Sobre o fracasso da esquerda reacionária, anti-identitária e fantasiada de “nacionalista”

Comandante Farinazzo foi candidato a deputado estadual pelo PDT, com apoio do movimento Nova Resistência

Democracia é a coisa mais linda do mundo. É o mais justo processo de depuração, reconhecimento e avaliação meritocrática já inventado pela humanidade.

Aliás, é provável, como quase tudo que deu certo na humanidade, que o processo democrático moderno seja uma versão institucionalizada de algo realmente muito antigo, um método natural, biológico, inscrito no DNA, de reconhecimento de liderança, que existe em abundância no mundo animal, especialmente entre mamíferos.

Fukuyama, em seu livro sobre as origens pré-históricas da política, compila e analisa uma série de estudos científicos sobre a existência, em sociedades humanas primitivas, de processos de reconhecimento de liderança, que podem ser rastreados desde os primatas. A democracia pode ser considerado – possivelmente o melhor já inventado, o que explica sua sobrevivência por “seleção natural” da história – um processo de reconhecimento de liderança.

Mas não só. A democracia também é um processo de seleção de valores, métodos, estratégias e projetos.

Tanto a eleição de Trump nos EUA, em 2016, quando a de Bolsonaro em 2018, deflagraram uma série de críticas ao que seria uma esquerda “identitária”. Criou-se então um espantalho, um inimigo imaginário, criado por uma esquerda reacionária, sem conexão com o povo, de que um dos grandes obstáculos no caminho de uma reorganização das massas, seria o “identitarismo”. A classe trabalhadora estaria deixando de se ver como um bloco único, em oposição à burguesia, para se fragmentar em visões identitárias, divididas em negros, mulheres, gays, trans, índios, etc.

A crítica parecia fazer sentido, até porque era necessário alguma explicação para a derrota eleitoral para figuras tão grotescas. Mas nunca deixou de ser apenas uma especulação polêmica, que as últimas eleições nos Estados Unidos e no Brasil enterraram completamente.

Isso não significa que as especulações anti-identitárias não tenham sido úteis. Toda crítica, desde que formulada com inteligência e boa vontade, é útil, e até mesmo necessária, ao processo democrático.

Entretanto, o fracasso eleitoral, no Brasil, das candidaturas mais associadas a esse anti-identitarismo foi tão avassalador, que é preciso levar adiante uma outra especulação, uma outra crítica, na direção exatamente contrária ao que diziam os detratores das estratégias e valores identitários.

Aqui é preciso aqui pôr fim à besteira de se rechaçar o uso do vocábulo “identitário”, porque é o que temos por hoje, e sem um nome conhecido, tanto por amigos como por inimigos da causa, não se consegue fazer um debate consequente.

Talvez o que ficou conhecido, portanto, como “identitarismo”, não seja uma “invenção neoliberal”, uma técnica maliciosa infiltrada por republicanos maquiavélicos no movimento progressista, e sim alguma coisa tão antiga como a própria democracia.

Possivelmente, o mesmo instinto – e desde Kant que instinto e intuição recuperaram seu merecido prestígio, como formas superiores de inteligência – que nos levou à democracia a partir das técnicas primitivas, biológicas, de reconhecimento da liderança, o mesmo instinto também nos leva a defender a nossa identidade, a escolher líderes com os quais nos identificamos, e a defender valores da nossa identidade.

O fracasso eleitoral do movimento anti-identitário pode ser explicado, portanto, pelo fato dele ser tudo aquilo de que denunciava em seu adversário, o identitarismo. O identitarismo sim é popular. Defender a causa das mulheres é popular. Defender a causa dos negros é popular. Defender a causa LGBTQi+ é popular. E as eleições nos permitem sair do terreno das especulações, pois o voto está para a ciência política o que é a observação empírica, o dado, a predição acertada, para as ciências da natureza.

Duda Salabert, uma professora de literatura trans, representante clássica do identitarismo em sua acepção mais pura, foi a candidata a deputada federal mais votada de todo o PDT e uma das mais votadas do país. Os candidatos identificados com causas identitárias tiveram excelente desempenho eleitoral em 2022.

Lula, à frente de uma ampla coalização de partidos, nucleados contudo por legendas de esquerda hegemonizadas hoje por movimentos identitários, recebeu 60,3 milhões de votos no segundo turno das eleições presidenciais de outubro de 2022, a maior votação da nossa história, e será o próximo presidente da república do Brasil.

Outro fracasso eleitoral e político de 2022 foi protagonizado pela esquerda fantasiada de “nacionalista”.

