Lideranças do Povo Guató publicam nota de repúdio contra ampliação de parque no Pantanal: “Não fomos consultados”

Homens Guató em pose durante festividades do Dia dos Povos Indígenas em 2017, na Aldeia Uberaba, Terra Indígena Guató, município de Corumbá-MS. Foto: Folha MS

O Conselho de Lideranças do Povo Guató publicou, nesta segunda-feira (4), uma nota de repúdio contra a proposta de criação da “Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Barra do São Lourenço” e a ampliação da área do Parque Nacional do Pantanal Mato-Grossense. Segundo os líderes indígenas, as medidas afetam diretamente territórios tradicionalmente ocupados pelo povo Guató nos municípios de Corumbá (MS) e Poconé (MT).

A nota acusa o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e organizações aliadas, como a ONG ECOA, de violarem direitos constitucionais dos povos originários. Segundo o documento, não houve qualquer tipo de consulta à comunidade Guató, inviabilizando qualquer decisão legítima sobre a criação da RDS.

“Não aceitamos um protocolo de araque, apoiado por forças reacionárias e anti-indígenas”, afirma o texto. Os líderes também denunciam que as áreas em questão contêm locais sagrados, como o Morro do Caracará e o Morro do Campo, além de sepultamentos e marcos de origem cosmológica do povo Guató.

Apesar da decisão judicial que reconhece o cacique Denir Marques da Silva como representante legítimo da comunidade, os líderes acusam o ICMBio e a ONG ECOA de ignorarem a decisão e promoverem o que chamam de “invisibilidade étnica”.

Para os líderes indígenas, a pressa nas tratativas tem relação com pressões internacionais, como a aproximação da COP30. A conferência climática da ONU está marcada para acontecer em novembro de 2025, em Belém do Pará. “Estamos sendo sacrificados em nome de uma pauta ambiental que não nos inclui”, afirmam.

Leia a nota na íntegra:
O Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal vem a público repudiar as pessoas e instituições envolvidas na imposição de duas propostas ao nosso povo, especialmente à comunidade da Aldeia Barra do São Lourenço, quais sejam: (1) criação de uma RDS (Reserva de Desenvolvimento Sustentável), chamada “RDS Barra do São Lourenço”; (2) ampliação da área do Parque Nacional do Pantanal Mato-Grossense. São áreas definidas pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), cujos espaços incidem sobre terras tradicionalmente ocupadas nos municípios de Corumbá e Poconé.

Nosso repúdio é endereçado ao ICMBio e aliados colonialistas, haja vista que as proposituras desrespeitam direitos assegurados aos povos originários nos Artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, dentre outros dispositivos legais. Ocorre que o povo Guató não possui um Protocolo de Consulta Prévia Livre e Informada, em conformidade com o que assegura a Convenção n. 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), de 1989, ratificada pelo Estado Brasileiro desde 2002. Para que o regulamento seja feito, nossas comunidades precisam de tempo para compreender, discutir e deliberar sobre o assunto. Portanto, o ICMBio e parceiros não possuem autoridade para nos impor um protocolo de araque e ao arrepio da lei, apoiado por forças reacionárias e anti-indígenas.

Naquela parte do Guadakan ou Pantanal, que inclui a totalidade da área destinada à RDS, há uma terra indígena não regularizada, cuja demanda é do conhecimento da FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), MPF (Ministério Público Federal) e MPI (Ministério dos Povos Indígenas), dentre outros órgãos. Ali existem locais sagrados, como o Morro do Caracará e o Morro do Campo, onde há parentes sepultados e registros das origens cosmológicas da Barra do São Lourenço, segundo nosso modo de ser e estar no mundo.

Esta nota de repúdio, contudo, não é apenas um documento contrário às ideias impostas pelo ICMBio e cúmplices. É um grito de socorro às autoridades brasileiras: Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, Ministra Marina Silva, Ministra Sônia Guajajara, Presidenta da FUNAI Joenia Wapichana, MPF (6ª Câmara em Brasília e Procuradoria em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul) e DPU (Defensoria Pública da União). Igualmente é o clamor de um povo originário autenticamente pantaneiro, sobrevivente de uma guerra genocida sem fim, iniciada há cinco séculos, para as pessoas e instituições de bem da sociedade civil organizada. Precisamos de toda a ajuda possível no Pantanal profundo, onde ainda vigora a Lei do 44 (o calibre das armas de fogo dos poderosos e não o número de algum dispositivo legal) e o Estado Brasileiro pouco se faz presente para assegurar nossos direitos.

