Um editorial do jornal britânico denuncia a cumplicidade global e cobra ações que vão além de discursos diplomáticos que soam vazios diante do horror
Em um editorial incisivo e carregado de indignação humanitária, o jornal britânico The Guardian lançou um forte alerta sobre a escalada da fome em Gaza, denunciando que a comunidade internacional, especialmente os aliados ocidentais de Israel, está se tornando cúmplice de um processo de destruição sistemática do povo palestino. Publicado nesta semana, o texto não poupa críticas e exige mais do que declarações simbólicas: exige ação concreta.
O editorial destaca que julho foi um dos meses mais mortíferos do conflito, com uma pessoa sendo morta a cada 12 minutos por ataques israelenses. Dados das Nações Unidas revelam que mais de mil palestinos perderam a vida apenas ao tentar acessar alimentos — muitos morreram em tumultos ao redor de centros de distribuição de ajuda. Por trás dessas imagens trágicas, há um cenário ainda mais sombrio: o uso calculado da fome como arma de guerra.
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“Minuciosamente engenheirado, rigorosamente monitorado, precisamente projetado”, descreve o professor Alex de Waal, especialista em crises humanitárias, citado no texto. Essa caracterização não é apenas retórica: é uma acusação direta de que a privação em Gaza não é um efeito colateral da guerra, mas parte de uma estratégia deliberada. Mais de 100 organizações de ajuda já alertaram que a fome se espalha com velocidade alarmante. O Ministério da Saúde de Gaza informou que, em um único dia — terça-feira —, pelo menos dez pessoas morreram de inanição e desnutrição extrema.
O editorial pinta um quadro desolador: pais assistindo seus filhos definhar, adultos desmaiando nas ruas por falta de comida, famílias forçadas a decidir qual criança comerá naquele dia. A fome não mata apenas corpos — ela destrói mentes, rompe laços familiares e corrói a estrutura social. Pessoas desesperadas são levadas a atos de desespero, como roubar comida de outras vítimas da mesma tragédia. E mesmo quando há tentativas de ajuda, a situação se torna inviável: muitas ONGs já esgotaram seus estoques, e outras afirmam que a desintegração social tornou a distribuição de ajuda um risco mortal para equipes e beneficiários.
O governo israelense, segundo o editorial, tenta desviar a responsabilidade, culpando o Hamas por saques a comboios de ajuda. Mas o jornal rebate com dureza: “Este é um governo que armou uma gangue criminosa acusada de roubar ajuda humanitária”. A ironia, segundo o texto, é cruel e reveladora.
O cerne do argumento do The Guardian está em uma linha clara do direito internacional: a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio proíbe expressamente “infligir deliberadamente a um grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição, total ou parcial”. Mesmo que uma mínima quantidade de ajuda mantenha parte da população viva, o processo de destruição coletiva está em curso. “Destruir um povo não exige matar todos. Basta destruir suas condições de existência”, afirma o editorial.
Diante disso, as condenações diplomáticas soam vazias. Na segunda-feira, o Reino Unido e outros 27 países emitiram uma declaração dura, acusando Israel de negar aos palestinos “a dignidade humana”. A resposta do embaixador dos EUA em Israel, Mike Huckabee, foi de desprezo: chamou a declaração de “nojenta”. Mas, para o jornal, o que importa não é o tom das palavras, mas o peso das ações — ou a falta delas.
O The Guardian reconhece que o Reino Unido tomou algumas medidas: impôs sanções a ministros de extrema-direita do governo israelense, retomou o financiamento à agência da ONU para refugiados palestinos (UNRWA) e suspendeu parte das exportações de armas. Contudo, o editorial é claro: essas ações vieram tarde demais e são insuficientes. A União Europeia, maior parceiro comercial de Israel, ainda não conseguiu unificar uma posição. Sua chefe de política externa, Kaja Kallas, afirmou que “todas as opções estão sobre a mesa”, mas até agora nenhuma foi colocada em prática.
