que merece atenção é a taxa de sucesso dos candidatos eleitos, porque ela nos ajuda a medir o grau de aceitação ou rejeição de cada partido.

No campo progressista, as maiores taxas de sucesso foram obtidas por PDT e PSB, que elegeram 35% e 30%, respectivamente, de seus candidatos a prefeito.

PCdoB, PT e PSOL tiveram taxas de sucesso de 18%, 15% e 1%, respectivamente.

O desempenho no segundo turno também nos permite avaliar taxas de sucesso. No campo progressista, o melhor índice foi do PDT, que elegeu três de seus quatro candidatos, registrando uma taxa de sucesso de 75%. E ainda tem chance de levar Campos de Goytacazes, caso o TSE referende decisões da justiça eleitoral fluminense, que cassou a chapa de Wladimir Garotinho. O PSB disputou oito eleições no segundo turno, e ganhou duas, taxa de sucesso de 25%. O PT, que conseguiu levar quinze candidatos ao segundo turno, ao cabo ganhou quatro cidades, obtendo uma taxa de sucesso de 27%.

Outro número importante para se entender o tamanho real de cada partido, em se tratando de prefeituras, é contabilizar a população que será governada por cada um, a partir das eleições deste ano. Estes números mudam um pouco o ranking visto numa das tabelas acima. O PSDB, por exemplo, que estava em quinto lugar, no número de prefeituras, salta para o primeiro lugar, no ranking de população administrada. Os partidos progressistas, como PDT, PSB e PT sobem uma posição.

O cientista político Jairo Nicolau olhou para as eleições municipais a partir de um ângulo interessante: as votações dos partidos em quatro tipos de cidades: pequenas, médias, médias-grandes, e grandes.

Ele fez comparações entre alguns partidos emblemáticos. Nessa comparação, podemos identificar algumas tendências que passam despercebidas quando se olha para os números totais de prefeitos ou vagas de vereadores.

Esses números são importantes também porque sinalizam tendências maiores da opinião pública, para além da montagem de “máquinas partidárias”.

Vamos examinar dois gráficos, referentes aos partidos do chamado campo progressista.

No primeiro, vemos as votações de PT e PDT nos quatro grupos de cidades. Nos dois primeiros grupos, cidades pequenas e cidades médias, o PDT segue à frente do PT. No grupo de cidades médias-grandes (150 a 500 mil habitantes), os partidos seguem empatados, e nas cidades grandes (mais de 500 mil habitantes), o PT experimentou uma recuperação, ao passo que o PDT registrou o seu pior desempenho desde 2004. Aliás, o desempenho do PDT, de maneira geral, em termos de votação para campanhas proporcionais de vereador, foi um dos piores de sua história recente.

Vamos aos palpites sobre as causas:

  • A melhora do desempenho da votação do PT nas grandes cidades  se dá, em grande parte, pelo mérito e qualificação de seus candidatos. É inegável que o PT sofre um desgaste de sua imagem política, em virtude da midiatização dos escândalos de corrupção, que atingem muito mais em cheio um partido “moral” como o PT,  do que qualquer outro. Mas também está fora de questão que o partido ainda possui quadros de grande excelência intelectual e moral,  tanto da velha guarda, como recém-chegados, que fazem a diferença numa eleição proporcional, onde o que está em jogo é menos a credibilidade do partido e mais a qualidade do candidato.
  • O mau desempenho do PDT, em termos de votação para vereador, nas grandes cidades, pode ser resultado, por sua vez, da intensificação da campanha de “excomunhão ideológica” contra o partido desde que Ciro Gomes, o candidato do PDT à presidência da república, se recusou a entrar na campanha de Haddad no segundo turno. Essa campanha parece ter prosperado em algumas cidades importantes, sobretudo onde o PT ainda mostrou força nas eleições proporcionais, como São Paulo e Rio de Janeiro, e na majoritária, como Recife. Nessas circunstâncias, o PT conseguiu bloquear os esforços trabalhistas de promover seus candidatos junto à classe média de esquerda.
  • O PDT não apenas foi incapaz de reagir a essa campanha, como parece ter lhe ajudado, indiretamente, ao abraçar, em São Paulo e Recife, candidaturas do PSB que eram rejeitadas junto à classe média progressista. França, Martha Rocha (esta do próprio PDT) e João Campos tiveram votos de periferia e conservadores, mas não empolgaram o imaginário da “esquerda”;  ao contrário, foram vistos como ameaças ou obstáculos ao avanço das candidaturas “genuinamente” de esquerda, e por isso foram alvo de agressivas campanhas de descontrução política e ideológica, que contaminaram e prejudicaram as candidaturas do PDT nessas cidades. Como essas candidaturas ideológicas transitam num espaço comum, em virtude das redes sociais e da internet, o que aconteceu nessas três capitais, puxou para baixo a votação do PDT em todas as grandes cidades.
  • Além disso, as candidaturas ideológicas do PDT se mostram ainda, em sua maioria, muito verdes: foram muitos nomes jovens disputando eleição pela primeira vez, num ambiente inóspito, expulsos dos clubinhos da direita, do centro e da esquerda.
  • O PT, por sua vez, conseguiu uma proeza: através de uma operação de proximidade cada vez maior com o PSOL e suas pautas identitárias, conseguiu “limpar” um pouco o seu nome junto ao eleitorado de classe média. Isso também lhe ajudou a obter bons resultados em algumas capitais estratégicas.
  • Além disso, o PT teve um puxador de votos extraordinário, Eduardo Suplicy, que teve um papel fundamental nesse gráfico: com 167,55 mil votos, o vereador obteve sozinho três vezes mais votos que todos os candidatos do PDT na cidade de São Paulo, somados. Essa montanha de votos arrastou o ponteiro do gráfico para cima.
  • O outro gráfico, com o desempenho de PSB, PCdoB e PSOL mostra que o PSB experimentou um movimento parecido ao do PDT, obtendo inclusive os mesmos 4% dos votos para vereador nas cidades médias-grandes e grandes registrados pelos trabalhistas, também o pior desempenho do PSB na história recente. Nas grandes cidades, o destaque vai para o crescimento incrível do PSOL a cada eleição, ultrapassando o PSB.
  • Nas cidades pequenas e médias, o desempenho do PSB ficou estável. Nas cidades médias-grandes, o PSB caiu muito, de 6% dos votos totais para vereador, para 4%. Mesmo assim, a votação do PSB no cômputo geral ainda é muito superior que a do PSOL e PCdoB.
  • O PCdoB perdeu eleitores em 2020, retornando mais ou menos ao nível registrado em 2008.

