Depois da crise nos preços dos ovos, agora é a vez da carne bovina pesar no bolso dos americanos. O custo da carne moída atinge níveis recordes e revela um sistema alimentar vulnerável a choques climáticos, decisões políticas e gargalos na produção
Por mais que a inflação nos alimentos nos Estados Unidos tenha dado sinais de alívio nos últimos 12 meses — com alta acumulada de apenas 2,7% —, os preços nas gôndolas não contam toda a história. A carne moída, por exemplo, teve um aumento expressivo, contrariando a média do setor e reacendendo o debate sobre os fatores que tornam a cadeia alimentar tão volátil.
“Os preços dos ovos têm passado por uma montanha-russa. E agora, com a carne bovina, estamos vendo um aumento de preço bastante significativo”, afirma David Ortega, economista de alimentos e professor da Universidade Estadual de Michigan.
A fala de Ortega resume bem a sequência de choques que os consumidores vêm enfrentando. No início deste ano, os ovos chegaram a dobrar de preço de um mês para o outro, impulsionados por surtos de gripe aviária que infectaram mais de 23 milhões de aves. Em abril de 2024, a dúzia chegou a custar US$ 6,23, antes de recuar para US$ 3,78 em julho, após a contenção da doença.
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Agora, a preocupação se volta para outro item essencial da dieta americana: a carne moída, base para hambúrgueres, tacos, molhos e dezenas de pratos populares. Mas o que está por trás desse novo salto de preços?
Uma cadeia produtiva no limite
O ponto de partida está nos números do rebanho bovino. Segundo a American Farmers Bureau Federation (AFBF), os Estados Unidos registraram, no início de 2025, o menor número de cabeças de gado em quase 75 anos: pouco menos de 87 milhões de animais, somando bois e bezerros.
Esse encolhimento histórico da produção reflete uma série de decisões difíceis tomadas nos últimos anos por pecuaristas em todo o país. Com o custo da alimentação animal em alta e margens de lucro cada vez mais apertadas, muitos optaram por vender seus animais ao abate, inclusive as fêmeas, que seriam usadas para reprodução.
“Os altos preços do gado, combinados com a imprevisibilidade dos preços e da lucratividade futuros, podem levar os fazendeiros a continuar comercializando uma porcentagem maior de fêmeas para corte em vez de reprodução”, explicou o economista Bernt Nelson, da AFBF.
Na prática, isso significa menos nascimentos, menos reposição e uma oferta de carne ainda mais limitada nos meses seguintes.
Clima extremo e crise silenciosa
Entre os fatores que mais pressionam a pecuária está a instabilidade climática, agravada pelas mudanças climáticas globais. Ortega ressalta que os efeitos não são imediatos, mas se acumulam ao longo do tempo e criam distorções persistentes no mercado.
“Um dos principais fatores tem sido os efeitos das mudanças climáticas na produção de carne bovina nos EUA. Isso não faz com que os preços subam da noite para o dia, então há um atraso considerável envolvido”, aponta.
Em 2022, por exemplo, uma seca severa atingiu os estados da região das Grandes Planícies, forçando muitas fazendas a reduzirem seus rebanhos de forma abrupta. A consequência foi o abate precoce de animais que seriam usados na reprodução — um movimento que ainda hoje afeta a capacidade de produção nacional.
“O que a seca faz é aumentar o custo da ração para os produtores”, explica Ortega. E quando o custo para alimentar o gado ultrapassa a margem de lucro, o produtor tem pouca escolha a não ser vender o que resta — muitas vezes de forma não planejada.
Demanda estável, oferta em queda
Mesmo com a escassez, a demanda por carne bovina nos EUA continua elevada — especialmente por carne moída. Além de ser um produto com forte apelo cultural e acessível ao paladar médio da população, ele costuma ser mais barato que cortes nobres e se encaixa em centenas de receitas caseiras.
“Se você juntar isso à forte demanda por carne bovina, e tem havido uma forte demanda em particular por carne moída, porque é um produto muito familiar aos consumidores, isso realmente coloca muita pressão sobre os preços”, diz Ortega.
Essa equação simples — menos oferta e consumo estável — ajuda a explicar por que a carne moída subiu tanto, mesmo enquanto outros itens alimentícios registraram quedas ou estabilidade.
Tarifas e incertezas no horizonte
Como se os fatores naturais e produtivos não fossem suficientes, a política comercial entrou com força na equação nos últimos meses. Apesar de ser um dos maiores produtores globais de carne, os EUA ainda dependem da importação de cortes mais magros, especialmente para composição de blends usados em hambúrgueres e carne moída.
Esses cortes vêm, em boa parte, de países como Brasil e Austrália. São misturados com carne bovina norte-americana, geralmente mais gordurosa, para atingir o teor ideal de gordura exigido pela indústria.
Mas esse fluxo internacional está ameaçado.
O presidente Donald Trump ameaçou recentemente impor uma tarifa de 50% sobre os produtos brasileiros, em resposta ao que classificou como uma “caça às bruxas” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro. Ainda que a medida não tenha entrado oficialmente em vigor, o simples anúncio já foi suficiente para gerar tensões no mercado e incertezas quanto ao fornecimento futuro.
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“Importamos muitos cortes magros de países como [Austrália] e Brasil, para podermos misturá-los com nossa carne bovina, que tende a ser mais gorda (…). Se essas medidas entrarem em vigor, ou mesmo tarifas mais altas [forem implementadas], acredito que veremos um aumento considerável em itens como carne moída e carne de hambúrguer”, alerta Ortega.