O nacionalismo é um valor fundamental nas democracias modernas. E às vezes pode proporcionar impressionantes resultados eleitorais, como é o caso da fantasia “patriótica” do bolsonarismo, cujos militantes cultuam as cores verde e amarelo e a camisa da CBF com muito mais ardor do que a preservação da Amazonia, o controle sobre nossas reservas de petróleo e o direito à vida e a dignidade dos brasileiros mais pobres. Ou seja, a “pátria” bolsonarista é apenas uma ficção mal escrita. Quando passamos para coisas concretas, como florestas, pré-sal e vida, o nacionalismo desaparece por mágica, e quem as defende é… “comunista”.

Entretanto, o nacionalismo popular, progressista, humanista, de esquerda, não pode jamais emular a estratégia conservadora. Fazer isso é um grande erro, e foi o erro cometido por quadros como Aldo Rebelo, candidato ao Senado pelo PDT, e pelo próprio Ciro Gomes. Um erro político e moral nas proporções do fracasso eleitoral que testemunhamos.

O povo não quer saber de “símbolos” nacionalistas, como bandeira do Brasil e camisa da seleção. O seu nacionalismo não é verde e amarelo, assim como o nacionalismo japonês não é vermelho. As cores não tem significado algum para o povo, e apenas teriam se fossem associadas a valores muito objetivos.

Por isso também é besteira pretender recuperar à força, de cima para baixo, os “símbolos nacionais”, como a bandeira do Brasil, o hino do país, as cores verde e amarelo, como se isso tivesse alguma importância real para o estômago das pessoas. O povo voltará a dar valor a essas coisas apenas quando entender que elas significam conquistas objetivas para sua vida e para o seu bem estar.

O nacionalismo popular, portanto, jamais poderia degenerar em discursos ou narrativas despolitizados, ou mesmo antipolíticos, como foi o caso da campanha de Ciro Gomes. As conquistas políticas de Getúlio Vargas, que se tornou um totem para movimentos reacionários oportunistas, que tentam se infiltrar na esquerda fantasiados de “nacionalistas”, apenas foram possíveis porque havia, em primeiro lugar, um movimento popular de base extremamente ativo no país desde a virada do século. As greves organizadas por associações e sindicatos anarquistas ou comunistas desde os primeiros anos do século XX, os protestos populares, as campanhas jornalísticas da esquerda, as atividades de agitação e propaganda da intelectualidade progressista, tudo isso gerou a atmosfera política que tornou possível para Vargas fazer o que fez. Não veio do nada. Da mesma forma, Vargas também fazia política de concessões e alianças com a burguesia e o latifúndio, inclusive cometendo muitos erros.

Mais importante do que tudo, porém, é entender que um movimento nacionalista popular, moderno e progressista (e só faz sentido defender um nacionalismo que seja progressista, porque senão for, então seria melhor aderir ao nazismo, que é o nacionalismo mais puro de todos) não pode ser um nacionalismo de guerra, que despreza estrangeiros, tampouco pode ser um nacionalismo negacionista, que ignora a necessidade vital de obtermos conhecimentos e tecnologias do resto do mundo. Nem pode ser um nacionalismo egoísta, que despreza a necessidade de estabelecermos relações fraternas e solidárias senão entre governos, mas sobretudo entre os povos.

O caso da Amazônia é emblemático. Um certo movimento “nacionalista” de esquerda ou direita trata do tema Amazônia com uma postura chauvinista, quase infantil, no fundo muito mais sectária do que o mais radical ambientalista. “A Amazônia é nossa, é brasileira”, repetem, e repercutem toda teoria de conspiração contra ongs internacionais.

Ora, a Amazônia é brasileira, mas ela também é um pedaço importante do planeta Terra, e pertence à humanidade. Se os brasileiros votassem, em massa, que o correto seria devastar toda a Amazônia, para explorar seus minérios e plantar soja, isso seria o correto? Evidente que não. O nacionalismo humanista, que é o único nacionalismo que devemos perseguir, entende que o amor à sua pátria não pode jamais estar acima de seu amor pela humanidade. Tudo que o mundo nos oferecer para que possamos proteger nossas florestas, e explorar economicamente a região Norte sem que isso signifique a morte de uma árvore ou de um animal silvestre, devemos aceitar de bom grado, embora sem ingenuidade, sabendo explorar, também de nossa parte, da maneira mais inteligente possível, as contrapartidas inevitáveis, pensando no bem estar do povo brasileiro.

Esse é o nacionalismo que, tenho certeza, tem chances reais de sucesso, tanto nos embates de opinião pública como em eleições.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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