Para compreender a situação apontada, importa registrar que nas últimas décadas, a comunidade da Aldeia Barra do São Lourenço tem tido seus direitos violados repetidas vezes e fica tudo por isso mesmo. Durante a ditadura militar (1964-1985) e anos posteriores, fazendeiros e servidores do IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal), INAMB (Instituto de Preservação e Controle Ambiental de Mato Grosso do Sul) e órgãos sucessores, incluindo forças policiais, promoveram várias formas de violência contra famílias indígenas ali estabelecidas. Em fins de 1995, seis famílias então residentes na localidade de Acurizal foram vítimas de remoção forçada, promovida por homens violentos a serviço da ONG ou Organização Não Governamental de nome Ecotrópica, com sede em Cuiabá, sob a liderança do casal Adalberto Eberhard e Gislaine Eberhard. Anos mais tarde, em 2013, a mesma ONG entrou com processo contra a comunidade porque, durante uma grande cheia, várias famílias foram buscar abrigo no Aterro do Piuval, chamado pelos brancos de “Aterro do Socorro”, que fica próximo à sede da Aldeia. No dia 09/08/2024, o juiz federal substituto, doutor Daniel Chiaretti, decidiu que quem representa a comunidade é o Cacique Denir Marques da Silva, popular Cacique Negré, e, ademais, determinou a exclusão da Associação Ribeirinha da Barra do São Lourenço do polo passivo da lide (Processo n. 0013468-97.2013.4.03.6000 / 1ª Vara Federal em Corumbá).

A decisão judicial, todavia, não tem sido observada pelo ICMBio e associados, como a ONG ECOA (Ecologia e Ação), que, por meio de seu diretor-presidente, André Luiz Siqueira, tem promovido uma dolosa invisibilidade étnica da comunidade e desrespeitado a autoridade do mencionado Cacique e, ainda, em atitude machista, a da Vice-Cacica Maria Aparecida Aires de Souza Silva. Além disso, ele tem promovido assédio e pressão política em desfavor dos direitos originários da comunidade. Esta situação foi informada ao MPF em Corumbá e à Coordenação Regional da FUNAI em Campo Grande, assim feito no dia 18/03/2025 (Protocolo n. 08198010637202512). Na denúncia consta o pedido de providências sobre os fatos, inclusive acerca de um acontecimento observado durante as primeiras conversas oficiais a respeito da RDS, realizadas nos dias 12 e 13/03/2025 nas dependências da sede do próprio Parque: a ameaça de morte proferida por uma pessoa de fora da comunidade contra o ancião Sr. Leonardo Rodrigues de Jesus, 71 anos, uma de nossas lideranças tradicionais.

Apesar disso tudo e salvo melhor juízo, até agora o MPF em Corumbá, tampouco a Procuradoria da FUNAI, não se manifestaram formalmente sobre o assunto, diferentemente de como costumam fazer as duas instituições em outros municípios, como em Cuiabá e Dourados. No Pantanal profundo as coisas funcionam ou deixam de funcionar desse jeito e quase ninguém vem ao nosso socorro. Exemplo disso é que sequer a Coordenação do DSEI-MS (Distrito Sanitário Especial Indígena de Mato Grosso do Sul), sob a coordenação do patrício Lindomar Ferreira, responde a nossos apelos e documentos, muito menos providencia atendimento à saúde das famílias da Aldeia Barra do São Lourenço. Nem mesmo urnas eletrônicas e ensino médio chegam até naquela parte de nosso território ancestral. Estamos ali abandonados à nossa própria sorte e capacidade de resistência porque, como sabemos, a nós tem sido imposta uma situação de isolamento forçado em relação aos direitos assegurados à dignidade da pessoa humana no Brasil.

Em suma, as discussões sobre a criação da RDS e a respeito da ampliação da área do Parque estão sendo feitas às pressas e, portanto, ao arrepio da legislação indigenista. Tudo indica que são feitas assim para atender a exigências da COP30, a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, a ser realizada no mês de novembro de 2025 em Belém, dentre outras agendas vindas de fora. Além disso, inexiste previsão legal da “RDS Barra do São Lourenço” ser uma área de usufruto exclusivo e permanente da comunidade indígena da Aldeia Barra do São Lourenço, em atenção a seus usos, costumes e tradições, pelo contrário. Será um espaço a ser compartilhado entre a comunidade local com pessoas de alhures, inclusive com quem ameaçou de morte um de nossos anciões, e tudo isso está planejado para ser executado sob a tutela do ICMBio e ONGs aliadas.

Dito isso, este Conselho ratifica o repúdio ao ICMBio e aliados anti-indígenas, como a ECOA, ratifica a decisão de resistir a essas e outras tentativas de violar nossos direitos e conclama as instituições e autoridades competentes do Estado Brasileiro, o movimento indígena e as organizações indigenistas a virem ao nosso socorro no Guadakan, onde somos o que somos.
Pantanal, 4 de agosto de 2025.

Coordenação do Conselho de Lideranças do Povo Guató no Guadakan/Pantanal
(Cacique Carlos Henrique Alves de Arruda, Aldeia Aterradinho, Barão de Melgaço-MT; Cacique Denir Marques da Silva, Aldeia Barra do São Lourenço, Corumbá-MS; Cacique Luiz Carlos de Souza Alvarenga, Aldeia Uberaba, Corumbá-MS)

Lucas Allabi: Jornalista em formação pela PUC-SP e apaixonado pelo Sul Global. Escreve principalmente sobre política e economia. Instagram: @lu.allab
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