Pesquisa Ipec joga mais terra sobre o túmulo da terceira via

A última pesquisa IPEC mostrou que os caminhos da terceira via estão ainda mais estreitos do que se pensava.

Se ela já estava com um pé na cova, hoje o corpo inteiro parece estar dentro do buraco, recebendo substanciais quantidade de terra a cada novo levantamento.

E não são apenas as pesquisas que dificultam a sua vida.

Se o bolsonarismo organiza uma manifestação popular e mostra força, como se viu no dia 7 de setembro, isso é mais uma pá de terra na cova da terceira via.

Se a esquerda faz uma manifestação bem sucedida, e se observa a hegemonia do lulopetismo nas ruas, isso é outra pá de terra na cova da terceira via.

E quando a própria terceira via ocupa as ruas, como vimos no dia 12, a sua debilidade fica tão evidente que é… mais terra na cova da terceira via.

A terceira via está sendo enterrada viva.

Vamos analisar porque ela enfrenta tantas dificuldades.

Os setores dispostos a quebrar a polarização tem hoje dois nomes pontuando nas pesquisas, Ciro e Doria.

JOÃO DÓRIA

O governador de São Paulo, João Dória (PSDB), conseguiu a proeza de perder o pouco que tinha. Em junho, Doria pontuava 5% na pesquisa estimulada do Ipec.

Hoje tem apenas 3%, no cenário mais enxuto, com cinco candidatos.

No cenário expandido do Ipec, com dez candidatos (e que começa a aparecer o cenário mais provável), Doria tem 2%.

Na espontânea, Doria tem zero em quatro regiões do país: Nordeste, Norte, Centro-Oeste e Sul. Seus votos parecem se concentrar exclusivamente em São Paulo, o que corresponde aos 2% que ele tem no Sudeste.

No total nacional da pesquisa espontânea, Doria tem 1%.

CIRO GOMES

Ciro Gomes (PDT) oscilou 1 ponto para cima no cenário mais enxuto do Ipec, chegando a 8%.

No cenário expandido, ficou com 6%.

Apesar de não ter caído, a pontuação de Ciro ainda é muito baixa. Na pesquisa espontânea, tem apenas 2%.

Sob alguns aspectos políticos e partidários, a candidatura de Ciro encontra ainda mais dificuldades do que a de João Dória ou de outro candidato filiado a um partido conservador.

Explico.

Existem, grosso modo, dois grandes pólos políticos no Brasil, como de resto em qualquer lugar do mundo, desde tempos imemoriais.

É uma polarização que não nasceu no Brasil recente, mas existe desde que a política foi inventada, há dezenas de milhares de anos.

De um lado, as forças políticas ligadas ao mundo do trabalho.

De outro, aquelas vinculadas ao capital.

Lula é o representante do mundo do trabalho. Alguns tentam pintar Lula como “liberal”, ou “amigo dos banqueiros”, por causa das generosas concessões feitas pelos governos petistas ao sistema financeiro.

O próprio Ciro tem procurado emplacar a narrativa de que nem Lula nem o PT sejam de “esquerda”.

Isso é pueril.

Na percepção hegemônica da política brasileira, Lula é visto como representante do trabalho. Por isso tem apoio da maioria dos sindicatos, movimentos sociais e intelectuais progressistas.

As pesquisas reforçam a imagem de Lula como representante dos setores mais vulneráveis da população.

Na espontânea do Ipec, a votação de Lula entre eleitores com renda familiar até 1 salário é de 46%, contra 14% de Bolsonaro e 0% de Ciro.

A outra vaga da polarização, a de representante do capital, está hoje ocupada por Jair Bolsonaro, como igualmente sinalizam as pesquisas: segundo os números espontâneos do Ipec, o atual presidente lidera entre famílias com renda acima de 5 salários.

Pela lógica da política nacional, um candidato com pretensões de tirar Bolsonaro do segundo turno precisaria se converter igualmente em representante do capital.

Esse papel seria representado com muito mais facilidade por um candidato vinculado a um projeto explicitamente liberal-conservador, como Doria, Moro, Leite, Mandetta, Tebet ou Alessandro Vieira, do que por Ciro Gomes.

Quando Ciro usa uma abordagem antiliberal para atacar o projeto petista, ele pode até chamar a atenção de um eleitor mais culto da cidade grande (as pesquisas mostram que Ciro tem sua melhor pontuação entre eleitores com ensino superior), mas ao mesmo tempo perde pontos junto às forças liberais-conservadoras.

