Gaza agoniza de fome sob novos ataques israelenses

Crianças desnutridas, hospitais sem recursos e a diplomacia fracassada marcam a face mais cruel da crise / Reprodução

Famílias se desfazem pela fome enquanto Israel mantém o bloqueio e a ajuda humanitária é barrada na Faixa de Gaza


A situação em Gaza se torna cada vez mais dramática. O número de palestinos que morreram de fome no enclave já ultrapassou 115, segundo dados divulgados na última quinta-feira (24) pelo Ministério da Saúde local. A maior parte dessas mortes ocorreu nas últimas semanas, em meio ao agravamento da crise humanitária provocada pelo bloqueio israelense ao território.

Além disso, pelo menos 62 pessoas foram mortas em novos ataques aéreos israelenses, incluindo 19 que estavam em busca de assistência humanitária, conforme informaram fontes hospitalares à Al Jazeera. O cenário de desespero cresce com a escassez de alimentos, água e cuidados médicos, enquanto a comunidade internacional assiste, impotente, ao colapso das condições de vida na região.

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Desde o início da ofensiva israelense em outubro de 2023, o bloqueio total imposto por Israel tem dificultado a entrada de ajuda humanitária. Apenas uma pequena quantidade de suprimentos conseguiu entrar em Gaza desde o final de maio, o que agravou ainda mais a crise alimentar. Segundo a agência das Nações Unidas para refugiados palestinos (UNRWA), famílias estão literalmente se desintegrando diante da falta de alimentos e cuidados básicos.

“Os pais estão com muita fome para cuidar dos filhos”, escreveu Philippe Lazzarini, diretor da UNRWA, em uma postagem no X (antigo Twitter). Ele destacou que muitos que chegam às clínicas da agência não têm energia nem condições mínimas para seguir orientações médicas simples.

A agência humanitária da ONU, OCHA, também alertou que Israel tem dificultado a verificação e distribuição da ajuda estocada em centros de distribuição, o que contribui para agravar a situação.

Reportando diretamente da Cidade de Gaza, o correspondente da Al Jazeera, Hani Mahmoud, descreveu o cenário como “desolador”. “Fome forçada, desidratação forçada e doenças estão afetando a Faixa de Gaza. As pessoas estão morrendo de desnutrição, e o sistema imunológico delas está tão debilitado que não conseguem lutar contra as doenças que se espalham”, afirmou.

Com o colapso das condições humanitárias, a indignação internacional também cresce. Mais de 60 membros do Parlamento Europeu (MEPs) assinaram uma carta pedindo uma reunião de emergência da União Europeia para discutir medidas contra Israel. A parlamentar irlandesa Lynn Boylan criticou o que chamou de “padrão duplo” da elite europeia em relação às vidas palestinas.

“Claramente, as vidas palestinas não são vistas pela UE como equivalentes às vidas ucranianas”, disse Boylan. “Há um efeito assustador: se você ousa falar contra Israel ou denunciar crimes de guerra, sofre ataques imediatos”, completou.

Na quarta-feira, 28 países europeus condenaram o bloqueio de ajuda humanitária a Gaza e pediram o fim imediato dos conflitos. Na quinta-feira, o primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, anunciou que conversaria com seus colegas da Alemanha e da França para discutir formas urgentes de interromper o que ele chamou de “matança” e garantir que a população tenha acesso à comida.

Negociações de paz fracassam novamente

Enquanto isso, as tentativas de alcançar um cessar-fogo também seguem sem sucesso. O enviado especial dos Estados Unidos, Steve Witkoff, anunciou que sua equipe estava deixando as negociações no Catar, após Israel ter retirado sua delegação do processo. Em comunicado, Witkoff culpou o Hamas por não demonstrar interesse em chegar a um acordo.

“Agora consideraremos opções alternativas para trazer os reféns para casa e tentar criar um ambiente mais estável para o povo de Gaza”, disse, sem dar detalhes sobre quais seriam essas alternativas.

Por sua vez, o Hamas negou a acusação e afirmou estar comprometido com a continuidade das negociações. Em nota divulgada na noite de quinta-feira, o grupo ressaltou que continua disposto a dialogar para superar os obstáculos e viabilizar um cessar-fogo duradouro.

Enquanto isso, presidente dos EUA, Donald Trump, continua defendendo um acordo que incluiria o deslocamento de palestinos para outros países — uma proposta que muitos especialistas consideram potencialmente uma forma de limpeza étnica.

França reconhece Estado palestino

Em mais um movimento simbólico, mas com grande impacto político, o presidente francês Emmanuel Macron anunciou, na quinta-feira à noite, que a França reconhecerá oficialmente o Estado da Palestina durante a Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro. Segundo Macron, a decisão é parte do “compromisso histórico da França com uma paz justa e duradoura no Oriente Médio”.

