Ocupação do plenário escancara falhas estratégicas, tensões entre Poderes e desgaste na liderança de Hugo Motta
Enquanto o plenário da Câmara dos Deputados era ocupado por parlamentares da oposição durante dois dias consecutivos, paralisando os trabalhos legislativos, aliados do presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), começaram a tecer críticas internas sobre uma série de decisões que, segundo eles, abriram caminho para o que se tornou um dos momentos mais tensos do Congresso Nacional em 2025.
Apesar de o foco da imprensa ter recaído sobre os atos dos opositores — que pernoitaram nas dependências da Câmara e do Senado em protesto contra as medidas impostas ao ex-presidente Jair Bolsonaro pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal —, bastidores revelam que o próprio entorno de Motta reconhece falhas estratégicas que agravaram o clima político e permitiram que a situação escapasse do controle.
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A insatisfação no Legislativo com decisões do STF, especialmente as que envolvem o uso de tornozeleira eletrônica e prisão domiciliar de figuras políticas, não é exclusiva de setores mais radicais da direita ou de apoiadores do bolsonarismo. Muitos parlamentares, mesmo de espectros variados, demonstraram desconforto com o que consideram uma intervenção judicial crescente sobre o Poder Legislativo. E foi justamente esse descontentamento generalizado que, na avaliação de aliados do presidente, deveria ter sido encarado como um alerta vermelho.
O ponto de inflexão, segundo relatos de deputados próximos a Motta, foi a decisão de barrar a realização de sessões em comissões durante o recesso parlamentar. Com o Congresso em um período informal de recesso — já que a Lei de Diretrizes Orçamentárias não foi votada a tempo —, setores da oposição viam nas comissões uma oportunidade para promover atos simbólicos de desagravo contra as medidas de Moraes. Ao proibir essas reuniões, Motta, intencionalmente ou não, fechou uma válvula de escape e direcionou o descontentamento para um canal mais radical: a ocupação física do plenário.
Ainda pior, no entendimento de alguns interlocutores, foi a ausência de Motta de Brasília justamente no momento em que os ânimos se acirravam. Em vez de aproveitar o período de menor atividade para conversar com líderes, costurar acordos e conter o risco de rebelião, o presidente da Câmara se ausentou da capital, o que foi interpretado por muitos como desinteresse ou subestimação do clima político.
O resultado foi uma ocupação que dominou as manchetes, interrompeu a pauta legislativa e colocou em xeque a autoridade do comando da Casa. A situação foi agravada pelo anúncio do vice-presidente da Câmara, Altineu Côrtes (PL-RJ), de que, assim que assumir interinamente a presidência, irá pautar a proposta de anistia ampla e irrestrita aos condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023 — atos que envolveram invasão e depredação de sedes dos Três Poderes em Brasília.
Essa declaração, vinda de um cargo de liderança institucional, foi vista por setores do governo e da base aliada como um sinal de enfraquecimento da Presidência da Câmara e de descontrole interno. Em resposta, Motta afirmou que sua gestão é “inegociável” e que estuda punições aos deputados que participaram da obstrução. Entre as medidas em análise está o envio de pedidos de afastamento de até seis meses para 14 parlamentares da oposição, além de uma deputada acusada de agressão física durante os protestos. Todos os processos foram encaminhados à Corregedoria da Casa e precisam ser analisados pelo Conselho de Ética.
Paralelamente, uma articulação entre o Centrão e setores bolsonaristas ganha força para pressionar pela aprovação da anistia e pelo fim do foro privilegiado dos parlamentares — temas que, segundo analistas, podem ser usados como moeda de troca em negociações futuras.
Juristas: ocupação extrapolou limites do decoro parlamentar
Enquanto o debate político se intensifica, juristas consultados pela Agência Brasil avaliam que a ação dos parlamentares opositores pode configurar quebra de decoro e até mesmo o crime de prevaricação, previsto no artigo 319 do Código Penal. O delito ocorre quando um agente público deixa de praticar atos de sua competência por interesse pessoal ou de terceiros.
