Linchamento de Tábata Amaral reflete a miséria intelectual da esquerda

Poucas vezes testemunhei provas tão cabais de estupidez política, autoritarismo partidário e cegueira ideológica como no caso da deputada Tábata Amaral.

Felizmente ela manteve o seu mandato. Faço votos para que ela tenha uma longa carreira política, de preferência bem longe da esquerda sectária que lhe persegue diuturnamente. Para onde ela for, terá o meu apoio político, minha compreensão para com os inevitáveis erros que todo mundo comete, e a minha estima.

Sinto-me culpado por não ter lhe defendido mais por ocasião de seu voto em favor da Reforma da Previdência. Sou contra aquela Reforma, mas respeito seu voto e acho que, dentro das circunstâncias, ela fez o melhor possível para conter seus excessos. É isso que eu espero de uma parlamentar ética, pragmática e progressista.

Não o fiz, confesso dolorosamente, por covardia. Mas também por confusão. Às vezes, quando você se vê numa situação muito minoritária em relação a um tema, é comum duvidar de si mesmo. Não é possível que todos estejam errados e apenas eu, certo, você se pergunta o tempo inteiro, e aí se cala diante de uma injustiça.

Duas grandes dicotomias polarizam o debate político nacional: uma se dá entre liberais X desenvolvimentistas, a outra entre direita X esquerda. Considero-me entusiasticamente partidário das últimas opcões: sou desenvolvimentista e de esquerda.

Minha ideologia, quase todos que lêem o blog conhecem ou suspeitam. Apoiei Ciro Gomes em 2018. Para 2022, terei de avaliar com mais calma, pois Ciro andou errando demais nos últimos tempos, e hoje se vê profundamente isolado, e isso não apenas por causa das movimentações de Lula, que efetivamente saiu na frente, com gestos rápidos e certeiros, na busca pelo centro, mas por culpa de suas próprias trapalhadas.

Peço perdão aos meus amigos lulistas e ciristas que me cobram uma definição, mas não tenho condições psicológicas de entrar nessa guerra sangrenta, até porque não vejo, francamente, em que eu poderia ajudar. Sou um péssimo profeta político e já errei tanto em minhas previsões que hoje sou atormentado pela superstição de Murphy: quem eu apoiar irá perder, e quem eu não apoiar, irá vencer.

Então não se preocupem tanto com alguma consequência das minhas posições. Assistirei de camarote, tentando contemplar os embates com imparcialidade e senso de justiça, sempre de olho na melhor estratégia para desidratar o presidente Bolsonaro e construir um projeto de desenvolvimento factível.

Em 2018, era mais fácil se posicionar. Nunca irei compreender a decisão de Lula de se lançar candidato de dentro de uma prisão. Aquilo poderia dar errado de tantas maneiras, ganhando ou perdendo a eleição… Ainda hoje me parece uma decisão tão delirante, egoísta e insensata que me custa acreditar que tenha vindo do mesmo Lula a quem eu defendi por tantos anos.

Voltei-me então, cheio de esperanças, para Ciro Gomes, e para o PDT, atento à emergência dessa nova militância, que o Ciro apelidou de “turma boa”. Eu via ali, e ainda vejo, uma grande oportunidade de oxigenar a militância política no Brasil, sem os vícios da esquerda tradicional, mais ligada ao PT e aos sindicatos.

Qual não foi a minha decepção, portanto, quando eu passei a testemunhar a “turma boa”, com aval explícito ou tácito de Ciro Gomes e da direção do PDT, atacar a deputada Tábata Amaral com a mesma violência sectária e irracional com que a militância petista atacava (e ainda ataca) Ciro Gomes.

Até as palavras são as mesmas. Tábata é liberal, de direita, traidora!

Toda a hipocrisia, cinismo e fanatismo que me irritavam tanto no petismo e no esquerdismo brasileiro, de maneira geral, eu descobri que estava presente, em igual intensidade, no “cirismo”.

Agora chegamos na metade de 2021. O PDT faz um esforço desesperado para fechar acordos com a centro-direita. Ciro, que tentou ser a terceira via em 2018, hoje luta para conquistar a classe média conservadora, apostando inclusive na velha e surrada fórmula do lacerdismo. Suas derradeiras esperanças para chegar competitivo às eleições é receber apoio do PSD, do DEM e do PSDB.

Lula, por sua vez, faz selfies freneticamente com os caciques mais conservadores e corruptos da política brasileira, como Sarney e Eunício Oliveira, e planta notícias de que deseja retomar o diálogo com Romério Jucá.

Para completar, Dilma vem a público fazer elogios rasgados a Renan Calheiros, e afirmar que ele nunca foi um golpista (o fato dele ter votado a favor do impeachment aparentemente é um detalhe insignificante).

Os pecados liberais do PT são conhecidos. Entregou o comando da economia para os banqueiros ao longo de todos esses anos.

