João Cândido e outros marinheiros da Marinha fizeram o Rio de Janeiro refém em revolta por castigos corporais
Ele foi um marinheiro negro brasileiro que liderou um motim sem precedentes contra os abusos cometidos por oficiais brancos e ajudou a acabar com o açoitamento na marinha do país – apenas para ser preso, perseguido e morrer na pobreza.
Durante cinco dias, em 1910, João Cândido Felisberto manteve o Rio de Janeiro refém das armas da frota brasileira, num levante conhecido como Revolta do Chicote.
Milhares de marinheiros negros, alguns dos quais haviam sido enviados para treinamento em Newcastle upon Tyne, juntaram-se ao motim, que ocorreu apenas 22 anos depois da abolição da escravidão no Brasil.
Os amotinados alcançaram o seu objetivo principal – o fim dos castigos corporais – mas a revolta foi rapidamente esmagada e centenas de pessoas foram presas.
Cândido, outrora apelidado de Almirante Negro, foi preso e expulso da Marinha. Uma vez livre, seus esforços para encontrar trabalho foram bloqueados pelos militares e ele foi forçado a ganhar a vida como estivador.
Agora, porém, foi lançado um novo esforço para alcançar uma medida de justiça póstuma. Julio Araujo, promotor federal no Rio, solicitou ao governo do Brasil que faça uma reparação pelo tratamento que sofreu.
“O Estado brasileiro desempenhou um papel ativo na vigilância, perseguição e controle da vida e do legado de João Cândido”, escreveu Araujo, que também pediu que os descendentes de Cândido recebessem uma compensação financeira.
Nascido em 1880, filho de pais escravizados, Cândido ingressou na Marinha brasileira aos 15 anos, navegando para portos da América do Sul e da Europa.
Na época, a força ainda era segregada, com marinheiros negros ou mestiços e oficiais em sua maioria brancos, que mantinham a disciplina com forte dose de castigos corporais. Outras marinhas aboliram o uso de espancamentos “disciplinares”, mas mesmo infrações menores na frota brasileira foram respondidas com espancamentos com chicotes, paus e cordas, às vezes “reforçados” com pregos.
“Os marinheiros também ficavam sobrecarregados de trabalho e tratados como escravos”, disse o historiador Álvaro Nascimento, professor da Universidade Federal Rural do Rio e autor de um livro sobre Cândido.
Mas os marinheiros brasileiros foram expostos a uma tensão de radicalismo transatlântico através do contato com os seus homólogos britânicos. Em 1909, o governo brasileiro comprou dois encouraçados de construtores navais britânicos e centenas de marinheiros foram enviados para Newcastle, onde passaram meses treinando – e também adquirindo novas ideias políticas.
“Eles estavam em contato com marinheiros ingleses, que tinham uma consciência social diferente. Ideias sobre greves, anarco-sindicalismo e luta dos trabalhadores começaram a circular entre os marinheiros brasileiros”, disse a historiadora Silvia Capanema, professora da Université Sorbonne Paris Nord, que também escreveu sobre Cândido.
Os marinheiros no Reino Unido organizaram “comitês rebeldes” e mantiveram contato com simpatizantes no Rio, então capital brasileira. Quando os dois navios de guerra retornaram ao Brasil no início de 1910, os dois grupos começaram a planejar como acabar com os castigos corporais para sempre.
O catalisador imediato da revolta ocorreu em 21 de novembro de 1910, quando a tripulação do couraçado Minas Gerais foi forçada a testemunhar a flagelação de um tripulante que recebeu 350 chicotadas.
Na noite seguinte, os amotinados tomaram o Minas Gerais e mais tarde o outro novo encouraçado, o São Paulo.
Seis oficiais e seis marinheiros foram mortos. Foram disparados projéteis de advertência, um deles matando duas crianças nas colinas acima do Rio (os marinheiros mais tarde reuniriam seus recursos para compensar as famílias das crianças).
Num telegrama ao então presidente Hermes da Fonseca, os amotinados exigiram o fim imediato dos castigos corporais; para garantir, também apontaram suas armas para o Palácio do Catete, que abrigava os escritórios de Fonseca.
A revolta terminou a 26 de novembro, depois de o presidente ter prometido proibir os castigos corporais e conceder anistia a todos os envolvidos. Mas apenas três dias depois, Fonseca autorizou a Marinha a demitir sumariamente qualquer militar que se mostrasse “refratário à disciplina”.
Uma nova revolta eclodiu no mês seguinte, mas foi rapidamente esmagada, com a prisão de centenas de pessoas. João Cândido não participou, mas foi identificado como líder e passou dois anos atrás das grades.
Ele nunca foi condenado, mas enfrentou anos de perseguição, disse Capanema. “A Marinha não permitiu que ele ficasse ou trabalhasse em outro lugar. Eles até retiveram seus documentos em algum momento, então ele não pôde se candidatar a nenhum novo emprego.” Cândido morreu em 1969 aos 89 anos.
Na petição que apresentou no mês passado, Araújo acusou a Marinha de “perseguição incessante” ao Almirante Negro. Ele dirigiu sua petição a uma comissão de anistia vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos, que no início deste mês emitiu o primeiro pedido de desculpas do Brasil pela tortura e perseguição aos povos indígenas durante a ditadura militar.
Araújo também pediu aos parlamentares que aprovassem um projeto de lei que reconheça João Cândido como Herói da Pátria. Depois de ser aprovado pelo Senado em 2021, o projeto está atualmente paralisado na Câmara, supostamente devido à resistência da Marinha.
Thiago André, ex-sargento da Marinha que deixou a força para apresentar o podcast de história negra História Preta, disse que embora muita coisa tenha mudado desde a revolta de Cândido, muitas coisas permaneceram as mesmas – como a desigualdade entre oficiais e pessoal de patente inferior.
Mas ele advertiu que tais questões não se restringiam às forças. “Quando alguém me diz: ‘A Marinha é muito racista’, eu respondo: ‘Isto é o Brasil. O Brasil é muito racista’”, disse André.
Publicado originalmente pelo The Guardian em 15/04/2024 – 11h30
Por Tiago Rogero – Rio de Janeiro