Para o professor de direito constitucional Henderson Fürst, o que aconteceu na Câmara não pode ser visto apenas como um exercício legítimo de liberdade de expressão. “Aquilo não foi um ato legítimo de atuação de um parlamentar no debate de ideias democráticas para o país. Inclusive, pode-se considerar uma prevaricação. O crime de prevaricação é um crime próprio de funcionário público. Os parlamentares figuram como funcionários públicos e eles atrasam a condução do exercício das suas obrigações por interesse particular ou de terceiros.”
O artigo 5º do Código de Ética da Câmara dos Deputados é claro ao afirmar que é contra o decoro “perturbar a ordem das sessões da Câmara dos Deputados ou das reuniões de Comissão”. A ocupação das mesas diretoras, com parlamentares pernoitando nos plenários e impedindo a retomada dos trabalhos, claramente viola esse princípio.
Apesar disso, o especialista em Direito Público e Eleitoral Flávio Henrique Costa Pereira ressalta que, embora o método tenha sido questionável, a pauta em si — como o pedido de anistia e o impeachment de Alexandre de Moraes — pode ser legítima dentro do sistema democrático. “Não é legítimo você fazer essa manifestação impedindo o livre exercício das atividades do Poder Legislativo. Da forma como fizeram, eles impediram que sessões da Câmara ocorressem na forma e nos horários que estavam determinados. Mas a ação não representa um atentado à democracia, como alguns afirmam.”
Pereira ainda lembra que o próprio sistema de freios e contrapesos prevê que o Legislativo possa reagir a decisões do Judiciário que sejam vistas como excessivas. “O instrumento mais legítimo é mudar a legislação. Não poucas vezes no Brasil isso aconteceu.” Ele, no entanto, reforça que o meio não justifica todos os fins.
A senadora Tereza Cristina (PP-MS), líder da bancada ruralista, ao justificar sua participação no ato no Senado, disse que, às vezes, é necessário “chamar atenção” para ser ouvido. “Ninguém aqui está feliz com essa situação, mas foi preciso fazer um gesto para que a gente fosse ouvido e esse diálogo fosse retomado”, afirmou após deixar a mesa diretora.
Eduardo Bolsonaro e o debate sobre soberania nacional
O cenário de tensão se estende além do Congresso. O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que atualmente reside nos Estados Unidos, tem sido alvo de críticas crescentes por suas declarações públicas em apoio ao “tarifaço” imposto pelo governo Trump ao Brasil — uma medida retaliatória ligada ao julgamento da trama golpista no STF.
Além de defender sanções contra ministros do Supremo, Eduardo condicionou o fim dessas tarifas à aprovação da anistia aos condenados pelo 8 de janeiro. Para Henderson Fürst, essas ações podem se enquadrar no artigo 359-I do Código Penal, previsto na Lei de Defesa da Democracia (14.197/2021), que criminaliza negociar com potências estrangeiras com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o país. “Temos isso na literatura sobre o assunto. Um dos atos típicos de guerra é, justamente, o estrangulamento financeiro. Temos embargos contra Palestina, Rússia, Venezuela, e assim por diante”, explicou.
Flávio Henrique Pereira, por outro lado, entende que ainda não é possível enquadrar Eduardo Bolsonaro como autor de atentado à democracia pela Lei 14.197, mas ressalta que ele pode responder por obstrução do processo judicial, prevista na Lei 12.850/2013. “Ele está tentando interferir no processo judicial. Como parlamentar, ele feriu o Código de Ética e caberia processo de cassação do mandato. A ação dele é inconstitucional porque o dever do parlamentar, em primeiro lugar, é defender a nossa Constituição. E quando isso pede uma intervenção de um terceiro ele está submetendo a soberania do nosso país a um Estado estrangeiro.”
O Partido dos Trabalhadores (PT) já formalizou pedidos de cassação do mandato de Eduardo Bolsonaro, alegando traição à soberania nacional e apoio a medidas que prejudicam a economia brasileira.
Um momento de escolhas para o Congresso
O que começou como um protesto contra decisões judiciais terminou por expor fissuras profundas no funcionamento do Poder Legislativo. A crise revela não apenas um embate entre Poderes, mas também uma disputa interna sobre o rumo da democracia brasileira, os limites do ativismo parlamentar e a responsabilidade de quem ocupa cargos de liderança.
