Medida pode acelerar fim do motor a combustão e servir de modelo global; no Brasil, setor automotivo já se movimenta rumo à eletrificação
A mobilidade na Europa está prestes a entrar em uma nova fase. De acordo com informações publicadas pelo jornal alemão Bild, a Comissão Europeia está finalizando um plano que pode transformar radicalmente o mercado automotivo do continente: a partir de 2030, empresas de aluguel de veículos e grandes corporações só poderão adquirir carros elétricos para compor suas frotas.
Se confirmada, a medida representará um passo decisivo rumo ao abandono dos motores a combustão e poderá influenciar diretamente cerca de 60% de todo o mercado de carros novos no bloco europeu, conforme afirmou um parlamentar ouvido pelo jornal. Gigantes do setor, como Sixt SE e Europcar Mobility Group SA, estariam entre as primeiras a sentir o impacto da nova regra. O objetivo: forçar uma transição mais rápida e contundente para tecnologias de emissão zero, contribuindo para o cumprimento das metas climáticas estabelecidas pela União Europeia.
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Embora a proposta ainda precise passar por análise e aprovação parlamentar, a expectativa é que ela seja formalmente apresentada ainda neste verão europeu. Procurada pela reportagem do Bild, a Comissão Europeia confirmou que está trabalhando em novas regulamentações voltadas para o setor automotivo, mas preferiu não adiantar detalhes antes da conclusão oficial do texto.
Atualmente, a meta já estabelecida pela UE é de banir completamente as vendas de veículos com motor a combustão até 2035. No entanto, o novo plano antecipa esse calendário especificamente para as frotas corporativas e locadoras, que exercem um papel estratégico na renovação da frota veicular e na popularização de novas tecnologias.
Brasil também acelera transição energética no transporte
Enquanto a Europa busca soluções regulatórias para acelerar a eletrificação do transporte, o Brasil começa a registrar avanços expressivos nesse mesmo caminho. Um estudo recente elaborado pela consultoria Boston Consulting Group (BCG), a pedido da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), prevê que as vendas de veículos elétricos e híbridos leves devem ultrapassar os modelos a combustão no Brasil até 2030.
A estimativa aponta para 1,5 milhão de unidades eletrificadas vendidas naquele ano, refletindo um crescimento sustentado no interesse por soluções sustentáveis e econômicas. Em 2023, os veículos híbridos e elétricos representavam apenas 4,3% do mercado nacional. Nos primeiros nove meses de 2024, esse índice já havia subido para 7,2% — um salto que indica uma curva de adoção acelerada.
E as projeções são ainda mais ambiciosas: dependendo de fatores como a adoção de novas tecnologias de motorização e o fortalecimento da cadeia de biocombustíveis, esse percentual pode chegar a mais de 90% em 2040. O estudo também aponta que, em segmentos como o transporte urbano, os ônibus elétricos poderão ultrapassar 50% de participação até 2035, enquanto os veículos pesados com novas tecnologias de propulsão podem atingir 60% do mercado até 2040.
Redução de emissões e criação de um novo ecossistema
A urgência da transição energética também se explica pelos números alarmantes das emissões de gases de efeito estufa. O setor automotivo é responsável, atualmente, por 242 milhões de toneladas de CO₂ por ano no Brasil, o equivalente a cerca de 13% das emissões totais do país. Se nada mudar, esse volume pode subir para 256 milhões de toneladas em 2040.
Por outro lado, o estudo aponta que, com a adoção de tecnologias limpas e o uso ampliado de etanol, biodiesel e outras fontes sustentáveis, seria possível cortar até 280 milhões de toneladas de CO₂ nas próximas duas décadas. E esse número pode chegar a 400 milhões de toneladas, caso políticas complementares como renovação de frota, inspeção veicular, valorização dos biocombustíveis e reciclagem de veículos sejam implementadas em conjunto.
— O estudo demonstra o papel que o setor automotivo está desempenhando no desenvolvimento de tecnologias rumo à descarbonização, oferecendo soluções que não apenas atendem às necessidades de mobilidade, mas que também reforçam o compromisso em promover uma significativa redução das emissões de gases de efeito estufa — declarou o presidente da Anfavea, Márcio de Lima Leite.
Segundo a entidade, todo esse avanço depende da criação de um ecossistema robusto que envolva desde a infraestrutura de recarga e distribuição de energia até o fortalecimento da cadeia de fornecedores e da produção de biocombustíveis no Brasil.
Caminhos que se cruzam
A proposta europeia de restringir compras corporativas de carros a modelos 100% elétricos pode servir como um termômetro global e impactar, direta ou indiretamente, países como o Brasil, onde muitas locadoras e montadoras atuam em escala internacional. Medidas semelhantes podem surgir no horizonte regulatório brasileiro, caso as metas de redução de emissões entrem definitivamente na agenda política nacional.
— Tenho certeza de que a sociedade vai exigir a redução de CO₂ do nosso setor — afirmou Luiz Carlos Moraes, vice-presidente da Anfavea, durante a apresentação do estudo em São Paulo.