Tanto isso é verdade que o debate sobre união da terceira via parece ter sido completamente esquecido. Em entrevista recente, o presidente nacional do PSD, Gilberto Kasssab, resumiu como agirão os partidos interessados na terceira via: “será cada um por si”. E foi esquecido porque os dois pólos, Ciro de um lado, e Doria de outro, são absolutamente inconciliáveis.

As circunstâncias geram ainda outra dificuldade para a terceira via: como a vaga a ser ocupada é a do representante do capital, os candidatos precisam focar seus ataques exclusivamente na personalidade de Jair Bolsonaro, e menos em seu projeto econômico.

No caso de João Doria, ou de outro candidato conservador, o seu projeto econômico é o mesmo de Bolsonaro. Isso ajuda, por um lado, porque é um projeto que pode agradar as forças políticas que hoje apoiam Bolsonaro. No caso de Bolsonaro sumir do mapa, essas forças migrariam automaticamente para uma candidatura com o mesmo projeto.

Mas isso gera confusão na cabeça do eleitor: o PSDB é governista ou oposição? Essa ambiguidade enfraquece Doria, e explica o seu desempenho absolutamente pífio e pouco promissor nas pesquisas.

Ciro Gomes, por sua vez, tem um projeto radicalmente diferente de Bolsonaro, mas ambiciona o mesmo eleitorado. A conta não fecha.

Se Ciro quer roubar o eleitorado de Bolsonaro, precisaria atender a demanda política dos… eleitores de Bolsonaro, que são conservadores nos costumes e liberais na economia.

Sem a marca sedutora de “liberal-conservador”, a campanha de Ciro encontra dificuldade para atrair o eleitorado de Bolsonaro. Sem querer “espantar” esse eleitorado, sua campanha tende a evitar um ataque mais agressivo, direto, ao projeto econômico do governo. Daí seus vídeos esotéricos, fora da política, abordando a história da Guerra de Canudos e importância da… religião.

Essa situação explica o foco de Ciro no discurso moralista, contra Lula e Bolsonaro.

Isso também gera confusão na cabeça do eleitor, e igualmente explica o baixo desempenho do candidato nas pesquisas.

Além disso, e isso é o mais irônico, Ciro tem ajudado Lula.

Quando Ciro “acusa” Lula de ser, no fundo, um liberal, como se isso fosse um xingamento, ele afasta de si essas forças liberais, além de ajudar o ex-presidente a reduzir sua rejeição junto ao eleitorado… liberal, que é justamente o setor que Lula precisa atrair para si, para aumentar o isolamento de Bolsonaro.

Quando Ciro tenta atacar o projeto econômico de Paulo Guedes, ele perde eleitores e partidos liberais, cuja parcela menos conservadora então prefere  migrar para… Lula.

Outra ajuda de Ciro à campanha de Lula é que ele construiu uma espécie de “cinturão cirista” ao redor das candidaturas principais, bloqueando a entrada de concorrentes que poderiam oferecer mais perigo.

Em tese, um candidato de centro-direita um pouco mais educado poderia receber um monte de apoios e votos de setores liberais-conservadores frustrados com a truculência e pouca disposição ao trabalho de Bolsonaro.

Mas esse candidato precisaria exibir uma pontuação mínima nas pesquisas, penetrar no nordeste, e herdar igualmente o voto de progressistas insatisfeitos com o PT. A presença de Ciro, no entanto, congestiona esse espaço. Entre um Doria e um Ciro, o progressista insatisfeito com o PT sempre vai preferir Ciro, e isso dificulta o crescimento de qualquer candidato alternativo mais à direita. Além disso, Ciro tem uma pontuação razoável no Ceará, que lhe dá os pontos no Nordeste que outros candidatos da terceira via não tem.

CONCLUSÃO

A única chance da terceira via, conforme tem admitido o próprio Ciro em entrevistas recentes, seria a eliminação de Jair Bolsonaro do segundo turno.

Essa possiblidade, todavia, ficou mais distante. As últimas pesquisas mostram a recuperação de Bolsonaro em setores sociais estratégicos.

