Brasil vira página e se aproxima da China diante de ameaça tarifária dos EUA

Brasil encontra na China o caminho para driblar Trump / Reprodução

A aproximação com Pequim redefine o futuro econômico do Brasil, abrindo espaço para novos investimentos e parcerias no Sul Global


Diante de uma nova ofensiva comercial liderada pelo presidente norte-americano Donald Trump, o Brasil começa a redefinir seu posicionamento no cenário internacional. A promessa de uma tarifa de 50% sobre produtos brasileiros — uma decisão anunciada de forma inesperada e com motivações claramente políticas — coloca o país em uma encruzilhada. E, cada vez mais, a resposta parece vir do outro lado do mundo: a China.

A decisão de Trump, que seria aplicada a partir de 1º de agosto, pegou de surpresa diversos setores da economia brasileira, especialmente os que dependem fortemente do mercado norte-americano, como a indústria aeronáutica, automobilística, café e suco de laranja. A medida faz parte de um pacote maior conhecido como tarifas do “Dia da Libertação”, que também impõe alíquotas de 10% sobre importações de outros países, mas com o Brasil sendo o alvo de uma carga muito mais pesada.

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Especialistas destacam que a motivação por trás da tarifa não é econômica, mas sim política. Em carta divulgada após o anúncio, Trump vinculou a decisão à situação judicial do ex-presidente Jair Bolsonaro, acusando o Brasil de conduzir uma “caça às bruxas”. A declaração, aliada ao argumento equivocado de que os EUA têm um déficit comercial com o Brasil (sendo que os dados mostram o contrário — o Brasil tem déficit com os EUA de cerca de US$ 7,4 bilhões, mas superávit de US$ 31 bilhões com a China), reforça a percepção de que a decisão tem mais a ver com disputas internas do que com balanço comercial.

“A realidade é que, hoje, a relação entre Brasil e China é muito mais positiva e promissora do que a com os Estados Unidos”, afirma Tulio Cariello, diretor de conteúdo e pesquisa do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC). A declaração ecoa o sentimento crescente em Brasília, onde líderes vêm reforçando a aproximação com Pequim como uma forma de contrabalançar a pressão externa.

A aproximação entre os dois países ganhou novo fôlego em abril, durante a cúpula do BRICS no Rio de Janeiro, onde líderes de países em desenvolvimento manifestaram preocupação com a escalada protecionista liderada pelos EUA. A própria China, por meio de seu Ministério das Relações Exteriores, reagiu com firmeza à tarifa imposta por Trump, classificando-a como “inconsistente com as regras da OMC” e como uma tentativa de usar as tarifas como “ferramenta de coerção e intimidação”.

O impacto da decisão de Trump vai além do aspecto comercial. Para especialistas, ela coloca em xeque a reputação dos Estados Unidos como parceiro comercial confiável. “Ao usar tarifas para fins políticos, Trump arrisca manchar a imagem dos EUA como um parceiro estável. Isso faz com que a China apareça como uma alternativa mais previsível”, afirma Mauricio Weiss, professor de economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

A China como porta de entrada para a diversificação econômica

A aproximação com a China não é nova, mas ganha novo impulso diante do cenário geopolítico atual. Desde 2009, a China é o principal destino das exportações brasileiras, superando os EUA. Os investimentos chineses no Brasil já ultrapassam US$ 73 bilhões desde 2007, concentrados principalmente em setores estratégicos como energia, infraestrutura, agronegócio e tecnologia.

Um dos grandes símbolos dessa presença crescente é a BYD, montadora chinesa de veículos elétricos. A empresa já domina 70% do mercado brasileiro de carros elétricos e, recentemente, adquiriu uma fábrica da Ford no estado da Bahia, transformando-a em uma de suas principais unidades de produção fora da Ásia.

Outro projeto emblemático é o corredor ferroviário bioceânico, que visa integrar o Brasil ao porto de Chancay, no Peru — uma infraestrutura desenvolvida com investimento chinês e que deve receber mais de US$ 3,5 bilhões em investimentos nos próximos anos. O projeto é parte de uma estratégia mais ampla da China de fortalecer sua influência na América Latina por meio de conexões logísticas e comerciais.

No plano fiscal, o Brasil também está se movimentando para facilitar essa integração. Na última segunda-feira (data da publicação original), o Ministério da Fazenda anunciou a criação de um escritório de consultoria tributária em Pequim — uma iniciativa que visa aprofundar a cooperação fiscal e aduaneira entre os dois países. O Brasil possui apenas outros quatro escritórios semelhantes no mundo: três na América do Sul e um nos Estados Unidos.

O Brasil precisa da China, e vice-versa

Durante visita oficial à China em maio, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reafirmou o compromisso com a parceria bilateral. “A China precisa do Brasil e o Brasil precisa da China. Juntos, podemos fazer com que o Sul Global seja respeitado no mundo como nunca antes”, declarou.

Apesar de reconhecerem que os dois países têm perfis de consumo diferentes — o que inviabiliza uma substituição direta das exportações atuais para os EUA por vendas à China —, especialistas destacam que os investimentos chineses podem abrir espaço para uma transformação estrutural da economia brasileira.