Entretanto, é naturalmente importante ficar atento ao número de vereadores eleitos, porque eles correspondem a máquinas políticas, e se as legendas souberem integrar esses gabinetes às suas redes sociais, eles podem se tornar importantes ativos para futuras campanhas majoritárias, para governador e presidente.

Neste quesito, os principais partidos progressistas são PDT, PSB, PT. Os três partidos registraram queda, de 9%, 17%, e 5%, respectivamente. Assim como se viu no número de prefeituras, o PDT agora também lidera no ranking de vereadores, com 3.441 eleitores, seguido de PSB, 3.029 e PT, com 2.665.

O PSOL ainda tem pouca penetração nas cidades menores, e por isso, o seu número total de vereadores é bastante reduzido, 89 eleitos, ainda assim um aumento de quase 60% sobre a eleição anterior.

Outro ponto que merece ser considerado é o custo relativo das campanhas. Alguns candidatos receberam muitos recursos, e não apresentaram bons resultados.

Primeiramente, vamos lembrar quanto cada partido ganhou. A notícia abaixo, publicada em setembro de 2020 no site do TSE, traz uma relação atualizada.

Os 10 partidos que mais receberam recursos foram:

Clique aqui para visualizar a tabela completa.

A tabela mostra que o PT, por exemplo, recebeu R$ 201 milhões de Fundo Partidário, o equivalente aos recursos destinados ao PDT e PSB, somados. O PSL recebeu quase R$ 200 milhões e apresentou resultados medíocres.

O G1 fez ainda uma relação entre os gastos contratados e os votos alcançados no segundo turno, de todos os candidatos de capital.

Eu chamo a atenção para algumas campanhas emblemáticas.

A de Boulos (Psol), por exemplo, custou R$ 1,58 por voto, contra R$ 6,14 de Bruno Covas (PSDB).

A de Manuela D’Ávila (PCdoB) custou R$ 6,17 por voto, contra R$ 4,40 de Sebastião Melo (MDB).

A campanha de Marília Arraes (PT) custou R$ 13,23 por voto, contra R$ 18,44 de João Campos.

A campanha de João Coser (PT) custou R$ 25,99 por voto, contra R$ 15,39 do delegado Pazolini.

Conclusão

Esses números mostram que o PT ainda carrega um fardo negativo muito pesado. Mesmo sendo o partido progressista com mais recursos financeiros, teve um desempenho ruim, perdendo prefeitos, e não vencendo em nenhuma capital. As campanhas petistas foram caras. Marília Arraes e João Coser tiveram recursos abundantes e mesmo assim perderam.

O PSOL cresce muito nas grandes cidades, e tem um futuro promissor, mas talvez ainda demore umas duas ou três eleições para ter maior capilaridade nos municípios. Por enquanto, ainda é um partido pequeno, e, no longo prazo, como dizia Lord Keynes, estaremos todos mortos.

O PDT precisa superar sua própria crise de imagem, que afeta a legenda nas grandes cidades. Ao decidir oferecer uma alternativa ao PT e ao PSOL, o PDT entrou na mira de um campo com muito mais enraizamento ideológico no voto de opinião, e que tratou de usar esse capital político para expulsar tanto o PDT como o PSB do clube. Mas esse é um eleitorado estreito demais. Cabe ao PDT e PSB procurarem se consolidar nas periferias; de posse desse voto de periferia, essas legendas não precisarão mais de autorização para obter suas respectivas carteirinhas de esquerda.

***

Atualização: tive acesso a esses dois gráficos, recentemente, e a uma ótima matéria de Carlos Ranulfo Melo, no Observatório das Eleições, no UOL.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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