Lenio Streck: A “valentia” na CPI e a lenda sobre o Habeas Corpus de Pazuello

Por Lenio Luiz Streck

Duas coisas chamam minha atenção da CPI da Pandemia. Claro que há várias. Porém, fixo-me nessas a seguir.

Primeiro, a “valentia” de alguns personagens que lá foram depor. Nenhum teve a coragem de dizer o que pensa. Antes, principalmente nas redes sociais, todo mundo é macho. Galo. Valente. Fanfarrão! Araújo era cloroquineiro raiz, negacionista nutella, conspiracionista da cepa e seu esporte preferido era ofender a China.

Já na CPI, Ernesto Araújo ficou pianinho. Que feio. Por que não bate no peito e sustenta o que dizia? Essa gente é mais ou menos como o deputado que foi preso. Dizia que batia e arrebentava. Na hora H, chorou. Outro que foi preso por causa de atos antidemocráticos disse que tomava remédio. Já outro disse que estava longe da mãe. Valentes são assim.

O grande filósofo contemporâneo Wajngarten pintava e bordava. Já na CPI desmentiu até sua própria voz. Que feio parte II. De fato, todo valente desse jaez, na hora em que o bicho pega, se borra. Ou borra-se. Com próclise e ênclise.

O cara que é convicto diz. Assume. Sou a favor da cloroquina. Vacina é uma enganação. O Presidente está certo. A terra é plana. Não é verdade que tratamento precoce não funciona. Bate no peito. Com força!

Mas, ao que se viu, tivemos “pois é”, “desculpe”, “não era bem assim”, “sabe, fui mal compreendido” …!

Ao lado disso, veio uma lenda urbana. O ex-ministro Pazuello pode mentir à vontade. Tem habeas corpus que lhe dá essa prerrogativa, disse-se.

Os senadores compraram essa versão pelo valor de face. A imprensa, idem! Jornalistas e jornaleiros!

Só que isso é moeda podre. O habeas corpus concedido é claro. Só serve para proteger o ex-ministro contra autoincriminação. No demais, tem o compromisso de testemunha. Isto é, para desenhar: fora da não autoincriminação, é proibido mentir.

Senhores e senhoras senadoras: façam uma hermenêutica do conteúdo do habeas corpus. Leiamos:

“No que concerne a indagações que não estejam diretamente relacionadas à sua pessoa, mas que envolvam fatos e condutas relativas a terceiros, não abrangidos pela proteção ora assentada, permanece a sua obrigação revelar, quanto a eles, tudo o que souber ou tiver ciência, podendo, no concernente a estes, ser instado a assumir o compromisso de dizer a verdade”

Não está claro?

Estes são os dois pontos que me chamam a atenção. A lenda dos valentes entre aspas e a lenda sobre o direito fundamental de mentir do Pazuello.

Simples assim. Como simples assim é a leitura da conduta de Pazuello, quem inventou Covid para transferir depoimento, estraçalhou com a verdade mais de uma dezena de vezes em seu depoimento e concluiu tudo com chave de ouro, transgredindo o Regulamento Disciplinar do Exército comparecendo ao comício de Bolsonaro no domingo — e sem máscara, é claro!

Para salvá-lo, o alto comando militar terá de fazer uma reserva com efeito ex tunc. Ou algo assim.

Até quando o Direito, em nosso país, será refém de patacoadas políticas?

Texto publicado originalmente no Conjur em 24 de maio de 2021

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