O Chile não é aqui (mas o alerta é importante)

Muita calma nessa hora.

As notícias que vem do Chile tem de ser digeridas com muita objetividade, sem nos deixarmos levar por análises apressadas, emotivas ou enviesadas.

O resultado das eleições para o Conselho Constituinte do Chile, órgão que deverá produzir uma nova Constituição para o país, foi desastroso para a esquerda chilena, em especial para o presidente Gabriel Boric.

Das 50 cadeiras em disputa, a ultradireita chilena, representada pelo Partido Republicano, conquistou 22, ou 35,5% dos votos.

O grupo de Boric, Unidad para Chile, uma coalizão de forças progressistas, ficou em segundo lugar, com um pouco menos de 28%.

A direita moderada, por sua vez, recebeu 21% dos votos.

Agora vamos às análises.

Em primeiro lugar, é bom evitar explicações absolutas, em geral associadas a dedos em riste apontados para este ou aquele grupo.

Por exemplo, uma parcela da esquerda brasileira não perdeu tempo para culpar os “identitários”, ou seja, aqueles mais conectados às causas indígenas, negras, feministas, LGBTQI+.

Tais análises são, frequentemente, tautológicas, no sentido de que apenas apontam o óbvio. A ultradireita ganhou porque a esquerda perdeu. Como a esquerda identitária anda muito forte, aqui e no Chile, então a culpa é da… esquerda identitária.

Entretanto, esse tipo de análise costuma esquecer que foi a esquerda chilena tal como ela é, com todas as suas limitações e defeitos, que ganhou as eleições presidenciais em 2021.

Nada sugere que, se a esquerda chilena isolasse completamente os movimentos identitários, ela teria melhor desempenho no domingo.

Outra tautologia é demonizar Boric, esporte comum em alguns setores da esquerda brasileira. Estes frequentemente posam de grandes campeões da estratégia política, esquecendo que a esquerda brasileira foi quase varrida do mapa nos últimos anos.

Claro que Boric é culpado. A derrota é principalmente dele, de seu governo e da coalizão que ele integra.

Mas também foi Boric quem venceu as eleições presidenciais no Chile no final de 2021.

E Gabriel Boric ainda é o presidente do Chile. Ainda pode aprender com seus erros. Ainda tem a caneta na mão, e continuará tendo até 2025, caso o Chile não seja infectado pelo vírus do golpe e ele seja derrubado antes do término de seu mandato.

Acho sempre curioso quando setores da esquerda brasileira, especialmente suas franjas minoritárias, radicais, que praticamente não tem espaço no debate político nacional, para não falar da sua marginalização quase total dos espaços institucionais (inclusive dentro de seus partidos), tratam o presidente Gabriel Boric como um caso perdido.

Boric deve estar cometendo muitos erros, com certeza. Mas o resultado das eleições deste domingo deveria fazer a esquerda brasileira se questionar se tudo é erro de Boric, ou se suas ações, diante de uma conjuntura desde o começo extremamente difícil, foram aquelas consideradas por ele as possíveis?

Ah, lá vem ele com a história de correlação de forças, de se contentar com o “possível”! Essa não é sempre a desculpa dos oportunistas, dos covardes, dos vendidos ao sistema?

Provavelmente sim. Mas também é a postura da maioria dos partidos de esquerda, há muito tempo, desde que a esquerda passou a ganhar eleições e governar, em diversos países do mundo, desde o final do século 19.

É uma situação engraçada.

De um lado, temos uma esquerda com um problema gravíssimo de auto-estima, incapaz de valorizar suas próprias conquistas, ao longo dos séculos. Quer dizer, não vamos falar em séculos. Vamos focar  apenas na esquerda latino-americana, com seus altos e baixos dos últimos anos, suas fragilidades, seus erros, e suas emocionantes vitórias!

Continuando: de um lado, temos essa esquerda com tantas vitórias e ainda tão insegura, quase neurastênica, frequentemente derrotista mesmo quando vence.

E, do outro lado, uma ultradireita reacionária, golpista, completamente desconectada dos novos tempos, capaz sim de vencer uma eleição, mas com pouca chance de manter o poder por muito tempo, porque não tem mais acesso às armas de outrora. Não pode mais brincar de golpe. Quer dizer, ela ainda tenta dar golpes. Mas esses não tem mais a eficiência ou a resiliência de antigamente, e nada indica que voltarão a ter.

O Chile não é o Brasil.

Com apenas 19 milhões de habitantes, e um percentual bem maior de famílias de classe média que o Brasil, o Chile é sociologicamente uma soma do Paraná (11 milhões) com Santa Catarina (7 milhões).

E se o Brasil fosse apenas Paraná e Santa Catarina, quem teria vencido das eleições de 2022?

