O Golfo troca petróleo por chips na corrida da IA

Os Emirados Árabes aceleram investimentos em IA e data centers para se tornarem líderes tecnológicos e romperem com a dependência histórica do petróleo / Reprodução

Emirados Árabes Unidos apostam pesado em inteligência artificial para construir o “novo petróleo”


Com a ambição de se tornar um dos principais polos globais de inteligência artificial (IA), os Emirados Árabes Unidos estão investindo pesadamente em infraestrutura tecnológica, buscando transformar sua economia e reduzir a dependência do petróleo. A aposta é clara: no futuro, a “computação” será tão valiosa quanto o próprio ouro negro que impulsionou a região por décadas.

A recente visita do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, aos Emirados reforçou essa nova direção estratégica. Durante o evento, realizado no início deste ano, foi anunciado o lançamento de um ambicioso campus de inteligência artificial — fruto de uma parceria entre os EUA e os Emirados. Trata-se do maior centro de infraestrutura de IA fora do território americano, marcando um novo capítulo na ascensão tecnológica da região.

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O projeto simboliza a determinação dos países do Golfo em se posicionarem como líderes no setor de alta tecnologia. Paralelamente, houve uma mudança significativa na política de exportações dos Estados Unidos, que passaram a facilitar o envio de chips avançados da empresa Nvidia para os Emirados e a Arábia Saudita — um sinal de que Washington vê os aliados do Golfo como parceiros-chave em uma nova era tecnológica.

Para os Emirados, o caminho traçado passa por uma transformação estrutural. O país tem usado sua riqueza, estabilidade política e vantagens energéticas — ainda presentes graças às vastas reservas de petróleo — para atrair empresas e talentos do setor de tecnologia. Um dos destaques é o projeto “Stargate”, um gigantesco cluster de data centers desenvolvido em parceria com a OpenAI e outras empresas norte-americanas. A iniciativa é liderada pela G42, empresa de tecnologia ligada ao governo local, e conta com o suporte da gigante dos chips Nvidia.

Além da G42, outras multinacionais como Cisco, Oracle e até a SoftBank do Japão estão envolvidas na construção da primeira fase dessa infraestrutura. A Khazna, maior operadora de data centers dos Emirados e também ligada à G42, é responsável por desenvolver a base física necessária para abrigar esses centros tecnológicos. Atualmente, a empresa administra 29 unidades em operação no país.

“Assim como a Emirates ajudou a transformar os Emirados Árabes Unidos em um centro global de viagens aéreas, agora os Emirados Árabes Unidos estão em um estágio em que podem se tornar um centro de IA e dados”, afirma Hassan Alnaqbi, CEO da Khazna.

A aposta na computação como o “novo petróleo” também ecoa na Arábia Saudita. O Fundo de Investimento Público (PIF) do reino anunciou a criação da Humain, uma empresa nacional de inteligência artificial que planeja construir verdadeiras “fábricas de IA” nos próximos cinco anos. O projeto prevê o uso de centenas de milhares de chips da Nvidia para alimentar modelos de aprendizado de máquina cada vez mais poderosos.

Já nos Emirados, o grupo de investimentos estatal Mubadala tem apoiado ativamente iniciativas como a MGFX, uma joint venture com a Microsoft no valor de 100 bilhões de dólares, focada em soluções de IA. A estratégia é clara: deixar de ser apenas financiador de tecnologia para se tornar um protagonista global no setor.

“Na era da IA, a infraestrutura é o novo combustível”, explica Mohammed Soliman, pesquisador sênior do Middle East Institute em Washington. “Assim como as companhias petrolíferas do Golfo impulsionaram a economia global no século passado, as empresas de inteligência artificial da região agora querem oferecer ‘computação’ para impulsionar a economia do século XXI.”

O movimento dos Emirados e da Arábia Saudita mostra que o Golfo não quer apenas acompanhar a revolução tecnológica, mas liderá-la. E, com bilhões de dólares sendo investidos em infraestrutura, pesquisa e parcerias estratégicas, a região parece determinada a garantir seu lugar no futuro da inteligência artificial.

Apesar dos investimentos expressivos e da infraestrutura de ponta, os Emirados Árabes Unidos enfrentam um desafio crucial: atrair e reter talentos especializados em inteligência artificial. Para superar essa barreira, o país tem adotado medidas atrativas, como a oferta de impostos reduzidos, a concessão de “vistos dourados” de longo prazo e um ambiente regulatório mais flexível. Essas estratégias visam transformar a região em um polo de atração para empresas e pesquisadores internacionais.