O mundo está se movendo rapidamente — e, a partir de 2030, pode ser que ouvir o ronco de um motor a combustão, ao menos nas locadoras europeias, se torne uma lembrança distante.
Produção de carros elétricos pode dobrar número de empregos no Brasil até 2050
A transformação energética no setor automotivo brasileiro pode representar não apenas ganhos ambientais, mas também uma revolução no mercado de trabalho. Segundo uma pesquisa apoiada pela Organização das Nações Unidas (ONU), conduzida em parceria com professores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de São Paulo (USP), a produção de veículos elétricos no Brasil pode dobrar o número de empregos no país até 2050.
O levantamento, realizado pelo Conselho Internacional de Transporte Limpo (ICCT), identificou que o avanço da eletrificação automotiva, combinado à expansão da indústria de baterias automotivas, impulsionaria principalmente o setor de Serviços — que engloba funções técnicas, engenharia, logística, comércio e manutenção. Ou seja, não se trata apenas de criar empregos, mas de gerar postos de trabalho mais qualificados e com melhores salários.
Os autores do estudo também alertam para a necessidade de estratégias nacionais de longo prazo para que o Brasil aproveite esse potencial. Isso inclui desde apoio às exportações até a definição de metas ambiciosas de redução de emissões, capazes de atrair capital internacional e posicionar o país como protagonista da transição energética global.
Programa Mover e apoio às montadoras estrangeiras
Uma das iniciativas mais recentes nesse sentido é o Programa Mover, do governo federal, que busca estimular o desenvolvimento da mobilidade sustentável por meio de incentivos fiscais, linhas de crédito e desoneração tributária para empresas que investirem em tecnologias limpas.
Para Ricardo Bastos, presidente da Associação Brasileira do Veículo Elétrico (ABVE), o Brasil vive um momento estratégico. Segundo ele, o país reúne características únicas, como um mercado consumidor interessado em inovação e uma crescente rede de políticas públicas de incentivo.
— Temos programas como o Mover, a redução do imposto de importação, e agora começamos a ter fábricas importantes se instalando no Brasil, inclusive montadoras chinesas. A partir deste ano, a produção nacional de veículos elétricos ganha força, com novas unidades entrando em operação — afirmou Bastos.
A pesquisa também mostra que a renda gerada na economia dos elétricos é 85% maior em comparação ao modelo atual, baseado em veículos a combustão. Além disso, essa nova cadeia produtiva tende a ser mais inclusiva e melhor distribuída no que diz respeito aos salários, ampliando oportunidades para diferentes regiões e setores.
Cooperação Brasil-China e investimento bilionário
A relação bilateral entre Brasil e China tem sido fundamental para alavancar essa transição. Em abril deste ano, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, esteve em Shenzhen, onde se reuniu com executivos da BYD, uma das maiores fabricantes de veículos elétricos do mundo e que já atua no Brasil.
Durante a visita, o ministro discutiu investimentos em eletromobilidade e na produção de baterias para ajudar a estabilizar o sistema elétrico nacional — um passo essencial para dar suporte à crescente demanda por infraestrutura de recarga e armazenamento de energia.
— O Brasil quer liderar a transição energética global com parcerias estratégicas e intercâmbio de tecnologia. A cooperação com a China é essencial para atrair investimentos e acelerar esse processo, declarou Silveira.
A visita também fez parte da preparação para a viagem do presidente Lula à China, marcada para o mês de maio. No país asiático, Silveira cumpriu uma agenda intensa, que incluiu reuniões com a empresa de tecnologia Huawei, visitas à Usina Nuclear de Daya Bay e um encontro com a ex-presidente Dilma Rousseff, atual dirigente do Banco dos BRICS.
Montadoras chinesas de carros elétricos apostam no Brasil
A BYD, que desembarcou no Brasil em 2014, mantém hoje sete fábricas distribuídas entre São Paulo, Amazonas, Rio de Janeiro e Espírito Santo. Em 2023, a montadora deu um passo ousado: iniciou a construção de um complexo industrial em Camaçari, na Bahia, com investimentos estimados em mais de R$ 5 bilhões.
A primeira fase do projeto prevê a produção de 150 mil veículos elétricos por ano, com potencial de crescimento à medida que o mercado interno e externo se fortalece. O novo polo industrial deve atrair fornecedores, gerar empregos diretos e indiretos e consolidar a Bahia como um dos centros nacionais da eletromobilidade.
Os dados da pesquisa e os movimentos do setor mostram que a transição para veículos elétricos não é apenas uma tendência tecnológica, mas uma oportunidade concreta de desenvolvimento econômico e social. Com políticas públicas consistentes, parcerias internacionais e investimentos em infraestrutura, o Brasil pode não só descarbonizar seu transporte, mas também reconstruir sua indústria automotiva com base em inovação e sustentabilidade.
A chave, segundo especialistas, é agir agora — de forma coordenada entre governo, iniciativa privada e universidades — para garantir que o país não fique para trás numa corrida global que já está em curso. A mobilidade do futuro não é apenas silenciosa e sem emissões: ela pode ser também geradora de empregos, renda e inclusão.
Com informações de Bloomberg, Bild e Agência Brasil