O aumento da abstenção no Chile, assim como no Brasil, beneficia os estratos politicamente mais engajados, ou seja, a classe média conservadora, que vive um momento, no mundo inteiro, de intenso engajamento nas redes sociais. Isso porque quase toda abstenção se concentra entre as camadas mais pobres, que moram longe das zonas eleitorais, e estão menos psicologicamente engajadas na luta política. Já a ultradireita, como vimos no Brasil, registra índices elevadíssimos de participação.

Inclusive esse é um dos pontos de vulnerabilidade das democracias contemporâneas, vítimas de algoritmos e modelos de negócios das big techs, que lucram cada vez mais com o extremismo reacionário de setores semi-instruídos da população. Semi-instruídos porque tem instrução suficiente para se verem como moralmente superiores às camadas mais pobres, mas ao mesmo tempo constituem o setor intelectualmente mais vulnerável às campanhas de fake news patrocinadas por oportunistas contratados pela elite financeira.

De qualquer forma, é uma alerta sim para o Brasil. O principal deles é a necessidade de se construir, no campo da esquerda, ferramentas eficazes de produção de inteligência.

Usar o exemplo de Chile para provar, sem nenhuma objetividade, algum tipo de wishful thinking de setores radicais ou ingênuos do campo progressista, seria indesculpável tolice.

Se a sociedade brasileira tivesse uma estratificação parecida com a do Chile, a nossa esquerda estaria provavelmente em situação bem pior que a chilena. Então é bom baixar a bola e evitar dar lição de moral em nossos vizinhos.

Além disso, foi uma eleição para assembleia constituinte, não para governar o país.

Será uma experiência bastante exótica, a propósito, ver a ultradireita chilena obrigada a discutir leis constituintes.

Talvez seja um aprendizado importante para os conservadores do país, e eles saiam desse processo menos reacionários. A Constituição brasileira foi criada por uma maioria de conservadores, e mesmo assim é considerada uma das mais progressistas e modernas do mundo!

No caso do Brasil, nosso desafio maior, repito, deveria ser montar e fortalecer nossas estruturas de inteligência, como think tanks e portais progressistas de notícias e análises, ou seja, jogar o jogo da política, com bravura e otimismo. O objetivo não é exatamente ganhar todas as batalhas do destino. Não foi isso que aprendemos com Darwin. O objetivo é construir uma sociedade mais evoluída, onde os momentos de alternância de poder não signifiquem retrocessos para pesquisa científica, educação, infraestrutura e gestão ambiental, como foi o caso do governo Bolsonaro.

Talvez devessemos evitar, da mesma forma, essa tendência meio neurótica, de ver “ondas reacionárias” em tudo, como se a história da América Latina não estivesse impregnada, desde sua fundação, por movimentos reacionários. Não tivemos séculos de escravidão? Não há onda reacionária nenhuma no Brasil ou na América Latina. É exatamente o contrário. Temos um continente asfixiado, desde seu nascimento, por elites reacionárias, que por sua vez vem sendo combatidas, também há muito tempo, por setores democráticos, populares e progressistas. E estes últimos apenas recentemente começaram a conquistar vitórias mais consistentes e duradouras.

Atualmente a esquerda governa a maioria da América do Sul. No Paraguai, vimos recentemente uma vitória da direita, mas também uma derrota da direita radical, inclusive com a prisão do Bolsonaro de lá.

Tombos pontuais fazem parte do jogo. No caso do Chile, outra coisa me parece óbvia: propor uma constituinte na atual conjuntura, em que a extrema direita global controla uma poderosíssima máquina de guerra digital, me parece ter sido um erro estratégico primário.

A experiência do Chile serve para a esquerda ingênua brasileira enterrar de vez a ideia maluca de também propor “constituintes”, ou mesmo “plebiscitos”, como se andou falando por aqui, de vez em quando, após as jornadas de junho.

Por outro lado, é bom evitar fatalismos desnecessários.

O peso da esquerda chilena nessa nova constituinte (ficou em segundo lugar, com quase um terço das cadeiras), somado ao fato dela ocupar a presidência da república, será suficiente para evitar grandes retrocessos constitucionais. A ultradireita deverá dificultar avanços em algumas agendas importantes, mas não tem número para extinguir direitos consolidados.

Felizmente, Lula está longe de cometer os mesmos erros de Boric. O presidente Lula está fazendo um bom governo. Seus índices de aprovação permanecem elevados. A economia está crescendo acima do previsto pelo mercado. A inflação e o câmbio seguem sob controle. Estruturas estratégicas do Estado estão sendo recuperadas e aperfeiçoadas, de maneira que o ano de 2023 deve fechar com uma estabilidade que será, por si só, uma vitória importante para o governo e para o país.

Miguel do Rosário: Miguel do Rosário é jornalista e editor do blog O Cafezinho. Nasceu em 1975, no Rio de Janeiro, onde vive e trabalha até hoje.
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