Comentários sobre a entrevista de Ciro ao Conexão Xangai

Fazer um comentário imparcial sobre uma liderança política requer um cuidado muito grande, por causa das paixões e ódios inevitáveis que despertam.

Se fazemos um elogio, será considerado bajulação pelos adversários do político. Se fazemos uma crítica, será visto como um ataque “desonesto” por seus apoiadores.

Essas dificuldades fazem com que uma quantidade enorme de pessoas simplesmente não mencione ou não discuta o desempenho das lideranças, como maneira de garantir sua própria paz de espírito. Isso acaba se tornando um estorvo ao debate democrático.

Não precisamos fazer como Suetônio que, em sua biografia de Julio César, ocupa a metade inicial do livro descrevendo-o como um político profundamente corrupto, desonesto, desleal e tirânico, e a outra metade fazendo exatamente o contrário, pintando Cesar como o mais brilhante, generoso, criativo e democrático líder político de Roma Antiga. Mas devemos buscar um ponto de equilíbrio. Vou tentar fazer isso.

A entrevista de Ciro Gomes para o Conexão Xangai, programa tocado pelos economistas Andre Roncaglia, Paulo Gala, Uallace Moreira e Elias Jabbour, foi seguramente uma de suas melhores dos últimos tempos.

Nela, vemos um Ciro extremamente preocupado em defender a sua doutrina de economia política, baseada num projeto nacional de desenvolvimento cujo ponto fulcral seria uma grande aposta na reindustrialização do país, começando por setores nos quais temos instrumentos, espaço e vantagens comparativas para fazer isso, como o complexo nacional da saúde, da defesa, do agronegócio e da cadeia de petróleo e gás.

Também nos reencontramos com um Ciro Gomes que conhece a realidade profunda do Brasil, e que tenta desenvolver uma ideia holística, conjuntural, sobre os grandes problemas nacionais, mas sem esquecer que o principal desafio é trazer soluções práticas para a ponta final, para a família brasileira, pobre ou de classe média, rural ou urbana.

Mas a entrevista também evidencia algumas das dificuldades de Ciro Gomes para furar as duas grandes bolhas onde estão o grosso do eleitorado.

O discurso de Ciro continua acadêmico demais para chegar à maior “bolha” de todas, a bolha popular. Ciro tem alguns vícios de linguagem dos quais deveria ter se livrado há tempos, porque são simplesmente excessos.

Ele usa adjetivos demais, advérbios demais, expressões em inglês ou definições técnicas que poucos conhecem, vocabulário rebuscado, frases longas. Algumas dessas expressões não podem sequer ser justificadas como “linguagem culta”. São apenas vícios de linguagem, de um tipo bastante cafona, que é quando o sujeito tenta “parecer” inteligente. Demonstra antes insegurança do que confiança em si mesmo. Em português temos uma palavra muito objetiva e brutal para definir esse vício de estilo: pernóstico.

Tudo bem, era uma conversa entre economistas. Mas Ciro não é economista. Ele é um pré-candidato a presidência da república numa democracia com 150 milhões de eleitores, então toda e qualquer participação sua deveria ter uma linguagem padrão, simples e popular, mesmo abordando temas complicados, como economia política.

Além desse desafio linguístico, que não pode ser subestimado, há um outro, de ordem política, no caminho de suas aspirações eleitorais, que é a sua ideia de formar uma “nova hegemonia moral” no país.

Na entrevista, ele repete essa expressão, chegando a brincar com Elias Jabbour – um economista assumidamente marxista, especialista em China e dirigente nacional do PCdoB – que essa era uma lição de Gramsci, um dos maiores pensadores marxistas do século XX. O pensador italiano escreveu muito sobre a função da cultura, dos intelectuais e dos partidos, na construção de uma hegemonia moral que, paulatinamente, se transformaria em poder político.

Ciro sempre fala em Gramsci e em hegemonia moral, mas nunca me pareceu empenhado em colocar em prática essa teoria.

E aí entra a segunda grande bolha, a ideológica, que apesar de ser numericamente pequena, é imensamente influente nas redes sociais, e pode levantar ou destruir uma candidatura. No caso de Ciro, a sua bolha ideológica, em virtude de seu histórico e suas ideias, é a da esquerda.

Desde sua ida ao estrangeiro no segundo turno das eleições, decisão que acabou por se transformar numa poderosa peça de propaganda política contra si, até sua falta de delicadeza no trato com uma militância petista profundamente ferida pela injustiça praticada contra seu líder (injustiça que o próprio Ciro tantas vezes denunciou), além de uma sucessão de outras trapalhadas, essas ações acabaram por criar muitas dificuldades políticas pra Ciro dentro do campo progressista.

Ciro é tratado como radical de esquerda pela direita, e como radical de direita pela esquerda. Isso não se mostrou uma fórmula inteligente para capturar o centro, porque o centro não gosta de radicalismo nem de esquerda nem de direita.

E por que é assim? Por que Ciro é tratado como radical, sendo que não é?

Ciro é obviamente um político de esquerda. Na entrevista ao Conexão Xangai, esse é um do fatos mais claros, a começar pelo clima de cumplicidade que se estabelece desde o início entre os economistas, alguns dos quais, como já falamos, são marxistas declarados, como Jabbour (embora Jabbour esteja muito longe de ser um ortodoxo ou sectário; ao contrário, em suas próprias intervenções na entrevista, Jabbour faz questão de se apresentar como um marxista que defende parcerias entre Estado e empresas privadas, bem ao estilo pragmático e dialético da China contemporânea).