Ciro, por sua vez, é o novo melhor amigo de ACM Neto, e assina cartinhas em conjunto com Luciano Huck, Mandetta, João Dória.

E vocês querem me provar que Tábata Amaral é a “vilã liberal” dessa novela?

Não, não, não.

No episódio da reforma da Previdência, Tábata Amaral cometeu erros gravíssimos de comunicação, mas ela estava certa. O PDT é que foi incrivelmente estúpido.

A reforma da Previdência de Paulo Guedes era horrível, mas o substituto construído por Rodrigo Maia e Marcelo Ramos era um compromisso claro com os partidos de esquerda. Boa parte de seus excessos haviam sido removidos.

Terminada a votação, a esquerda vendeu a ideia de que a Previdência havia terminado. O próprio Ciro Gomes passou a falar, como um sindicalista radicalizado, que ninguém iria se aposentar nunca mais no Brasil.

Naquela gritaria toda, contaminada de paixões partidárias, a economista Laura Carvalho, do alto de seu “lugar de fala” de ex-coordenadora do programa econômico da candidatura presidencial de Guilherme Boulos, ou seja, a partir da posição mais à esquerda dentre as forças políticas com alguma representação parlamentar, publicou um artigo ponderado e racional, explicando que a Previdência pública havia sobrevivido, e isso se devia, em parte, ao trabalho dos parlamentares e forças progressistas, que fizeram o dever de casa mais antigo da política, de tensionar e negociar.

Alguns operaram mais no campo do tensionamento. Outros atuaram na negociação. A participação dos governadores de esquerda, por exemplo, muito menos barulhenta, porém muito influente, ficou mais próxima da postura de Tábata Amaral do que das lideranças partidárias mais estridentes.

A postura do PDT e de Ciro Gomes causou profunda decepção, naturalmente, nos liberais progressistas, que haviam votado em peso no candidato trabalhista.

Não foi a tôa que Tábata Amaral foi uma das deputadas do PDT mais votadas dos últimos anos. Havia uma demanda política reprimida por nomes com capacidade para circular entre esses dois universos: a esquerda desenvolvimentista e o liberalismo social ou progressista. Nas eleições municipais de 2020, o fiasco dos candidatos trabalhistas mostrou o altíssimo preço cobrado pelo sectarismo: o partido ficou sem o voto de esquerda, e sem o voto dos liberais progressistas.

A aliança entre essas duas forças é essencial para a formação de um projeto político minimamente sustentável e factível, que não precise beijar a mão da velha política clientelista e fisiológica representada por alguns setores partidários, sobretudo do centro e da direita, mas também de alguns partidos de centro-esquerda, incluindo aí o próprio PDT.

A campanha de Ciro Gomes em 2018 havia se destacado de outras justamente pela ênfase que dava a um Projeto Nacional, e um dos capítulos mais importantes era a defesa de uma reforma da Previdência arrojada e moderna. Sim, não era a reforma da Previdência defendida por Guedes, nem mesmo aquela aprovada ao final. Mas o fato é que Ciro e o PDT tentavam se vender como uma esquerda responsável, ética, capaz de discutir uma reforma da previdência a partir de pressupostos técnicos, e enfrentar os inevitáveis interesses corporativos que se ergueriam.

O debate sobre a reforma da Previdência seria uma excelente oportunidade para o PDT mostrar a que veio.

A solução do PDT era simples: bater bumbo na sua própria reforma da Previdência, e organizar debates, usando a Tábata Amaral, de um lado, e o Mauro Benevides, de outro, como os principais porta-vozes do partido, pois eram os dois que mais estudavam o assunto, e que tinham, portanto, mais a ganhar ou perder com ele.

Quando o relator da Reforma, Marcelo Ramos, ofereceu um texto substitutivo completamente diferente daquele primeiro de Guedes, o partido deveria ter orientado negativamente, mas liberado os deputados, e defendido a narrativa de que as mudanças conquistadas haviam sido o resultado da articulação política dos parlamentares de seu partido. Até porque foi mesmo. Mauro Benevides encontrou-se com representantes do governo e com parlamentares de centro, para ressaltar os desafios mais complicados da reforma.

O PDT poderia perder alguns militantes, mas ganhar outros. O partido seria vilipendiado por outras agremiações de esquerda, mas ao mesmo tempo conquistaria o respeito do verdadeiro centro político. Hoje, o PDT é xingado do mesmo jeito pelas outras agremiações de esquerda, e perdeu a confiança de um centro progressista que estava disponível na praça.

Hoje, esse centro progressista pende para Lula, justamente por confiar na capacidade do ex-presidente de sossegar os radicais de seu partido, enfrentar corporativismos e costurar acordos generosos com os liberais.

O desenvolvimentismo nunca prosperou, em nenhum lugar do mundo, quando se associou ao sectarismo ideológico.