Hugo Motta tenta agora retomar o controle, mas o episódio deixou marcas. A autoridade da Presidência da Câmara foi abalada, o diálogo entre os blocos partidários está minado, e temas explosivos como anistia, foro privilegiado e soberania nacional estão no centro do debate.
Mais do que uma disputa de pauta, o que se viu nos últimos dias foi um espelho de um país dividido, onde a institucionalidade é testada não apenas por ações radicais, mas também por omissões, erros de cálculo e ausências. E, nesse jogo de tensões, a estabilidade democrática depende cada vez mais da capacidade de liderança, diálogo e respeito às regras — qualidades que, no momento, parecem escassas no coração do Congresso.
Motta intensifica resposta ao motim e pede afastamento de 15 deputados
Na sequência imediata à ocupação do plenário da Câmara dos Deputados por parlamentares da oposição, o presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), deu um passo considerado sem precedentes em sua gestão ao encaminhar à Corregedoria da Câmara os pedidos de afastamento de 15 deputados — 14 por participação direta no motim e um por suposta agressão física. A decisão, tomada pela Mesa Diretora em reunião na tarde de sexta-feira (8), marca um endurecimento do comando da Casa contra o que considera uma ruptura grave na ordem institucional.
Os pedidos, que prevêem afastamento de até seis meses — prazo máximo permitido pelo regimento interno —, agora seguem para análise da Corregedoria Parlamentar, onde serão examinados com base em imagens de segurança, depoimentos e registros oficiais. Após essa etapa, os processos retornarão à Mesa Diretora para, em seguida, serem encaminhados ao Conselho de Ética, órgão responsável por julgar eventuais quebras de decoro parlamentar.
Entre os citados estão nomes de destaque no campo bolsonarista, em sua maioria filiados ao Partido Liberal (PL), legenda do ex-presidente Jair Bolsonaro, além de integrantes do Novo. A lista inclui:
- Marcos Pollon (PL-MS)
- Zé Trovão (PL-SC)
- Júlia Zanatta (PL-SC)
- Marcel van Hattem (Novo-RS)
- Paulo Bilynskyj (PL-SP)
- Sóstenes Cavalcante (PL-RJ)
- Nikolas Ferreira (PL-MG)
- Zucco (PL-RS)
- Allan Garcês (PL-TO)
- Caroline de Toni (PL-SC)
- Marco Feliciano (PL-SP)
- Bia Kicis (PL-DF)
- Domingos Sávio (PL-MG)
- Carlos Jordy (PL-RJ)
Além deles, a deputada Camila Jara (PT-MS) foi incluída no pedido por acusações de agressão durante a tentativa de retomada do plenário. Segundo relatos, ela teria empurrado o deputado Nikolas Ferreira em meio a uma discussão acalorada. A assessoria da parlamentar nega qualquer ato de violência e afirma que houve apenas um “empurra-empurra” em que Camila teria se defendido de uma aproximação considerada invasiva.
Ato institucional ou retaliação política?
A decisão de Motta foi saudada por setores da base governista como um gesto de defesa da institucionalidade. Em nota, a Secretaria-Geral da Mesa da Câmara afirmou que a reunião foi convocada “para tratar das condutas praticadas por diversos deputados federais nos dias 5 e 6” e que “a fim de permitir a devida apuração do ocorrido, decidiu-se pelo imediato encaminhamento de todas as denúncias à Corregedoria Parlamentar para a devida análise”.
No entanto, o movimento também acendeu o debate sobre o equilíbrio entre punição justa e retaliação política. Oposição e alguns analistas questionam se o alinhamento partidário influenciou o número de deputados incluídos — todos os 14 da oposição são de legendas alinhadas ao bolsonarismo, enquanto a única governista citada é alvo de denúncia apresentada por parlamentares contrários ao governo.
Ainda assim, o presidente da Câmara insiste que a decisão foi técnica, não política. “Não se trata de perseguição, mas de preservação do funcionamento do Poder Legislativo. O que aconteceu aqui foi uma obstrução ilegítima dos trabalhos, com ocupação de espaços institucionais e atitudes que extrapolaram o limite do debate democrático”, disse Motta em conversa reservada com jornalistas após a reunião.
Detalhes das acusações: do simbólico ao escandaloso
As denúncias contra os parlamentares variam desde atos considerados simbólicos até ações classificadas como abertamente agressivas.