Com isso, a França se tornará o maior país da Europa a reconhecer formalmente a Palestina como Estado, o que pode abrir caminho para outras nações seguirem o mesmo caminho.

O vice-presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, saudou a decisão como um “sinal claro de apoio ao direito internacional e à autodeterminação do povo palestino”. Já as autoridades israelenses reagiram com veemência. O ministro da Defesa, Israel Katz, chamou o gesto de “vergonha e rendição ao terrorismo”.

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“Não permitiremos o estabelecimento de uma entidade palestina que comprometa nossa segurança e ameace nossa existência”, declarou Katz, reafirmando a posição de Israel de que o reconhecimento unilateral do Estado palestino é inaceitável.

Enquanto o mundo debate soluções políticas, a população de Gaza enfrenta o que muitos especialistas chamam de “fome forçada”, resultado direto do bloqueio e da escalada da violência. A cada dia que passa, o número de vítimas aumenta, e o silêncio internacional parece se tornar mais ensurdecedor.

“Você comeu hoje?”: Vozes de Gaza falam de fome e sobrevivência

“Estamos famintos por causa da ocupação israelense”, diz Taqwa al-Wawi em Gaza, onde tudo o que ela pensa é em como está faminta. Esta não é uma advertência. É a realidade cruel que assola o enclave há meses.

A fome já chegou a Gaza. Não como uma ameaça distante, nem como uma possibilidade futura. Ela está aqui, agora, em cada lar, em cada olhar vazio, em cada criança que acorda pedindo comida que não existe.

É a criança que acorda pedindo biscoitos que não existem mais. O aluno que estuda para provas desmaiado de fome. É a mãe que não consegue explicar ao filho por que não há pão. E é o silêncio do mundo que torna esse horror possível.

Filhos da fome

Noor, filha da minha irmã mais velha, Tasneem, tem três anos; ela nasceu em 11 de maio de 2021. O filho da minha irmã, Ezz Aldin, nasceu em 25 de dezembro de 2023 — nos primeiros meses da guerra.

Certa manhã, Tasneem entrou em nosso espaço carregando-os nos braços. Olhei para ela e fiz a pergunta que não saía da minha cabeça: “Tasneem, Noor e Ezz Aldin entendem o que é fome? Eles sabem que estamos em um período de fome?”

“Sim”, ela disse imediatamente. “Até o Ezz, que só conheceu guerra e ruínas, entende. Ele nunca viu comida de verdade na vida. Ele não sabe o que são ‘opções’. A única coisa que ele pede é pão.”

Ela imitou a voz de bebê dele: “Obz! Obza! Obza!” – seu jeito de dizer “khobza” (um pedaço de pão).

Ela teve que dizer a ele: “Não tetem farinha, querido. Seu pai saiu para procurar.”

Ezz Aldin não entende de cessar-fogo, fronteiras ou política. Ele não se importa com operações militares ou declarações diplomáticas. Ele só quer um pedacinho de pão. E o mundo não lhe dá nada.

Noor aprendeu a contar e recitar o alfabeto com a mãe. Antes da guerra, ela adorava chocolate e biscoitos. Ela foi a primeira neta da nossa família, repleta de brinquedos, lanches e vestidinhos.

Agora, todas as manhãs, ela acorda e se vira para a mãe com os olhos arregalados e animados: “Vá me comprar 15 chocolates e biscoitos”, diz ela. Ela diz 15 porque é o maior número que conhece. Parece o suficiente; o suficiente para encher a barriga dela, o suficiente para trazer de volta o mundo que ela conhecia. Mas não há nada para comprar. Não resta nada.

Onde está a sua humanidade? Olhe para ela. Depois me diga como é a justiça.

Morto após cinco dias de fome

Assisti a um vídeo que me partiu o coração. Um homem chorava pelos corpos envoltos em mantos de sete membros de sua família. Em desespero, ele gritava: “Estamos com fome.” Eles estavam morrendo de fome há dias, quando um drone de vigilância israelense atingiu sua barraca perto da Escola Al-Tabin, em Daraj, no norte de Gaza.

“Este é o jovem que eu estava criando”, chorou o homem no vídeo. “Vejam o que aconteceu com eles”, enquanto tocava suas cabeças uma última vez.

Algumas pessoas ainda não entendem. Não se trata de termos dinheiro. Trata-se da total ausência de comida. Mesmo que você seja um milionário em Gaza neste momento, não encontrará pão. Não encontrará um saco de arroz ou uma lata de leite. Os mercados estão vazios. As lojas estão destruídas. Os shoppings foram arrasados. As prateleiras não estão vazias – elas desapareceram.

O paraíso perdido

Costumávamos cultivar nossa própria comida. Gaza antigamente exportava frutas e vegetais; nós enviávamos morangos para a Europa. Nossos preços eram os mais baratos da região.