Os desenvolvimentistas sabem disso, embora muitos prefiram silenciar sobre o tema, com medo do patrulhamento e da cultura de cancelamento que ronda o debate político dentro do campo progressista. Coreia do Sul, Japão, o keynesianismo americano e europeu, a própria China, desenvolveram-se de maneira espetacular quando se livraram de seus dogmas econômicos, tanto de direita quanto de esquerda, e apostaram pesadamente em soluções criativas para seus problemas.

Esses exemplos me parecem a prova mais cabal de que o desenvolvimentismo brasileiro apenas poderá prosperar quando conseguir assimilar os liberais progressistas. Sem eles, o desenvolvimentismo não terá densidade política para liderar um projeto de transformação da nossa base produtiva.

É claro que há inúmeros pontos de contato entre o liberalismo progressista e o desenvolvimentismo. Esse é, inclusive, um dos papéis que a Tábata Amaral poderia desempenhar, juntamente com André Lara Resende.

Resende era, até pouco tempo, um dos príncipes do liberalismo brasileiro, mas hoje pode ser considerado, sob diversos pontos-de-vista, como um desenvolvimentista moderado. Tábata era a pessoa ideal para pegar Lara Resende pela mão e o levar aos debates no campo progressista.

Ah, mas Tábata Amaral defende a autonomia do Banco Central! Bem, eu entrevistei uma vez um economista de esquerda, presidente da Associação Keynesiana do Brasil, chamado Fabio Terra, respeitadíssimo entre seus pares progressistas, e ele me disse que considerava os projetos aprovados na Câmara dos Deputados, relativos a autonomia operacional dos diretores do Banco Central, como muito bons. Eu não concordo com ele, mas também não vou lhe xingar de liberal filho da puta como fazem com a Tábata. Ele estudou os projetos e entendeu que, nas circunstâncias da política nacional, eles podem ser vantajosos para o nosso desenvolvimento.

O principal desafio do campo progressista é ampliar suas bases, e não reduzi-las ainda mais. É burrice, antidemocrático, contraproducente, exigir que nossos aliados – incluindo aqueles que, como Tábata Amaral, vinham se autocaracterizando, alegremente, como de centro-esquerda – vistam o uniforme homogêneo do esquerdista perfeito. Não precisamos disso! O campo progressista deve estar aberto a receber os liberais, que sempre foram, aliás, seus aliados. Sem o liberalismo europeu, e seus princípios duros em defesa da liberdade de expressão, Karl Marx e todos os socialistas e comunistas do Ocidente teriam sido presos e assassinados muito antes de terem tempo de publicarem suas revistas, jornais e livros. Durante muitos anos, o maoísmo prosperou à somba do liberalismo político do governo nacionalista de Chiang Kai-shek, até que este cedeu ao fascismo reacionário e passou a perseguir e matar os comunistas.

Sem o liberalismo político, hoje, e seu amor sagrado à Constituição, Lula nunca seria solto, e a Lava Jato nunca teria sido devidamente enfrentada e derrotada.

O liberalismo político errou quando deixou de ser liberalismo e se rendeu aos empuxos fascistas de alguns setores sociais.

É um grande erro de tática, estratégia, ou mesmo de natureza mais profunda, um erro científico, transformar o desenvolvimentismo numa bandeira “ideológica” de oposição ao “liberalismo”.

Existe essa dicotomia, mas é uma dessas polarizações idiotas que se esticam no tempo e que perdem o sentido quando analisadas de perto. Não existe um livro-texto definitivo nem sobre o desenvolvimentismo, nem sobre o liberalismo, assim como também não existe sobre o que é esquerda e o que é direita. Se a física moderna nos ensina que as partículas são, na verdade, ondas, deveríamos fazer o mesmo com esses conceitos. Liberalismo, desenvolvimentismo, neoliberalismo, esquerda, direita, não são partículas, e sim ondas de energia política, que apenas se cristalizam em conceitos duros, dogmáticos, quando temos que espetá-las na parede, mas que são oscilantes, incertas e instáveis quando observadas no dia a dia da política. O próprio neoliberalismo, quando analisado em ação, vivo, nunca foi puramente “neoliberal”, como nos ensina David Harvey em seu livro Breve história do neoliberalismo.

Para um idiota fascista, ser de direita é uma coisa. Para um gênio da política, como Churchill, é outra inteiramente distinta. A mesma coisa vale para a esquerda. Qualquer imbecil pode se autoproclamar de esquerda. Ter ideias criativas e práticas para transformar a realidade, e ao mesmo tempo manter uma postura ética e democrática na luta política, é o X da questão.

O liberalismo não pode ser analisado com espírito sectário. Assim como qualquer outro conceito político aberto, ele está em disputa e pode ser interpretado das mais variadas maneiras.

Não teve um famoso economista ultraliberal que defendeu, outro dia, que a China vem se desenvolvendo de maneira tão espetacular justamente por seu excesso de liberalismo (o que é, obviamente, uma picaretagem retórica, pois a China pode ser tudo, menos liberal)?

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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