O fato, porém, é que Ciro Gomes se sente à vontade na esquerda. Esse é seu mundo.  Ter um lado e se manter fiel a ele é uma qualidade, mas também nos oferece algumas armadilhas. Ao se sentir tão à vontade entre seus “amigos de esquerda”, Ciro acaba incorporando alguns vícios esquerdistas bobos, como o de insultar os economistas liberais e fazer pouco caso de seus valores e ideias, usando a mesma linguagem de “militante da UNE” que ele aponta em seus concorrentes do mesmo campo. Ao se referir às organizações de classe da indústria nacional, como Fiesp e CNI, Ciro diz que se tornaram antros de industriais falidos, e ataca pessoalmente Paulo Skaf, presidente da primeira e Robson Andrade, presidente da segunda.

Os entrevistadores riem dos insultos, porque são de esquerda, mas um observador da grande cena política percebe que a fala de Ciro apenas cria mais alguns inimigos poderosos, sem agregar ninguém novo. Por mais críticas que tenhamos a essas figuras, o momento é de produzir condições para o diálogo, e não de explodir mais pontes.

Ao agir assim, Ciro acabou se tornando um dos alvos preferidos dos liberais brasileiros, e os liberais, mesmo não sendo bons de voto, sempre foram bons de mídia. Ah, a solução seria se submeter aos liberais? Não. É preciso enfrentar os liberais brasileiros, que historicamente sempre foram os liberais mais falsos, cínicos e até mesmo os menos liberais do planeta. Apoiaram a escravidão, apoiaram a ditadura militar, apoiaram Bolsonaro. Depois que Inês é morta e seus bolsos ficam cheios, eles se arrependem. Mesmo assim, é preciso evitar a generalização.

A história do desenvolvimentismo moderno sempre foi uma história de luta contra os liberais ortodoxos, a começar por John Maynard Keynes, que lhes aplicou uma marretada tão forte na cabeça em 1936, com a publicação de seu clássico, Teoria Geral, que eles demoraram quase 40 anos para se recuperar e contra-atacar, com Milton Friedman. Keynes sabia morder, e se cercava de gente que também sabia, mas sempre entendeu que o grande desafio era convencer e seduzir, através do respeito à ciência econômica, a lógica dos fatos, a solidez de seus argumentos. E atacava também por dentro, pois era do Partido Liberal, e sua nova doutrina oferecia a única fórmula para combater o crescimento do prestígio do socialismo soviético.

Voltando a Ciro e a sua ideia de formação de uma nova hegemonia moral no país, outra divergência entre as boas ideias do pedetista e a sua prática, é – repito – o problemão que ele acabou criando junto a amplos setores da esquerda brasileira. É contraditório falar em construir uma nova hegemonia moral no país, pretender ser o líder dessa hegemonia, ter ideias fortemente identificadas como progressistas, e ao mesmo tempo ser tão hostilizado por parte crescente da esquerda. Alguma coisa está errada!

Já disse que acho um absurdo considerar Ciro um quadro da direita, mas ao mesmo tempo é preciso entender porque existe um movimento de crescente hostilidade a Ciro dentro da esquerda.

Na entrevista ao Conexão Xangai, Ciro não atacou o PT nem Lula. Fez críticas inteligentes, mas deixou de lado os insultos às vezes grosseiros que costuma fazer, e que naturalmente são a causa principal de seu “cancelamento” junto a muita gente do campo progressista.

Um amigo cirista reagiu a entrevista no Conexão com entusiasmo, dizendo que Ciro finalmente não havia caído em “pegadinha”, nem cometido nenhum “deslize” verbal que fizesesse com que um vídeo de 2 horas e 30 minutos fosse julgado por uma observação brutal de 10 segundos sobre o Lula.

No entanto, esse “alívio” da militância cirista, que de fato se empolgou com essa entrevista, é também um sinal de alerta. Quando uma das grandes preocupações da militância política é que seu líder não trabalhe para desestabilizar a sua própria campanha, é porque existe desde já uma dissonância política grave na relação entre o líder e a militância.

Há pouco tempo, em entrevista ao Globo em abril de 2021, Ciro disse que “viajaria a Paris no 2o turno com mais convicção”.  Ora, Ciro, isso não é, definitivamente, uma frase gramsciana de alguém preocupado em construir uma “nova hegemonia moral”! Juntamente com outras manifestações do pedetista, elas tem gerado um movimento preocupante de isolamento do candidato junto ao campo progressista, e não se observa nenhuma estratégia para neutralizar isso. Ao contrário, como vimos no debate em torno do voto impresso, parte da militância cirista parece ter abandonado a preocupação de se distanciar de Bolsonaro, na ilusão, tola e perigosa, de que pode capturar parte desses eleitores. O bolsonarismo tem que ser esmagado. E a estratégia para fazer o bolsonarista parar de votar em Bolsonaro é mostrando o quanto o presidente é ridículo, incluindo sua defesa do voto impresso, pauta hoje totalmente vinculada ao bolsonarismo. Não adianta esconder a palavra impresso e falar em “voto auditável”. Auditável, o voto já é. E auditar usando papel é o cúmulo do atraso. Auditoria de voto eletrônico tem que ser eletrônica também, por questões de agilidade, segurança e cruzamento dos dados.

Voltando a entrevista analisada, ela mostra um candidato afiado para as questões econômicas, e que certamente irá contribuir muito para puxar o debate eleitoral em 2022 para o que, de fato, importa, que é a discussão de um projeto nacional para tirar o Brasil do buraco e superar o subdesenvolvimento.

Enquanto liderança política, todavia, Ciro enfrenta hoje muita resistência contra o seu nome, tanto entre progressistas quanto entre liberais, e muitas dessas resistências foram criadas por ele mesmo.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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