Há alguns meses, escrevi um artigo sobre uma entrevista de Celso Amorim, assessor especial do presidente Lula, em um think tank americano. Na ocasião, comparei o diplomata brasileiro com a figura bíblica de Daniel na cova dos leões. Em meio a um ambiente francamente inóspito e agressivo, Amorim conseguiu defender com firmeza e elegância as posições independentes e soberanas do Brasil, especialmente em relação à guerra na Ucrânia, resistindo às pressões de seus interlocutores norte-americanos.
Na última segunda-feira, durante sua participação no programa Roda Viva, da TV Cultura, Celso Amorim se viu novamente na mesma situação. Desta vez, não estava em um think tank americano, mas diante de uma bancada de jornalistas brasileiros que, curiosamente, demonstraram uma homogeneidade de pensamento que muito lembrava aquele ambiente washingtoniano. A semelhança não era mera coincidência: refletia a mesma matriz ideológica, os mesmos preconceitos e a mesma dificuldade em compreender as nuances da política externa brasileira.
O experiente diplomata enfrentou as “feras” com sua elegância costumeira. Mas foi em um momento específico da entrevista que a natureza do embate ficou mais evidente, quando Pedro Doria, editor do Meio, fez uma pergunta que revelou muito mais sobre quem questionava do que sobre quem era questionado.
O momento emblemático
Doria questionou: “Ministro, deixa eu lhe confessar uma aflição jornalística. (…) Nós temos a impressão de que o Planalto tem dois pesos e duas medidas. (…) Por que que alguns países são complexos? Por que que Irã é complexo, a Rússia é complexa, a Venezuela é complexa? Porque alguns são condenados muito rápido e outros não.”
A resposta de Celso Amorim foi lacônica e precisa: “(…) Às vezes, a impressão não está no problema de quem fala, mas está no problema de quem ouve e nos preconceitos de quem ouve.”
A desorientação do jornalismo corporativo
O comentário de Pedro Doria representa apenas a desorientação do jornalismo em relação ao tema da Ucrânia, que finge ignorar os antecedentes que levaram à operação militar russa. Em 2014, financiado abertamente pelo Estado americano, houve o golpe na Ucrânia, e desde o fim do regime soviético, houve quebra sistemática de acordos pelos Estados Unidos.
Existe toda uma literatura, muitos livros publicados, entrevistas e depoimentos de especialistas americanos que demonstram que a guerra na Ucrânia teve antecedentes claros. Não foi uma decisão insana de Putin, mas consequência de seguidas violações de acordos pelos Estados Unidos. Pedro Doria finge ignorar essas questões de segurança importantes da Rússia. Imaginem se a China colocasse mísseis na fronteira do México contra os Estados Unidos ou na fronteira do Canadá.
Os ataques da Rússia à Ucrânia foram uma resposta a uma ameaça direta à sua segurança nacional. Pedro Doria reflete uma mentalidade ultrapassada de jornalista corporativo, comum nas décadas de 80, 90 e 2000. Em 2025, não se pode mais ter essa postura repetitiva do lugar comum do imperialismo americano, ignorando as nuances geopolíticas.
Seria muito saudável que o jornalismo brasileiro superasse esse vício completamente equivocado, como se os Estados Unidos não fossem o grande culpado dessa guerra. O Brasil enfrenta uma situação complexa porque precisa lidar com uma opinião pública ainda envenenada pela manipulação midiática promovida pelos Estados Unidos. Por isso a linguagem diplomática brasileira precisa fazer tantos malabarismos.
Já em 21 de março de 2022, menos de um mês após a invasão, Putin propôs acordos de paz durante as negociações em Istambul, na Turquia. O chamado “Comunicado de Istambul”, finalizado em abril de 2022, previa a neutralidade permanente da Ucrânia em relação à OTAN, garantias de segurança multilaterais para Kiev oferecidas por países como EUA, Reino Unido, França, Canadá, Alemanha, Israel, Itália, Polônia e Turquia, além da entrada da Ucrânia na União Europeia. O acordo estava praticamente concluído, faltando apenas uma reunião entre Putin e Zelensky prevista para ocorrer em Jerusalém.
No entanto, em 9 de abril de 2022, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson fez uma visita surpresa a Kiev e disse a Zelensky que “Putin é um criminoso de guerra, ele deve ser pressionado, não negociado” e que “mesmo que a Ucrânia esteja pronta para assinar alguns acordos de garantias com Putin, eles não estão”. Três dias depois, Putin declarou publicamente que as negociações “tinham chegado a um impasse”. O secretário de Estado americano Antony Blinken e o secretário de Defesa Lloyd Austin também se opuseram ao acordo, garantindo a Zelensky apoio militar incondicional. A estratégia de Washington era clara: “suporte massivo para a Ucrânia, pressão massiva sobre a Rússia”, como declarou Blinken durante sua visita a Kiev em abril de 2022. A Rússia sempre foi clara: a neutralidade da Ucrânia em relação à OTAN é questão de segurança nacional. Se os Estados Unidos, Europa e Israel têm direito de se defender, por que só a Rússia não teria?
O cinismo diante de Gaza
O cinismo ou ingenuidade de Pedro Doria são assustadores. Ao questionar por que alguns países são tratados como “complexos” enquanto outros recebem condenações rápidas, o jornalista revela uma cegueira deliberada diante da realidade. Neste momento presenciamos o maior holocausto desde a Segunda Guerra Mundial, com mortes de jornalistas, crianças, mulheres, civis, médicos e assistentes sociais. Vemos um genocídio promovido ao vivo por Israel, e ainda assim alguns insistem que o governo Lula tratou Israel de forma “simples” demais.
Reflexões sobre diplomacia e democracia
A opinião desses grupos de jornalistas ainda é dominante, infelizmente, nas mídias corporativas, mas não reflete o que os brasileiros pensam.
Sobre a questão democrática, há uma diferença fundamental entre discutir democracia no Brasil – país que conhecemos e do qual participamos politicamente – e julgar outros países, cuja história e circunstâncias não dominamos. Muitos países se consideram democráticos segundo suas próprias concepções. Do ponto de vista da política externa oficial, o Itamaraty não pode interferir em assuntos internos de outros países.
Deveríamos ter humildade: a democracia brasileira tem muitos problemas e defeitos. Podemos aprender com outros países, tanto com suas lutas e desafios quanto com suas virtudes.
Quanto à Venezuela, o Brasil perdeu um pouco o passo sobre como manter essa relação. Isso ocorreu em função tanto de alguns problemas e erros que a própria Venezuela cometeu, quanto de uma certa arrogância ou condescendência brasileira. Contribuíram também nossas próprias dificuldades para lidar com uma opinião pública que não compreende a Venezuela e mantém uma visão estereotipada do país. Consequentemente, o governo brasileiro e o Itamaraty acabam frequentemente flertando com posições paternalistas ou mesmo equivocadas.
É importante reconhecer, contudo, que Celso Amorim mantém-se fundamentalmente respeitoso da autodeterminação e soberania da Venezuela, e se opõe radicalmente a qualquer sanção contra o país.
Mais uma vez, Celso Amorim demonstrou que, mesmo na toca dos leões, a diplomacia brasileira pode conservar sua dignidade e independência.


Tony
13/08/2025 - 21h51
O típico diplomata sub desenvolvido de terceiro mundo, uma nulidade absoluta.