Segundo o Datafolha, Bolsonaro tem hoje 41% entre eleitores com renda média de 5 a 10 salários, e 43% entre aqueles com renda acima de 10 salários. O presidente subiu 11 pontos no primeiro grupo, e quase 20 pontos no segundo.

Na pesquisa espontânea do Ipec, Bolsonaro cresceu de 30% (junho) para 38% (setembro) entre eleitores com renda acima de 5 salários.

A classe média é um setor “estratégico” por razões óbvias: é um eleitorado com maior poder de comunicação e mobilização.

Classe média enche rua e domina as redes sociais.

O sucesso das manifestações bolsonaristas no 7 de setembro, que reuniu cerca de 125 mil pessoas na Paulista, segundo cálculo da PM de São Paulo, é outro fator que afasta a possibilidade da candidatura Bolsonaro esvaziar e ficar fora do segundo turno.

Outro importante obstáculo a uma candidatura alternativa é que, em todas as simulações de segundo turno feitas até aqui, o ex-presidente Lula vence os candidatos da terceira via com vantagem numérica ainda maior do que a registrada contra Bolsonaro.

A explicação para isso seria que o bolsonarismo conseguiu se enraizar nas camadas populares. Bolsonaro não é páreo para Lula entre famílias de baixa renda, mas vai muito melhor do que os candidatos alternativos.

Entre eleitores com renda familiar até 1 salário, por exemplo, todos os nomes da terceira via pontuam zero.

Temos ainda o fator tempo.

O primeiro turno das eleições de 2022 será realizado no dia 2 de outubro, ou seja, daqui a exatamente 12 meses.

Há tempo hábil para se construir uma candidatura alternativa?

Como ocorreu em eleições anteriores?

Fiz uma tabela para comparar as intenções de voto de candidatos “alternativos” um ano antes das eleições presidenciais.

Em setembro de 2017, um ano antes das eleições de 2018, Bolsonaro era a “terceira via”, ou seja, um candidato alternativo entre a polarização PT x PSDB que caracterizou os embates presidencias desde pelo menos 1994.

Qual era então a força de Bolsonaro?

Segundo pesquisa Datafolha de setembro de 2017, Bolsonaro tinha 9% de votos espontâneos, mas uma observação mais detalhada podia antever o potencial do candidato. Entre homens, Bolsonaro tinha 14% de espontânea. Na região Norte, Bolsonaro tinha 19%, no Centro Oeste 12%, no Sudeste 11%. Nas regiões Sul e Nordeste, Bolsonaro tinha 5%. Entre eleitores com renda familiar de 5 a 10 salários, Bolsonaro já pontuava 18%, e chegava a 20% entre aqueles com mais de 10 salários. Era o campeão da classe média.

Nas eleições presidenciais de 2014, a terceira via era Marina Silva. Numa pesquisa Datafolha de outubro de 2013, a ex-ministra aparecia com 4% dos votos espontâneos, mas se destacava em alguns segmentos: tinha 5% entre homens, 10% entre eleitores com ensino superior e 10% entre eleitores de classe média.

Ciro Gomes, por sua vez, a um ano da eleição de 2022, tem hoje apenas 2% na espontânea, sem se destacar em nenhum segmento.

Por fim, um outro fator merece ser analisado: o percentual de eleitores indecisos a um ano antes das eleições.

Vamos continuar comparando percentuais da pesquisa espontânea – que é aquela onde o entrevistador não dá os nomes dos candidatos.

Em outubro de 2013, um ano antes das eleições de 2014, o total de indecisos, segundo o Datafolha, era de 53%. Em setembro de 2017, um ano antes do pleito de 2018, o número total de indecisos era de 48%.

Hoje, faltando um ano para as eleições de 2022, o percentual de indecisos é de apenas 22%.

O baixo número de indecisos tem várias explicações, mas todas as elas convergem para uma conclusão comum: o eleitor brasileiro já começou a consolidar sua opinião para 2022. Os candidatos disponíveis são todos muito conhecidos, e absorvem quase que integralmente a atenção política dos eleitores.

Naturalmente seria muito mais fácil, para uma candidatura alternativa disposta a quebrar uma determinada polarização, convencer o eleitor indeciso. Se há poucos indecisos, porém, a campanha alternativa terá que mudar um voto já consolidado. Ou seja, Ciro ou Doria terão que “roubar” votos de Lula ou Bolsonaro, dois candidatos extremamente fortes em seus respectivos campos ideológicos.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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