Um quilo de uvas ou maçãs? Três shekels (US$ 0,90). Um quilo de frango das fazendas de Gaza? Nove shekels (US$ 2,70). Agora, não conseguimos encontrar um único ovo.

Antes: Uma melancia enorme de Khan Younis pesava 21 quilos (46 libras) e custava 18 shekels (US$ 5). Hoje: A mesma melancia custaria US$ 250 – se você conseguir encontrá-la.

Abacates, antes considerados uma fruta de luxo, eram cultivados em toneladas em al-Mawasi, Khan Younis e Rafah. Costumavam custar um dólar o quilo. Também tínhamos autossuficiência em laticínios – queijos e iogurtes feitos em Shujayea por mãos locais.

Nossos filhos não eram mimados – eles apenas tinham direitos básicos. Café da manhã significava leite. Um sanduíche com queijo. Um ovo cozido. Agora, tudo foi cortado.

E não importa como eu explique às crianças, elas não conseguem entender as palavras “fome” ou “aumento de preços”. Elas simplesmente sabem que suas barrigas estão vazias.

Até mesmo frutos do mar – antes um alimento básico na dieta de Gaza – desapareceram. Apesar das rígidas restrições à pesca, costumávamos enviar peixes para a Cisjordânia. Agora, até o nosso mar está silencioso.

E com todo o respeito ao café turco, você não experimentou café até experimentar o Mazaj Coffee de Gaza. Tinha uma força que você podia sentir nos ossos.

Sobrevivendo com migalhas

Isto não é uma previsão. A fome está chegando. A maioria de nós está deslocada. Desempregada. De luto.

Se conseguimos fazer uma refeição por dia, comemos à noite. Não é um banquete. É arroz. Macarrão. Talvez sopa. Feijão enlatado. Coisas que você guarda como reserva na despensa. Aqui, elas são um luxo.

Na maioria dos dias, bebemos água e nada mais. Quando a fome aperta, olhamos fotos antigas, imagens de refeições do passado, só para lembrar como era o sabor da vida.

Passar fome enquanto fazia provas

Como sempre, nossos exames universitários são online, porque o campus está em ruínas. Estamos vivendo um genocídio. E, no entanto, estamos tentando estudar. Sou um estudante do segundo ano.

Acabamos de terminar as provas finais do primeiro semestre. Estudamos cercados pela fome, pelos drones, pelo medo constante. Não é isso que as pessoas pensam que é a universidade.

Fizemos provas de estômago vazio, sob o rugido dos aviões de guerra. Tentamos lembrar datas enquanto esquecíamos a última vez que provamos pão.

Todos os dias, converso com minhas amigas – Huda, Mariam e Esraa – pelo WhatsApp. Nos falamos e fazemos as mesmas perguntas repetidamente:

“O que você comeu hoje?” “Você consegue se concentrar?”

Estas são as nossas conversas – não sobre palestras ou trabalhos, mas sobre fome, dores de cabeça, tonturas e como ainda estamos de pé. Uma diz: “Minha barriga dói demais para pensar”. Outra diz: “Quase desabei quando me levantei”.

E mesmo assim, seguimos em frente. Nossa última prova foi em 15 de julho. Perseveramos, não porque éramos fortes, mas porque não tínhamos escolha. Não queríamos perder um semestre. Mas mesmo dizer isso parece tão insignificante comparado à verdade.

Estudar enquanto passa fome destrói sua alma.

Um dia, durante as provas, um ataque aéreo atingiu nossos vizinhos. A explosão abalou as paredes. Um momento antes, eu estava pensando em como eu estava com fome. Um momento depois, eu não sentia nada. Eu não corri. Fiquei na minha mesa e continuei estudando. Não porque eu estivesse bem, mas porque não havia outra escolha.

Eles nos matam de fome e depois nos culpam

Deixe-me ser claro: o povo de Gaza está passando fome de propósito. Não somos azarados – somos vítimas de crimes de guerra.

Abram as passagens. Deixem a ajuda entrar. Deixem a comida entrar. Deixem a medicina entrar.

Gaza não precisa de compaixão. Podemos reconstruir. Podemos nos recuperar. Mas primeiro, parem de nos matar de fome.

Matar, passar fome e sitiar não são apenas condições – são ações que nos são impostas. A linguagem revela aqueles que tentam esconder quem é o responsável.

Então, continuaremos dizendo: Fomos mortos pela ocupação israelense. Fomos mortos de fome pela ocupação israelense. Fomos sitiados pela ocupação israelense.

Enquanto o mundo discute geopolítica e interesses estratégicos, as crianças de Gaza acordam todos os dias com a mesma pergunta: “Tem alguma coisa pra comer?” E a resposta, infelizmente, continua sendo não.

Com informações de Al Jazeera*

Redação:
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