Sonho de uma Índia forte tropeça na ‘América em 1º lugar’ de Trump

Ao punir economicamente a Índia, Trump ameaça desfazer décadas de aproximação entre as duas maiores democracias do mundo e abala uma aliança estratégica / AP

O que começou com discursos calorosos entre Trump e Modi agora se desfaz em meio a tarifas, desconfiança política e tensões energéticas crescentes


O que parecia ser uma aliança promissora entre dois dos maiores democracias do mundo está se desfazendo sob o peso de tensões comerciais, pressões geopolíticas e um crescente mal-estar diplomático. No início de 2025, o cenário entre Estados Unidos e Índia parecia auspicioso: o primeiro-ministro indiano Narendra Modi era recebido com honras na Casa Branca logo após o retorno de Donald Trump à presidência, ambos trocando sorrisos e discursos de parceria estratégica. Modi, inspirado no slogan de campanha de Trump, até declarou que também trabalharia para “tornar a Índia grande novamente”. Mas o entusiasmo não durou.

O que começou como uma aproximação política e econômica está, agora, se transformando em um atrito crescente. Observadores internacionais alertam que o relacionamento entre Washington e Nova Déli — construído ao longo de duas décadas como um pilar da estabilidade na Ásia frente ao avanço da China — pode estar prestes a sofrer um abalo profundo, impulsionado pelas decisões unilaterais e contundentes de Trump.

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A gota d’água veio na segunda-feira, quando o presidente americano anunciou que aumentaria “substancialmente” as tarifas sobre produtos indianos. A medida, que ainda está em fase de definição, atingiria um dos mercados já mais penalizados nas relações comerciais dos EUA na Ásia: atualmente, as tarifas americanas sobre importações da Índia já chegam a 25%, uma das mais altas da região. O motivo alegado? As “compras massivas” de petróleo russo pela Índia, feitas mesmo após as sanções ocidentais impostas à Rússia pela invasão da Ucrânia em 2022.

A resposta de Nova Déli foi imediata e contundente. Em comunicado oficial, o Ministério das Relações Exteriores da Índia classificou as críticas como “injustificadas e irracionais”. E trouxe à tona um detalhe que muitos em Washington parecem ter esquecido: nos primeiros momentos da guerra, os próprios Estados Unidos incentivaram a Índia a comprar petróleo russo. “A Índia começou a importar da Rússia porque os suprimentos tradicionais foram desviados para a Europa após o início do conflito”, afirmou o governo indiano. “Naquela época, os Estados Unidos incentivaram ativamente essas importações pela Índia para fortalecer a estabilidade dos mercados globais de energia.”

A declaração expõe uma contradição crescente na política externa de Trump: exigir que aliados sigam a linha ocidental contra a Rússia, enquanto ignora as realidades econômicas que países como a Índia enfrentam. Para uma nação com mais de 1,4 bilhão de pessoas e uma demanda energética em constante crescimento, o petróleo russo, vendido com descontos consideráveis, tornou-se uma solução prática — e, até certo ponto, tática — para manter a economia funcionando.

Mas o desgaste vai além do comércio de energia. Trump tem atacado diretamente investimentos estratégicos da Índia, especialmente no setor de tecnologia. Empresas americanas como a Apple têm ampliado sua produção no país, deslocando fábricas da China para a Índia como parte de uma estratégia de diversificação de cadeias de suprimento. Dados da Canalys mostram que, no último trimestre, a Índia foi responsável por 44% das importações de smartphones nos EUA — mais do que qualquer outro país, inclusive a China. Isso inclui iPhones, cuja produção na Índia vem crescendo exponencialmente. Tim Cook, CEO da Apple, chegou a afirmar que, a partir deste trimestre, a maioria dos iPhones vendidos nos Estados Unidos será fabricada no território indiano.