O jornal conclui com um chamado urgente: diante da destruição sistemática da vida palestina em Gaza, os países ocidentais precisam responder com medidas sistemáticas, abrangentes e concretas. Sanções econômicas, embargo total de armas, suspensão de acordos comerciais preferenciais — tudo isso precisa ser colocado em prática. O reconhecimento do Estado palestino, embora importante, não é o ponto central. O que está em jogo é a capacidade do mundo de impedir um genocídio enquanto ele acontece.
“Se não agora, quando?”, pergunta o editorial. “O que mais será necessário para convencê-los?” E deixa um aviso que ecoa além das fronteiras de Gaza: esta é, acima de tudo, uma tragédia palestina. Mas se os Estados continuarem fechando os olhos diante da violação escancarada do direito humanitário internacional, as consequências serão sentidas muito além do Oriente Médio. A história, diz o texto, não perguntará se esses governos fizeram algo. Perguntará se fizeram tudo o que podiam.
Enquanto isso, em Gaza, a fome segue seu curso — silenciosa, cruel e planejada.
Chefe da OMS denuncia: fome em Gaza é “causada pelo homem” e exige fim imediato do bloqueio
Em um alerta contundente que ecoa em todo o cenário humanitário internacional, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou nesta quarta-feira que o que se vive em Gaza não pode ser descrito de outra forma senão como “fome em massa — e é uma causa humana”. As palavras, carregadas de urgência e indignação, vêm em meio a um agravamento sem precedentes da crise alimentar na Faixa de Gaza, onde mais de 100 organizações humanitárias lançaram um apelo conjunto para que Israel levante o bloqueio que impede a entrada de ajuda vital.
O cenário descrito por Tedros é de colapso total. Enquanto toneladas de alimentos, água potável, medicamentos e combustível acumulam poeira em armazéns próximos à fronteira, milhares de palestinos morrem de inanição. Apenas nas últimas 24 horas, ao menos 10 pessoas faleceram por desnutrição extrema, elevando para 111 o número de mortes diretamente ligadas à fome desde o início da escalada — 80 delas crianças. Cada nome, cada número, carrega consigo uma história de abandono, de dor silenciosa, de um corpo que se desfaz por falta do mais básico: comida.
Uma carta assinada por 109 organizações, entre elas Médicos Sem Fronteiras, Oxfam Internacional e Anistia Internacional, denuncia que o governo israelense tem impedido que ajuda humanitária seja distribuída de forma eficaz. “Nos arredores de Gaza, em armazéns – e até mesmo dentro da própria Gaza – toneladas de alimentos, água potável, suprimentos médicos, itens de abrigo e combustível permanecem intocados, com organizações humanitárias impedidas de acessá-los ou entregá-los”, escreveram coletivamente. “As restrições, os atrasos e a fragmentação impostas pelo governo de Israel sob seu cerco total geraram caos, fome e morte.”
Um trecho da carta toca fundo: um trabalhador humanitário relatou que crianças em Gaza dizem aos pais que querem “ir para o céu, porque pelo menos o céu tem comida”. Uma frase que, por sua simplicidade trágica, resume o desespero de uma geração que cresce sob escombros, sem esperança, sem futuro, sem almoço.
A distribuição diária de ajuda, atualmente, equivale a cerca de 28 caminhões. Antes da guerra, eram cerca de 500 entrando diariamente para sustentar uma população de mais de 2 milhões de pessoas. A diferença não é apenas numérica — é a diferença entre sobreviver e resistir, entre manter a dignidade e ser reduzido a lutar por migalhas.
Enquanto isso, a violência segue seu curso implacável. Em julho, Israel matou uma pessoa a cada 12 minutos, segundo análise de dados da ONU, tornando o mês um dos mais letais do conflito. Na quarta-feira, ataques israelenses mataram pelo menos 21 pessoas, entre elas mulheres e crianças. Entre as vítimas estavam dois jornalistas palestinos: Tamer al-Za’anin e Walaa al-Jabari, grávida de sete meses. Com isso, o número de profissionais da imprensa mortos em Gaza desde outubro de 2023 chegou a 229 — um dos maiores tributos pagos por quem tenta mostrar ao mundo o que está acontecendo.