Um retrato das fragilidades do sistema alimentar
O que a atual crise da carne mostra, em última instância, é como o sistema agroalimentar moderno pode ser impactado por uma série de variáveis que se entrelaçam: clima, saúde animal, decisões políticas e estrutura produtiva.
Mesmo um país com vastas extensões de terra e tradição pecuarista como os Estados Unidos não está imune às consequências do desequilíbrio climático ou das disputas comerciais internacionais.
Para os consumidores, resta acompanhar os movimentos do mercado — e se preparar para dias em que um hambúrguer poderá custar mais do que o habitual. Para os produtores, o desafio é manter a operação viável em meio a um cenário cada vez mais imprevisível.
EUA aumentam importações do Brasil, mas guerra comercial com Trump ameaça estabilidade dos preços
O Brasil, atualmente o maior exportador mundial de carne bovina, vem ganhando espaço no mercado norte-americano em meio à escalada das tensões comerciais entre os Estados Unidos e a China. Com a intensificação desse conflito, as exportações brasileiras para os EUA cresceram 20% em maio, e os volumes importados por Washington já estão quase o dobro do que eram em junho de 2024, de acordo com dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA).
Esse aumento na presença da carne brasileira no mercado americano ocorreu em um momento crítico: os Estados Unidos viram suas importações de carne bovina subirem 10% no último ano, uma tendência que tornou o país mais dependente de fornecedores estrangeiros justamente quando suas próprias reservas internas atingem mínimos históricos.
Entre os principais parceiros comerciais dos EUA está o Canadá, líder em fornecimento de cortes magros, essenciais para a produção de carne moída. Mas mesmo essa relação está sob ameaça. O presidente Donald Trump ameaçou aplicar uma tarifa de 35% sobre todos os produtos canadenses a partir de 1º de agosto, o que ampliaria ainda mais os riscos para o abastecimento de carne no país.
“Há uma tremenda incerteza na frente política e comercial”, resume David Ortega, economista de alimentos da Universidade Estadual de Michigan. “Isso contribui diretamente para a alta dos preços.”
Um mercado vulnerável a choques
A cadeia global de fornecimento de carne bovina é delicada. Pequenas rupturas em qualquer elo — seja por questões climáticas, sanitárias ou políticas — geram impactos desproporcionais sobre os preços e sobre o planejamento dos produtores.
É o que explica Bernt Nelson, economista da American Farmers Bureau Federation (AFBF):
“Guerras comerciais induzidas por tarifas estão semeando incerteza tanto para pecuaristas quanto para consumidores. Isso tem o potencial de impactar a demanda por carne bovina, e mesmo pequenas mudanças na demanda, com uma oferta tão restrita, podem ter um grande impacto nos preços.”
Com o estoque de gado nos EUA no nível mais baixo em quase 75 anos, os analistas alertam que qualquer desvio na rota de importações, seja por conta de tarifas impostas ao Brasil ou ao Canadá, poderá desestabilizar ainda mais um mercado já sob pressão.
Quando os preços devem começar a recuar?
Com a carne moída ultrapassando recordes de preço e afetando diretamente refeições cotidianas como hambúrgueres, tacos e molhos, a pergunta inevitável é: quando os consumidores americanos verão algum alívio?
A resposta, segundo Ortega, não é simples.
“Nossa pesquisa mostra que pode levar cerca de quatro anos após uma seca significativa para que os preços ao consumidor comecem a se estabilizar”, explica o economista.
Ao contrário de episódios como a alta no preço dos ovos, que se mostrou passageira após surtos de gripe aviária e a subsequente estabilização do mercado, o caso da carne envolve uma rede mais complexa de fatores. Além das condições climáticas que dificultaram a alimentação dos rebanhos — como a severa seca nas Grandes Planícies em 2022 —, há também interferências políticas, custos estruturais e gargalos produtivos que tornam a situação mais imprevisível.
Correções importantes
Nesta quarta-feira (24), foi feita uma correção na citação atribuída a Ortega. A versão original da matéria publicada pela imprensa americana trazia dois erros: primeiro, a frase correta do economista é “O que essa [seca] faz é aumentar o custo da ração para os produtores”, e não “apagar a ração”; e segundo, o especialista afirmou que “pode levar cerca de quatro anos após uma seca significativa para que os preços ao consumidor comecem a se estabilizar”, e não “quatro anos para que os preços comecem a se estabilizar”, como veiculado.
Também foi corrigido um erro de identificação: a Austrália, e não a África do Sul, é um dos principais exportadores de aparas magras de carne bovina utilizadas nos Estados Unidos.
O que está em jogo?
À medida que o Brasil ocupa um espaço cada vez mais estratégico na balança comercial de alimentos dos EUA, cresce a tensão sobre possíveis sanções ou medidas protecionistas. Uma tarifa de 50%, como a prometida por Trump contra o Brasil, poderia dificultar o acesso a carne bovina magra, essencial para as misturas da carne moída consumida pelos americanos.
Nesse cenário, até a política interna brasileira entra no radar geopolítico: segundo o próprio Trump, sua ameaça tarifária é uma retaliação à suposta “caça às bruxas” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, acusado de tentar se manter no poder mesmo após a derrota eleitoral em 2022.
Com tantas variáveis em jogo — clima extremo, escassez de rebanho, instabilidade política, tarifas e dependência de importações —, o prato feito americano mais popular do país está longe de encontrar um preço estável.
Por ora, o consumidor vai continuar pagando mais por menos — e sem previsão de quando a conta vai deixar de pesar.