Apesar disso, em uma reunião em maio, Trump foi direto ao ponto: “Não quero que você construa na Índia”, teria dito ao executivo, pressionando para que a produção fosse trazida de volta aos Estados Unidos, mesmo diante das dificuldades logísticas e de custo. A frase, revelada por fontes próximas ao encontro, ecoou como um sinal de desprezo pelas ambições industriais indianas — e por um dos pilares do plano de Modi para modernizar a economia do país.

O recuo de Trump também se estende ao campo geopolítico. Enquanto tenta fortalecer relações com o Paquistão, rival histórico da Índia, o presidente americano não tem poupadado críticas à economia indiana, chamando-a de “morta” em postagens públicas. Para um líder como Modi, que apostou alto em sua imagem de modernizador e parceiro confiável do Ocidente, o desdém de Trump é um revés político e simbólico.

Dentro da Índia, a situação está gerando onda de críticas. O partido de oposição, o Congresso, aproveitou o momento para atacar o governo: “O país agora está arcando com o custo da ‘amizade’ de Narendra Modi”, disse em comunicado na semana passada. “Ele se curvou demais diante de Trump, e agora pagamos o preço nas exportações, na credibilidade e na soberania.”

Analistas como Dhruva Jaishankar, diretora executiva da Observer Research Foundation America, em Washington, veem com preocupação o rumo das relações bilaterais. “Ele está ameaçando desfazer, ou pelo menos interromper, o que já dura duas décadas de relações cada vez melhores entre a Índia e os EUA”, afirmou. “A parceria estratégica com a Índia não pode ser tratada como moeda de troca nas políticas comerciais de curto prazo.”

O que estava destinado a ser uma aliança de longo prazo entre duas potências democráticas parece agora balançar sob o peso de um nacionalismo econômico agressivo. Enquanto Modi tenta elevar o status global da Índia, Trump insiste em colocar a América em primeiro lugar — mesmo que isso signifique empurrar um aliado para o canto. O risco, agora, é que a Índia, sentindo-se desprezada, comece a olhar para outros parceiros, como Rússia, França ou até mesmo fortalecer laços com potências asiáticas fora do alcance direto de Washington.

No tabuleiro global, amizades não são apenas seladas com apertos de mão e fotos oficiais. São mantidas com respeito, consistência e reconhecimento mútuo. E, neste momento, a Índia parece estar perguntando: onde está o respeito?

Aconchegando-se com o inimigo da Índia: aliança com o Paquistão acirra tensões diplomáticas

Enquanto a Índia tentava conter o caos após um dos mais graves ataques terroristas dos últimos anos, Washington escolheu um lado — e não foi o dela. Em abril, um ataque na Caxemira controlada pela Índia matou 26 pessoas, entre civis e forças de segurança, desencadeando uma onda de indignação nacional. A resposta de Nova Déli foi imediata: bombardeios a supostos acampamentos de militantes no território paquistanês. O que se seguiu foi um conflito de quatro dias à beira de uma guerra total entre duas potências nucleares, com aviões derrubados, tropas mobilizadas e o mundo prendendo o fôlego.

Nesse cenário de alta tensão, Donald Trump surgiu como protagonista. Em uma série de declarações públicas, afirmou ter “intermediado pessoalmente” um cessar-fogo entre a Índia e o Paquistão. Enquanto Islamabad agradeceu publicamente ao presidente americano pela mediação, em Nova Déli o clima foi de constrangimento e desagrado. A Índia, que considera a questão da Caxemira uma questão de soberania e segurança nacional, não reconheceu qualquer papel decisivo dos EUA no desfecho do conflito.

A Índia não endossou a alegação de Trump”, afirmou Amitendu Palit, ex-funcionário do Ministério das Finanças da Índia e pesquisador sênior do Instituto de Estudos do Sul da Ásia da Universidade Nacional de Cingapura. “A mediação foi apresentada como um feito diplomático americano, mas, na prática, foi vista como uma ingerência desnecessária em um assunto que a Índia prefere resolver diretamente.”