A repressão vai além dos bombardeios. O Dr. Marwan al-Hams, diretor interino dos hospitais de campanha de Gaza, continua detido pelas forças israelenses, com sua detenção prorrogada até o final do mês. Ferido por um tiro na perna durante a prisão, ele representa o que muitos veem como um ataque direto à infraestrutura médica e humanitária do território.
Paralelamente, a forma como a ajuda é distribuída tem gerado controvérsia. A Fundação Humanitária de Gaza (GHF), apoiada pelos EUA e por Israel, passou a controlar pontos de distribuição de alimentos. No entanto, funcionários da ONU já classificaram esses locais como “armadilhas mortais”, onde civis são alvejados enquanto aguardam um saco de farinha ou um litro de óleo. O Guardian já havia reportado que centenas morreram em operações caóticas em torno desses pontos, onde a promessa de alimento se transforma em zona de morte.
A GHF justifica seu modelo afirmando que evita que o Hamas roube ajuda — uma alegação repetida pelo governo israelense. Mas organizações humanitárias independentes rejeitam essa narrativa, argumentando que o verdadeiro crime aqui não é o saque, mas o uso estratégico da fome como arma de guerra. Ao controlar, restringir e manipular o acesso à comida, transforma-se a sobrevivência em moeda de troca. E isso, segundo especialistas em direito internacional, pode constituir crime de guerra.
A ONU já registrou que mais de 1.000 palestinos foram mortos ao tentar acessar pontos de distribuição de ajuda desde o final de maio. Israel nega sistematicamente que bloqueie ajuda, afirmando que “considera a transferência de ajuda humanitária para Gaza uma questão de extrema importância” e que trabalha para facilitar sua entrada. Contudo, os fatos no terreno contam outra história: caminhões são retidos, inspecionados por horas, ou simplesmente barrados. A burocracia se tornou arma.
Enquanto isso, o mais alto funcionário humanitário da ONU em Gaza teve seu visto cancelado, e instalações da própria OMS em Deir al-Balah foram atacadas. A mensagem é clara: até a ajuda tem preço — e esse preço é a vida.
Apesar da escalada, há sinais de que o cenário diplomático pode estar se movendo. O enviado dos EUA para o Oriente Médio, Steve Witkoff, viajou para Roma nesta semana para encontros com o conselheiro principal do governo israelense, Ron Dermer, e representantes palestinos. Se houver avanço, Witkoff seguirá para Doha, onde negociações indiretas entre Israel e Hamas estão em andamento. Embora ainda haja obstáculos, as partes parecem ter superado algumas das principais divergências sobre um possível cessar-fogo.
O impulso por uma trégua ganhou força após a declaração de 28 países — entre eles o Reino Unido e outros aliados de Israel — que, em 21 de julho, exigiram o fim da guerra e condenaram a “negação de assistência humanitária essencial” como “inaceitável”. O comunicado também criticou a violência de colonos na Cisjordânia e os planos israelenses de transferir palestinos para uma “cidade humanitária”, descrita por um ex-primeiro-ministro israelense como um “campo de concentração” e comparada a uma limpeza étnica.
Apesar do tom forte, a declaração não incluiu ameaças de sanções ou medidas concretas. E é aí que, para muitos, o discurso ainda falha. “Acordos fragmentados e gestos simbólicos, como lançamentos aéreos ou acordos de ajuda falhos, servem como cortina de fumaça para a inação”, adverte a carta das ONGs. “Não podem substituir as obrigações legais e morais dos Estados de proteger os civis palestinos e garantir acesso significativo em larga escala.”
Mais de 59.000 pessoas já foram mortas em Gaza desde o início da ofensiva israelense, desencadeada após o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023, que matou cerca de 1.200 israelenses. Mas, como lembram os editoriais e relatórios humanitários, a resposta militar não pode justificar a punição coletiva de um povo inteiro.
A fome em Gaza não é um acidente. É uma escolha. E enquanto o mundo debate, crianças morrem chamando o céu de lugar onde há comida. A pergunta que fica, cada vez mais urgente, é: até quando vamos aceitar que a dignidade humana seja negociável?
Com informações de The Guardian*