Marcos Pollon (PL-MS), o último a levantar-se da cadeira da presidência durante a ocupação, é acusado de impedir fisicamente a retomada dos trabalhos e de ofender o presidente da Casa em dias anteriores. Em sua defesa, nas redes sociais, Pollon afirmou ser autista e disse que não compreendia plenamente o que estava acontecendo. Afirmou ter se sentado na cadeira apenas para conversar com Marcel van Hattem, que estava ao lado, e que não pretendia assumir qualquer ato de comando.
Júlia Zanatta (PL-SC), mãe de uma bebê de quatro meses, tornou-se alvo de críticas duras por ter levado a filha ao plenário durante a ocupação. Acusada de usar a criança como “escudo humano” e expô-la a um ambiente de tensão extrema, Zanatta rebateu dizendo que “não há lugar mais seguro para uma criança do que ao lado de sua mãe, lutando por liberdades fundamentais”. Ela também afirmou, em postagem anterior, que parlamentares de esquerda “odeiam as mulheres e a maternidade”.
Paulo Bilynskyj (PL-SP) enfrenta acusações mais graves: de “tomar de assalto” a Mesa Diretora do Plenário e da Comissão de Direitos Humanos, além de impedir que seus titulares exercessem suas funções. Também é citado por ter agredido o jornalista Guga Noblat, fato registrado por câmeras de segurança. Até o fechamento desta edição, Bilynskyj não havia se manifestado publicamente.
Marcel van Hattem (Novo-RS), por sua vez, é acusado de invadir a cadeira da presidência e de se apropriar simbolicamente do comando da Casa. Em resposta, publicou nas redes um vídeo em que toca o Hino Nacional ao violino. Em outro momento, afirmou que qualquer tentativa de suspensão seria um “golpe dentro do golpe”.
Já Zé Trovão (PL-SC) é acusado por PT, PSB e PSOL de tentar impedir fisicamente a volta de Hugo Motta ao plenário. Na sessão de quinta-feira (7), ele negou incentivar a violência, mas afirmou que “não aceitaria a retirada de colegas à força, como se fossem criminosos”.
Reação da oposição e novo ciclo de tensão
Enquanto Motta age, a oposição não fica parada. O líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (RJ), já havia apresentado na manhã de sexta um ofício pedindo processo disciplinar e suspensão cautelar de cinco parlamentares bolsonaristas, acusados de liderar a obstrução. Agora, com a inclusão de Camila Jara no pedido de afastamento, setores do PT reagem com indignação, classificando a medida como “seletiva” e “politicamente motivada”.
“Estamos vendo uma tentativa de criminalizar a oposição enquanto se omite sobre a conduta de deputados que promoveram um verdadeiro sequestro da instituição”, afirmou Lindbergh em coletiva.
O movimento de Motta, no entanto, pode ter um efeito colateral: unificar ainda mais os setores que já articulam a pauta da anistia aos condenados pelo 8 de janeiro e o fim do foro privilegiado. A articulação entre o Centrão e os bolsonaristas, que já vinha se fortalecendo, pode agora ganhar força com o discurso de “perseguição” a parlamentares da direita.
O que vem pela frente
O Conselho de Ética será o próximo palco dessa batalha institucional. Composto por 21 deputados, o colegiado terá a difícil missão de julgar se os atos praticados configuram quebra de decoro, levando em conta não apenas a gravidade dos fatos, mas também o contexto político e a liberdade de expressão parlamentar.
O caso de Camila Jara, por envolver acusações de violência física, pode ser tratado com urgência. Já os demais processos devem seguir um ritmo mais lento, mas com enorme pressão pública e midiática.
Enquanto isso, a imagem do Congresso segue abalada. A ocupação do plenário, o pedido de afastamento em massa, as acusações cruzadas e o clima de vingança expõem um Parlamento dividido, onde a governabilidade parece cada vez mais frágil.
O que começou como um protesto contra decisões do Judiciário terminou em uma crise interna com potencial para redefinir o equilíbrio de poder na Câmara. E, nesse jogo de forças, o maior desafio talvez não seja punir os responsáveis, mas restaurar a credibilidade de uma instituição essencial para a democracia brasileira.
Com informações de Veja e Agência Brasil*


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