Propostas incluem anistia a investigados por 8 de janeiro, fim do foro privilegiado e mais barreiras para processar parlamentares
Após o clima de tensão que tomou conta do Congresso com a ocupação das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado por deputados alinhados ao bolsonarismo, a oposição não recuou. Pelo contrário: intensificou nos bastidores uma articulação ambiciosa para desferir um novo golpe simbólico e institucional contra o Supremo Tribunal Federal (STF). O alvo é claro — reduzir o poder do Judiciário, proteger investigados por crimes políticos e mudar as regras do jogo no campo jurídico. E, para isso, a estratégia é usar o Centrão como trampolim.
Apesar da decisão da Mesa Diretora da Câmara de encaminhar à Corregedoria da Casa denúncias contra 14 deputados — a maioria do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, além de um parlamentar do Novo e outro do PP —, os integrantes da oposição afirmam que o episódio não os intimidou. Pelo contrário: viram nele um sinal de força e decidiram acelerar um conjunto de propostas que já tramitavam nos corredores do poder, mas que ganharam novo fôlego após o confronto institucional.
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O chamado “pacote anti-STF” está sendo costurado com cuidado e tem três eixos principais, segundo lideranças do PL ouvidas pela imprensa. O primeiro deles é a anistia a investigados pela suposta tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 — uma medida que, se aprovada, poderia beneficiar diretamente Jair Bolsonaro, hoje réu no processo que investiga a organização criminosa por trás da invasão dos Três Poderes.
A segunda frente é o fim do foro privilegiado, que atualmente garante a autoridades, incluindo parlamentares, o direito de serem julgadas diretamente pelo STF. A ideia em discussão é que deputados e senadores passem a ser processados inicialmente nos Tribunais Regionais Federais (TRFs), com recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), e só em casos excepcionais chegariam ao Supremo. Ainda não há um texto fechado, mas a proposta já circula entre líderes partidários como uma forma de “modernizar” o sistema.
O terceiro ponto é a chamada PEC das prerrogativas, uma proposta de emenda à Constituição que exigiria autorização do Congresso para a abertura de ações penais contra parlamentares e restringiria prisões a situações de flagrante delito ou crimes inafiançáveis. Em outras palavras: tornaria muito mais difícil prender ou processar um deputado sem o aval da própria Casa.
Além disso, há um desejo explícito entre setores da oposição de avançar com um pedido de impeachment contra o ministro Alexandre de Moraes, uma figura central nas investigações sobre o golpe. O processo, no entanto, depende de um primeiro passo crucial: o aval do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), para que seja sequer admitido. Ainda não há confirmação de que Alcolumbre dará esse sinal verde, mas a pressão está crescendo.
O que torna esse movimento ainda mais estratégico é a forma como está sendo conduzido. Os líderes do PL sabem que temas como a anistia são polêmicos e enfrentam resistência até dentro do próprio Congresso. Por isso, estão usando como “iscas legislativas” as pautas que também interessam ao Centrão — especialmente o fim do foro privilegiado e a PEC das prerrogativas.
A ideia é simples: oferecer apoio a partidos como PSD, PP e União Brasil em troca de votos para as propostas mais sensíveis. “Há uma sinalização de entendimento com esses partidos”, afirmaram integrantes do PL. “Eles têm interesse em blindar seus parlamentares, assim como nós. É um terreno comum.”
A articulação vai além. Há tentativas de atrair até partidos de centro-esquerda, como PDT e PSB, para apoiar ao menos o fim do foro. A justificativa? “É uma questão de igualdade perante a lei.” Mesmo que muitos desses partidos rejeitem a anistia ou o ataque a Moraes, o discurso de “acabar com privilégios” pode ser suficiente para conquistar algumas adesões.
Tudo isso acontece em um momento de grande instabilidade institucional. A ocupação das Mesas Diretoras foi vista por muitos como um ato de desrespeito às normas internas do Legislativo, mas também como um grito de resistência de um grupo que se sente encurralado pelas investigações do STF. Agora, em vez de recuar, a oposição escolheu o contragolpe: atacar o Supremo não com força física, mas com a força do voto e da pauta legislativa.
A pergunta que fica no ar é até onde essa ofensiva pode ir. O STF, nos últimos anos, tornou-se um dos principais árbitros da crise política brasileira. Limitar seu poder, seja por meio do fim do foro, seja por uma anistia geral, seria uma mudança profunda no equilíbrio entre os Poderes. E, para muitos juristas e defensores da democracia, um retrocesso perigoso.
Mas, no tabuleiro do Congresso, onde interesses, alianças e sobrevivência política ditam o ritmo das decisões, o jogo segue. Enquanto a Corregedoria analisa as denúncias contra os deputados envolvidos no tumulto, outros corredores fervilham com conversas, acordos e promessas. A oposição sabe que não precisa vencer todas as batalhas de uma vez. Às vezes, basta colocar a pauta em movimento para mudar o rumo do jogo.
E, nesse tabuleiro, o STF está, mais uma vez, no centro do olho do furacão.