A situação piorou semanas depois, quando Trump recebeu na Casa Branca o chefe do exército paquistanês — uma figura central no regime militarizado do país — em uma reunião sem precedentes. O gesto foi interpretado em Nova Déli como um sinal claro de reaproximação dos EUA com um dos seus maiores rivais históricos. A cereja do bolo veio com a decisão de impor ao Paquistão uma tarifa de apenas 19% sobre exportações para os EUA — significativamente menor que os 25% aplicados à Índia — e com a divulgação de um suposto acordo para explorar reservas de petróleo no território paquistanês.

“É difícil não ver isso como uma escolha estratégica”, disse Palit. “A Índia se sente traída. Enquanto enfrenta um ataque terrorista, o país que a abriga recebe um tapete vermelho em Washington. Isso não foi muito bem recebido por Trump.”

Pressionado pela Rússia, mas com as mãos atadas

O desgaste nas relações vai além do subcontinente sul-asiático. Nos bastidores, outro conflito silencioso ganha força: a política externa independente da Índia frente à Rússia. Durante décadas, Nova Déli tem mantido uma postura de “não-alinhamento”, fortalecendo laços com os EUA no campo de defesa e tecnologia, enquanto preserva relações estratégicas com Moscou — principal fornecedor de equipamentos militares e parceiro energético histórico.

Quando as sanções ocidentais contra o petróleo russo foram impostas após a invasão da Ucrânia, a Índia viu uma oportunidade. Como terceiro maior consumidor de energia do mundo — atrás apenas de China e EUA —, o país passou a importar grandes quantidades de petróleo russo com descontos de até 30%. Uma decisão prática, econômica e, segundo muitos analistas, até benéfica para o equilíbrio global.

“Eles compraram petróleo russo porque queríamos que alguém comprasse petróleo russo”, admitiu Eric Garcetti, então embaixador dos EUA na Índia durante o governo Biden, em uma conferência no ano passado. “Na verdade, foi o design da política, porque, como commodity, não queríamos que os preços do petróleo subissem.”

Mas sob a administração Trump, essa percepção mudou radicalmente. O presidente, que já demonstrava frustração crescente com Vladimir Putin, passou a enxergar as compras indianas como uma traição ao bloco ocidental. Em uma publicação recente nas redes sociais, Trump disparou: “A Índia e a Rússia podem derrubar suas economias mortas juntas.”

A frase, carregada de desprezo, ecoou em Nova Déli como um alerta: a margem de manobra da Índia está encolhendo. “Estamos agora em um estágio em que a capacidade americana de controlar a Rússia e seus aliados está começando a impactar a Índia”, disse Palit. “O que antes era tolerado como parte de uma política externa independente agora é visto como deslealdade.”

Um novo eixo se desenha?

Apesar das pressões, especialistas acreditam que a Índia não abandonará sua parceria com os EUA. A cooperação em tecnologia, defesa e segurança digital continua sendo vital. “A Índia continuará a se envolver com os EUA como um parceiro estratégico e tecnológico importante”, afirma Chietigj Bajpaee, pesquisador sênior para o Sul da Ásia no Chatham House, renomado think tank de Londres. “Mas acho que é uma espécie de alerta.”

Esse alerta pode estar sendo ouvido em Pequim. Em um movimento simbólico e estratégico, Índia e China — rivais históricos com fronteiras disputadas — retomaram os voos diretos entre seus países no mês passado, pela primeira vez em cinco anos. A decisão foi selada durante uma reunião de ministros das Relações Exteriores, em um clima de distensão inédito. E, no centro desse novo diálogo, esteve a 16ª Cúpula do BRICS, em Kazan, onde Modi e Putin se encontraram em outubro, em imagens que não passaram despercebidas em Washington.

Para Dhruva Jaishankar, o recado é claro: “As ações de Trump não tiram a Índia da órbita americana, mas podem levá-la a fortalecer laços com outros países, como a China.”

Com informações de CNBC e Agências de Notícias

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