“O Brasil não vai exportar produtos manufaturados para a China, isso não faz muito sentido. Mas os investimentos chineses podem ajudar o país a aumentar sua capacidade industrial e diversificar sua economia”, explica Livio Ribeiro, pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas.

A China, por sua vez, busca acesso a recursos naturais e matérias-primas essenciais para sua economia, como petróleo, minério de ferro, cobre, lítio e produtos agrícolas. O Brasil, com suas vastas reservas, surge como um parceiro estratégico nesse contexto.

Com o protecionismo norte-americano batendo à porta, o Brasil parece apostar cada vez mais em uma nova rota: a da cooperação Sul-Sul, com a China no centro. E, ao que tudo indica, essa ponte só tende a se fortalecer nos próximos anos.

Empresários brasileiros usam ameaça chinesa como trunfo em negociações com os EUA

Do agronegócio à tecnologia, o Brasil vê na parceria com a China uma saída para escapar das pressões protecionistas americanas / Reprodução

Enquanto o governo brasileiro busca minimizar os impactos da tarifa de 50% anunciada por Donald Trump, o setor privado adota uma estratégia ousada: usar a crescente influência da China como argumento de peso nas conversas com autoridades norte-americanas. A tática é clara: mostrar que afastar o Brasil dos EUA pode acabar aproximando o país asiático ainda mais da América Latina.

Empresários que participam das negociações com o governo federal e viajam aos Estados Unidos para dialogar com autoridades americanas têm levado uma mensagem consistente: a imposição de tarifas pesadas pode ter o efeito contrário ao desejado. Ao invés de afastar o Brasil de posições “antiamericanas”, como classifica o discurso de Trump, a medida pode consolidar uma aliança estratégica entre Brasília e Pequim.

A abordagem parte de uma percepção compartilhada entre diversos setores do empresariado brasileiro: as tarifas anunciadas por Trump têm um caráter nitidamente político e geopolítico, e não econômico. A própria carta em que o presidente justificou a medida reforça essa leitura, ao citar diretamente o ex-presidente Jair Bolsonaro e acusar o Brasil de conduzir uma “caça às bruxas”. Em outras declarações públicas, Trump já havia ameaçado impor tarifas severas a países do BRICS ou que adotassem posturas consideradas “antiamericanas”.

“A estratégia é mostrar aos americanos que, se o objetivo é conter a influência chinesa na América Latina, penalizar o Brasil economicamente pode ser contraproducente”, explica um representante do setor mineral que participa das negociações com autoridades norte-americanas.

Minerais críticos: onde o Brasil pode ser peça-chave

Um dos campos em que essa estratégia ganha corpo é no setor de minerais críticos. Na última quarta-feira (23), autoridades brasileiras do setor mineral se reuniram com representantes do governo americano para discutir uma possível parceria na área. A iniciativa partiu dos próprios Estados Unidos, que buscam alternativas para reduzir sua dependência da China nesse mercado estratégico.

Hoje, Pequim detém mais de 80% da capacidade global de produção de células de bateria e concentra mais da metade do processamento mundial de lítio e cobalto, segundo dados da Agência Internacional de Energia. Para os americanos, que veem o setor como fundamental para sua transição energética e segurança nacional, essa concentração representa um risco estratégico.

“O Brasil tem recursos naturais que os Estados Unidos precisam. Nossa proposta é mostrar que podemos ser um parceiro confiável nesse setor, mas isso depende também do tratamento que recebermos”, afirma um negociador envolvido nas discussões.

Agronegócio também entra na jogada

No setor agropecuário, que responde por três dos dez produtos mais exportados pelo Brasil aos EUA, a estratégia segue o mesmo caminho. O agronegócio brasileiro tem intensificado como nunca sua aproximação com a China, que se consolidou como o principal destino das exportações do setor.

A visita oficial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Pequim, em maio, resultou na assinatura de 20 acordos bilaterais, sendo seis deles diretamente ligados ao setor agropecuário. Mas a iniciativa não se limitou ao âmbito governamental. A Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes) e a ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal) deram um passo adiante ao inaugurar um escritório conjunto em Pequim, sinalizando o compromisso do setor privado com a parceria estratégica.

“Não estamos apenas exportando produtos, estamos construindo relações de longo prazo. E isso é algo que os americanos precisam entender”, destaca um dirigente de uma das associações.

O desafio de acessar a Casa Branca

Apesar da estratégia considerada promissora por especialistas, há obstáculos consideráveis. Nem o setor privado nem os senadores brasileiros têm acesso direto à Casa Branca, o que limita o alcance das negociações. A maioria das conversas acontece por meio de canais indiretos, como embaixadas, organismos internacionais e representações comerciais.

Mesmo assim, empresários brasileiros insistem na tese de que mostrar aos americanos o risco de perder influência na América Latina pode ser mais eficaz do que argumentos econômicos tradicionais. “Eles precisam entender que o mundo mudou. E o Brasil tem opções”, conclui um negociador que atua há anos nos Estados Unidos.

Com o prazo para a entrada em vigor da tarifa se aproximando, os bastidores das negociações prometem movimentar ainda mais o cenário político e econômico brasileiro. E, cada vez mais, a China aparece como a peça-chave nesse jogo de interesses globais.

Com informações de Al Jazeera e CNN*

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