Entre os 14 deputados denunciados à Corregedoria da Casa estão nomes de peso dentro do grupo: Nikolas Ferreira (PL-MG), Bia Kicis (PL-DF), Zé Trovão (PL-SC), Júlia Zanatta (PL-SC) e Marcel Van Hattem (Novo-RS). Todos são acusados de participação direta no tumulto que paralisou os trabalhos legislativos e colocou em xeque a autoridade da presidência do Congresso.
Agora, cabe ao corregedor da Câmara analisar os fatos, colher depoimentos e emitir um parecer antes de encaminhar os casos ao Conselho de Ética — instância responsável por decidir sobre punições, que podem variar desde advertência até cassação de mandato. Mas, mesmo com os procedimentos em andamento e o plenário desocupado, as lideranças da oposição deixam claro: a pressão pode voltar a qualquer momento se o chamado “pacote anti-STF” não avançar.
O episódio, que começou como um protesto contra as decisões do ministro Alexandre de Moraes, rapidamente se transformou em um ato de força política. E, para muitos analistas, foi um recado direto ao governo Lula: sem apoio da base bolsonarista, projetos-chave podem ficar engavetados — especialmente a reforma do Imposto de Renda, principal prioridade do Executivo no Congresso.
Foi justamente a influência de Arthur Lira (PP-AL), ex-presidente da Câmara e padrinho político de Hugo Motta (Republicanos-PB), que ajudou a conter a crise. Lira, que hoje atua como relator do projeto de isenção do IR para quem ganha até R$ 5 mil, tem peso decisivo nas negociações. Sua intervenção foi essencial para restabelecer o diálogo e evitar uma escalada maior. Mas, ao mesmo tempo, reforçou um jogo de interesses bem claro: o apoio à reforma fiscal está diretamente ligado ao avanço de pautas da oposição.
Nos bastidores, líderes do PL já deixam escapar a condição: não vão obstruir a tramitação do projeto do IR desde que haja movimentação concreta em temas como o fim do foro privilegiado, a PEC das prerrogativas e, principalmente, a anistia a investigados pela tentativa de golpe de 8 de janeiro. O prazo é curto — o texto precisa ser aprovado até 30 de setembro para vigorar em 2026 — e o tempo de negociação corre contra todos.
Nesse contexto, a figura de Hugo Motta, líder do governo na Câmara, passa por um teste de fogo. Apesar de seu perfil conciliador, visto como uma ponte entre o Planalto e setores conservadores, a crise o colocou em uma posição delicada. Alguns aliados avaliam que ele saiu fragilizado, incapaz de impedir um ato que desafiou diretamente a ordem interna da Casa. Outros, no entanto, lembram que Motta não tem poder absoluto sobre partidos da oposição e que sua principal arma é o diálogo — ainda que, às vezes, ele falhe.
“Eu acho que deve ter [punição] porque o que aconteceu foi grave, até para que isso não volte a acontecer”, disse Motta à CNN, em tom de reprovação. “Não podemos concordar com o que aconteceu, até porque temos que ser pedagógicos nessa situação.” A fala foi interpretada como um esforço para manter a autoridade moral, mesmo diante da pressão de um grupo que insiste em agir à margem das regras.
Em um gesto simbólico, o líder do PL na Câmara, deputado Sóstenes Cavalcante (RJ), chegou a pedir desculpas a Motta, reconhecendo que a forma como o protesto foi conduzido “não foi correta”. Mesmo assim, foi enfático ao defender que seus colegas não devem ser punidos. Para muitos parlamentares, essa postura foi uma manobra estratégica: mostrar arrependimento sem abrir mão da causa, evitando queimar pontes com o líder do governo e mantendo as portas abertas para futuras negociações.
Enquanto isso, o Palácio do Planalto observa com atenção. Na sexta-feira (8), o presidente Lula não poupou críticas. Em discurso público, classificou os parlamentares envolvidos como “verdadeiros traidores da pátria” e defendeu com firmeza o ministro Alexandre de Moraes. “Quem deveria ter o impeachment são esses deputados e senadores que ficam tentando fazer greve para não permitir que funcione a Câmara e o Senado”, disparou, em tom de indignação. “São eles que querem paralisar o país, não nós.”
A fala de Lula, além de reforçar a defesa das instituições, também serve como um alerta: o governo não vai ceder a chantagens. Mas, na prática, a realidade do Congresso é outra. A base governista precisa de votos — e muitos deles estão justamente nos partidos que hoje ameaçam travar a pauta.
As próximas semanas serão decisivas. Não apenas para a aprovação da reforma do IR, mas para entender se a oposição consegue impor sua agenda, se o Centrão vai se alinhar ao jogo de poder ou se o governo terá força suficiente para manter o rumo. Hugo Motta, Arthur Lira, os líderes do PL e os ministros do STF estão todos de olho no mesmo tabuleiro: um Congresso cada vez mais polarizado, onde a linha entre protesto legítimo e ameaça institucional parece se dissolver a cada nova manobra.
No fim das contas, o que está em jogo não é apenas um projeto de lei. É a definição de quem manda em Brasília. E, por enquanto, a resposta ainda está em construção.