“Construir uma infraestrutura digital e de IA de nível internacional funcionará como um ímã”, afirma Baghdad Gherras, fundador de uma startup de IA sediada nos Emirados e investidor de risco. Ele destaca que, embora a iniciativa seja promissora, a região ainda enfrenta dificuldades para se firmar como um verdadeiro centro de inovação tecnológica.

De fato, mesmo com o avanço acelerado, os Emirados ainda carecem de empresas locais de IA reconhecidas globalmente — nomes como OpenAI, Mistral ou DeepSeek ainda não têm equivalentes na região. Além disso, há uma escassez de talentos de pesquisa consolidados, o que limita a capacidade de desenvolver soluções inovadoras de forma independente.

Gherras aponta outro fator que contribui para esse cenário: a pequena população dos Emirados, que conta com pouco mais de 10 milhões de habitantes. Esse número reduzido dificulta a formação de um ecossistema robusto de pesquisa e desenvolvimento em larga escala, algo essencial para competir com centros tecnológicos consolidados como São Francisco, Pequim ou Tel Aviv.

A rivalidade entre EUA e China no coração do Golfo

O crescente protagonismo dos países do Golfo na corrida pela IA também colocou a rivalidade entre Estados Unidos e China em evidência na região. A visita de Donald Trump aos Emirados, em janeiro, foi um marco nesse contexto. O presidente norte-americano não apenas reforçou laços políticos e econômicos, mas também selou acordos estratégicos em tecnologia, consolidando a influência dos EUA na área de inteligência artificial no Oriente Médio.

Essa aproximação teve um custo simbólico: os Emirados passaram a reduzir sua dependência de projetos apoiados pela China, especialmente aqueles ligados à Huawei. A ênfase dada aos acordos de IA durante a visita de Trump demonstra como a tecnologia se tornou uma peça central na diplomacia dos Estados Unidos, alterando a dinâmica tradicional da relação com os países do Golfo — antes baseada principalmente na troca de segurança por petróleo.

Hoje, essa parceria se expande para além da energia, incorporando também a segurança e a tecnologia como pilares da cooperação bilateral.

A “pilha de IA” e a influência americana

Para especialistas, como Mohammed Soliman, do Middle East Institute em Washington, os acordos firmados durante a visita de Trump revelam uma estratégia mais ampla. “São mais sobre a China do que sobre o Golfo”, afirma ele. “Basicamente, estamos tentando trazer uma região de IA promissora e em ascensão — que é o Golfo — para a pilha de IA americana, para estar no Time América de IA.”

A “pilha de IA” refere-se ao conjunto completo de recursos necessários para desenvolver tecnologia de ponta: chips, infraestrutura, modelos e software — áreas nas quais os Estados Unidos ainda mantêm liderança. Ao integrar os Emirados nesse ecossistema, os EUA buscam ampliar sua influência global e conter o avanço chinês no setor.

Baghdad Gherras reconhece essa lógica. “Neste momento, os americanos estão à frente no jogo da IA. Então, fazia sentido que os Emirados Árabes Unidos apostassem neles”, afirma o empreendedor.

Preocupações com segurança e o papel da China

Apesar do alinhamento com os EUA, o caminho nem sempre é isento de obstáculos. Segundo reportagem da Reuters, o ambicioso projeto Stargate — o cluster de data centers que abrigará empresas como OpenAI — ainda aguarda aprovação de órgãos de segurança dos Estados Unidos. As autoridades americanas mantêm preocupações com a possibilidade de envolvimento de tecnologia ou pessoal ligado à China nos centros de computação dos Emirados.

Mesmo com essas restrições, espera-se que o projeto siga em frente, com o apoio de empresas norte-americanas. Ainda assim, especialistas alertam que subestimar a China pode ser um erro estratégico.

“Eles estão escalando rapidamente. Já têm um conjunto de IA. Pode não ser tão poderoso quanto o dos Estados Unidos, mas é mais barato. E para muitos países, bom o suficiente é bom o suficiente”, ressalta Soliman.

Um futuro em transformação

Por ora, a parceria entre os EUA e os países do Golfo parece vantajosa para ambas as partes. Os Estados Unidos ganham aliados estratégicos em sua disputa tecnológica com a China, enquanto os Emirados e outros Estados da região avançam em sua transição econômica, buscando reduzir a dependência do petróleo por meio da inovação e da inteligência artificial.

Com bilhões investidos em infraestrutura, parcerias internacionais e políticas de atração de talentos, os Emirados Árabes Unidos estão construindo um novo futuro — um no qual a “computação” se torna o novo combustível da economia global. E, ao contrário do petróleo, esse recurso não está enterrado sob o deserto — ele está sendo criado, linha por linha de código, em data centers que prometem definir o amanhã.

Com informações da BBC*

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